terça-feira, 24 de novembro de 2015

DISCURSO DE PARANINFO

(Aos formandos do Curso de Letras, turma 2011-2 e "anexos", por ocasião da cerimônia no dia 20 de novembro de 2015)


Dirijo-me aos formandos, inicialmente para agradecer a escolha de meu nome e também para falar em nome da ligação afetiva com esta turma, da proximidade no convívio cotidiano da academia, e mesmo dos laços de efetiva amizade que estabelecemos alguns de nós. Até porque talvez só mesmo laços muito fortes de amizade justificariam a confiança demonstrada não apenas para uma cerimônia destas num feriadão, ainda mais tendo sido o convite formalizado em cima da hora, o que me levou a algumas observações e considerações vazadas numa linguagem bem pouco apropriada a ser reproduzida aqui nesta cerimônia – aliás, em qualquer cerimônia.
         Pois bem: é justo por causa desses laços  muito fortes que resolvo recusar o discurso de viés mais afetivo (que tem sido o mais comum nestas cerimônias) e procurar fazer algumas observações a serem levadas por vocês no arremate desta etapa da vida.  Não farei “um adeus de discurso” – como diz Oswald de Andrade pela boca de João Miramar - , tampouco um discurso de adeus.  Não forçarei a nota afetiva.  Em vez disso, buscarei encaminhar algumas reflexões.
         Comecemos por falar não do “feriadão” (perdendo – ou ganhando o dia, como ensinou Drummond), mas do feriado, deste feriado: o Dia Nacional da Consciência Negra, feriado nacional criado em janeiro de 2003, no atendimento democrático a uma iniciativa das demandas da população negra organizada, feriado de caráter eminentemente democrático por ser opcional,  e que hoje se estende – viva o google! – a 780 municípios brasileiros, que o celebram.
         Numa visão bastante ingênua ou meramente produtivista, existem aqueles que listam entre as causas do nosso “atraso” enquanto país o “excessivo número de feriados”, como se ao suprimi-los ou reduzi-los déssemos um importante passo como nação.  Não vou aqui lembrar da França, onde há mais feriados do que no Brasil, e que não é propriamente um país atrasado – aliás, nestes dias sombrios que correm, uma das razões, se não a principal, de a França ter sido, e ser ainda, alvo de ataques extremistas fundamentalistas é justamente seu caráter de nação pioneira na consagração das conquistas democráticas.
         Aproveito então o “gancho” do feriado para trazer algumas questões à reflexão de todos aqui.  Como vocês me ouviram dizer muitas vezes em sala de aula, vou “dar um passeio”, esperando não me perder antes de retomar o início ao final, numa fala mais “encorpada”.
         Dirijo-me prioritariamente à atenção da turma de formandos, ou seja, – aqui lançando mão de referências mais familiares a nós, “povo de Letras’, mas que serão, se cabíveis forem, de proveito para todos, para o “público externo’ – aqui representado por amigos e familiais presentes - , pois afinal é o trânsito entre o nosso saber específico -mas não exclusivista – e o corpo geral da sociedade, é esse trânsito que deve dar sentido à nossa formação, ainda mais numa universidade pública.
         Aproveito, pois, o mote do Dia da Consciência Negra, para dizer que Antonio Candido lembra Joaquim Nabuco, em O abolicionismo, que diz que uma das dimensões da nossa catástrofe social histórica – e que, é preciso reconhecer, agora se busca, com muita luta e muitas contradições, reverter – é a persistência do drama humano trazido pela escravidão, que comprometeu para sempre o regime de trabalho e de produção, fazendo com que gerações e gerações se acostumassem as ver no trabalhador um objeto, e não um ser humano.  Decorreu isso de que os antigos escravos, mesmo com a abolição de lei em 1888, não foram incorporados à estrutura social.  Cito Candido: “O trabalho livre se estabeleceu lentamente e sofreu uma influência benéfica da imigração estrangeira.  Italianos, sírio-libaneses, alemães, espanhóis, os imigrantes fizeram o Brasil contemporâneo.  Mas aí deu-se um fato que é bastante grave.  A oligarquia brasileira é tão poderosa que coopta todas as sucessivas camadas dominantes.  O imigrante aqui chega e, quando fica rico, passa a tratar o empregado exatamente como foi tratado, como escravo.  Quer dizer: a classe dominante brasileira não é formada pelas mesmas famílias, mas as famílias que se vão sucedendo adotam o mesmo comportamento.”
         Como se vê, entramos numa espécie de reprodução por inércia, quase um moto-contínuo para a perpetuação de nossas iniquidades e indignidades como sociedade.  Darcy Ribeiro repetia serem as elites dominantes brasileiras talvez as mais perversas do mundo e, numa frase que muito circula hoje pelas redes sociais, dizia ainda que o fracasso da educação no Brasil, do ponto de vista das elites não era um fracasso, era um projeto.  Projeto de educação definido também sinteticamente por Paulo Freire em outra frase: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”
         Cito Darcy e Freire porque foram dois homens que juntos estiveram e juntos “fracassaram” em seus projetos para a educação, calados, cassados e perseguidos que foram com o golpe de 1964, ambos.  O governo autoritário e ilegítimo – porque às custas de um golpe – que então se instalou, não custa lembrar ou apenas informar aos mais desavisados, começou golpeando duramente a educação, perseguindo, prendendo, assassinando, fazendo desaparecer estudantes e professores – e não apenas – em muitos crimes de terrorismo de estado, que continuam aí sem esclarecimento e sem punição, para nossa vergonha como nação. Mas não apenas violência contra pessoas: fazendo desaparecer dos currículos escolares qualquer coisa ligada ao ensino de filosofia, que lida, como sabemos, com o exercício constante do pensamento crítico.
         E se falo nesse período medonho para o campo do saber é porque hoje em alguma medida ele parece querer reviver nos sonhos de nossa desmemória endêmica  e manipulada.  Mas sou otimista e considero que, apesar das dificuldades e dos reveses, o pior não acontecerá.  Seguiremos na seara democrática que, apesar de tudo, sinaliza a existência de seus primeiros frutos.  Falemos um pouco destes.
         Li que ontem houve protestos, pelo pessoal que organizou festejos da Semana de Consciência Negra, em frente ao antigo prédio do DOPS na Rua da Relação, Centro do Rio.  O local foi escolhido com a intenção de se marcar um lugar de memória trevosa, de modo a afrontá-lo enquanto tal.  Bem vinda afronta.  Tenho inclusive razões pessoais para festejar a boa ideia, pois frequentei o prédio semanalmente há quase quarenta anos, quando, ao ser aprovado em concurso público, precisei obter um “atestado ideológico” para ingresso na carreira, o que foi complicado, pois no ano anterior eu havia sido presidente do diretório estudantil do meu curso de Letras. E para conseguir nomeação e tomar posse num cargo público, era necessário o “nada consta” de autoridades de resto ilegitimamente constituídas.  Digo isso para lembrar que o país já foi muito pior.
         E se celebro essa afronta ao espaço simbólico da repressão, não o faço em meu nome, um figurante obscuro de importância relegada a uma subalterna quinta grandeza naquele quadro, mas celebro para celebrar o que deve ser celebrado: as manifestações da cultura negra, com cânticos, dança de capoeira, enfim... literalmente se sambou na cara da sociedade repressiva – uma sociedade que, como lembrou Chico Buarque numa entrevista, “pensa que é branca”.  Esse aspecto glorioso da celebração é simbólico daquilo que completa o que configura a nossa seara democrática, que as conquistas das transformações sociais dos últimos anos vêm lutando para sedimentar e que gosto de sintetizar assim: os negros não voltarão para as senzalas, as mulheres não voltarão para as cozinhas, o povo LGBT se organizou, suas vozes se fazem ouvir e, felizmente, não mais de dentro dos armários, para onde não voltarão.  Há muito a ser conquistado ainda, e cito aqui, como exemplo, a dura luta a ser travada em favor da dignidade dos povos indígenas.  Mas, seja como for, viva o Dia da Consciência Negra, viva Zumbi!
         Há quarenta anos esta situação de celebração era impensável:  Jorge Ben Jor cantava algo que parecia ser tão distante: “Eu só quero ver como vai ser quando Zumbi chegar”.  Os sinais estão aí de uma chegada de Zumbi, nesta canção tantas vezes gravada e cantada em festejos diversos.  O mito se confunde por vezes com a história e, se esta pode complementar e nos levar á depressão pelo conhecimento objetivo do estágio repressivo que ela venha a flagrar – afinal, lembram Caetano e Gil, “todos sabem como se tratam os pretos” – o mito pode alimentar, se não a redenção, a perseverança na luta por dias mais justos.
         Ora, afim ao mythos, como ao epos, por vezes englobando a ambos, temos a literatura. Quando vocês me convidam, e aos colegas de literatura, a desempenhar um papel tão importante neste momento, posso, podemos interpretar isso como uma afirmação da literatura, de sua prática, de seu ensino, de sua aprendizagem, de seu sentido mais arraigado.  Este não é simples, nem cabe me estender aqui sobre ele – de resto, penso que já o fizemos muitas vezes juntos - , mas a gradativa supressão que o ensino de literatura vem sofrendo no ensino médio – sem falar no seu abastardamento ou pura e simples ausência nas etapas anteriores de formação – é para nos deixar para lá de alertas.  Não podemos abrir a guarda, não podemos abrir mão do discurso literário, de seu papel de mediador, de aferidor, de problematizador da malha de discursos, ainda mais numa sociedade tão penetrada por autoritarismo, proveniente sobretudo da ignorância e da baixa e/ou péssima  escolaridade.
         Se é inegável que assistimos nos últimos anos – e os indicadores sociais estão aí mesmo, entre outras coisas para nos livrarem de uma mídia comprometidamente venal – a uma significativa inclusão social e diminuição da pobreza e da miséria, é inegável também que muitos analistas têm apontado com razão que esse ganho se fez infelizmente mais pela inclusão via consumo do que via educação.  E a batalha pela educação é aquela que nos chama agora a combater o bom combate nas molduras da sociedade democrática, de instituições que apesar de tudo têm se mostrado sólidas.
         Encaminho agora a conclusão, procurando amarrar os fios soltos na ponta do início.  Graciliano Ramos – este magnífico escritor, por sinal nascido no mesmo estado da federação onde ficava o Quilombo de Palmares – em conversa com o folclorista Câmara Cascudo saiu-se com esta, segundo conta seu biógrafo Dênis de Moraes;
         “Na casa dessa burguesia rica você pode encontrar dez penicos de porcelana, mas não encontra dez livros.  Não é que eu deseje tê-la [a essa burguesia, bem entendido] como leitora de meus livros, mas isto mostra a indiferença pela divulgação literária e a falta de estímulo à produção intelectual.”
         Às vezes ouço falar que a literatura “é uma atividade de elite”, que seria “um luxo”, que os escritores se entregariam “a práticas elitistas”, coisas que tais.  Vou repetir aqui o que disse no correr de uma aula outro dia mesmo:   Não vamos ofender deste modo a literatura ou a atividade literária.  Numa sociedade cujas elites são perversas, boçais, obscurantistas, analfabetas, violentas e assassinas, dizer que assim é a literatura é ofendê-la, é ofender a nós todos.  Não compactuemos com isso.  Nesse sentido, vos conclamo.
         Obrigado.

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