segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

SEIS POEMAS DE NYDIA BONETTI

1.
caminho arranhando meus pés sobre as pedras
da rua
gosto do som das rodas que se arrastam sobre
concreto
fatídicas
vias (de fato)
gosto de ouvir o som da vida – eterno arrastar
se sobre
tudo

2.
memória: - é apenas um nome
inscrito
na sola dos pés

vai se perdendo na caminhada


3.
o tempo insiste em arrastar 
móveis pesados
há sempre um piano
que não passa na porta
notas suspensas. cordas frágeis
que sempre ruem. antes 
que seus pés toquem a rua
em áspero ruído

 






4.
Talvez leve um buquê de cactos. E uma canção
de Leonard Cohen.
Quem sabe uma rosa
do povo
de Hiroshima
de Gertrud
de ninguém.
As flores do mal
as flores do bem. As flores
afinal, carregam — todas — a náusea de existir.


5.
quando a noite me olha, na sua hora mais escura
e o silêncio me encara
com seus olhos de pedra
e murro
                   paraliso
pela vidraça
chuva negra de ferpas e granizo
estilhaços de vidro
e vento
tentam furar meus olhos
                   aquários vazios
onde o último peixe
morreu de sede e medo
do gato imaginário – olhos de fogo e faca – fera
que jamais existiu



6.

fogo apagou!
gritava o pássaro da minha infância
pressagiando as cinzas que viriam







                A preciosa e precisa poesia de Nydia Bonetti (1958) tem marcado presença em diversas publicações online (onde foram colhidos estes seis poemas), entre as quais http://www.mallarmargens.com/ 
(Mallarmargens revista de  poesia e arte contemporânea), revista Nerval ( http://issuu.com/revistaflaubert/docs/nerval004), Cronópios  (http://www.cronopios.com.br). 

                Nydia publicou ainda minimus cantus (Coleção Instante Estante – Projeto de incentivo à leitura, RS, 2012), Sumi-ê (Ed. Patuá, 2013), tendo ainda integrado a antologia Desvio para o vermelho: 13 poetas brasileiros contemporâneos, organizadaem 2013  por Marceli Andresa Becker para o Centro Cultural SP.  É de Nydia ainda o excelente blog Longitudes (http://nydiabonetti.blogspot.com.br/).

                As ilustrações da postagem, respectivamente "Duas" e "O pássaro saciado do dia", são do artista português radicado em Bruxelas Rui Cavaleiro Azevedo, que fez em 2013 uma série de desenhos inspirados na poesia de Nydia. 




sábado, 12 de dezembro de 2015

TRÊS BÁRBAROS E LIVRES DE MARCELO DINIZ

Duas mãos - foto de Marcelo Diniz


         Marcelo Diniz postou, como volta e meia o faz, poemas novos em seu perfil no Facebook – não eram sonetos, modalidade em que sua mestria é absoluta e à qual tem se dedicado com quase exclusivismo. No corre-corre,  os dois que li – não sei se postou mais - eram poemas extraordinários, e acabei pedindo uns dias depois a ele   que mos enviasse, que eu gostaria de ter a primazia de posta-los aqui no Firma.  Gentilmente ele me enviou três, a que chamou de”seleta pro firma de rascunhos bárbaros e livres”.  Dou-os aqui,  com muita alegria e orgulho – e a admiração de sempre.  Talarico ilustrou.


1. 
é possível encontrar palavras sem procurá-las
as bárbaras cambalhotas de um guarda-chuva aberto pela calçada
e o que se tem à mão ao abri-lo sempre nos trai como um morcego estropiado
palavrões sempre são encontrados em semelhantes circunstâncias
a nódoa no brim o rasgo dos fundilhos
há palavras que parecem arrancadas de nós
o que falamos sem saber por mais que pensemos depois
fazendo brotar o sentido como uma vegetação atrasada
o que por mais que pensemos vaza sem efígie
um significado inusitado e ao mesmo tempo tão antigo
tropeçamos a todo momento no murmúrio
não que sejamos necessariamente atrapalhados com as palavras
nunca as estudamos tanto nunca enxergamos tanto através delas
existência mais consistente do que a mudez que nos rodeia
lixo espacial de antigos satélites
e que risca o céu quando algum pedaço cai
e esfria seu metal na terra e enferruja
as palavras estão sempre onde não as supomos
topada martelo no dedo língua entre dentes
capazes de dizer eu te amo na hora mais adversa
as palavras nos dizem
é preciso escutá-las e lê-las como uma camisa ao avesso
ver-lhes o oco articulado
ver-lhes a corda o mecanismo a chave e ainda
ouvi-las com risco e encanto
lê-las com lento maravilhamento e súbita revelação
a que repetida se torna real
e a que repetida perde o sentido
a que grita e propaga
a que sussurra hesita e naufraga

no travesseiro no elevador


2.
– vô

como fosse o adão das coisas
substantivos na boca e dêiticos no indicador
como se me ensinasse a língua
que sabia com orgulho e gosto
de um mundo vasto e repleto de motivos
como se toda palavra fosse um fruto
macio mordido pela primeira vez
como se sua fala colasse à coisa falada
e ria satisfeito e me traduzia
o que não me era nítido ainda
e não eram os passos temerosos de colono recém chegado
e não era a inocência imaginada dos colonizados
nem era a catequese do cosmos
não havia ainda a palavra astúcia
havia a interjeição com o fato de cada coisa cor
responder ao som que repetisse e eu repetia
como se repetindo provasse do mesmo fruto
como se a flor do pequeno jardim fosse
o sabor da vogal extraída
e as pétalas coubessem o imaculado esplendor
na cor de uma única sílaba
de fato o mundo começara ali
a satisfação de fazer sentido
nada mais tinha história naquele vocabulário abrupto
cuja sintaxe se desenhava entre prosódia e gesto
quando enfim me deu nome




Ilustração de Talarico

3.
a água que me lavou o corpo é um desperdício
desce pelo ralo com meus resquícios para sempre
vejo as pessoas passando e percebo muitas
não se acham belas e a beleza é um desperdício
a incidência de restar paralelo como um segredo
cultivando certa voz que lhe soprasse sempre
a verdade que mais se estima do que é inútil
o brilho de alumínio da embalagem descartada
que reflete o céu aleatório de seu destino
o que respiram as cerdas da vassoura enquanto
chiam no chão da barbearia no meio da tarde quente
o clarão de um fósforo riscado em cômodo escuro
a consistência da bolha de luz que arrasta pelos móveis
o rumor de sombra de sua pele oscilante
o desperdício sempre foi sua insistente atenção
à musa que visita os alvéolos efêmeros dos fungos
à cultura de poeira e seu ilegível inventário de ácaros
ao azinhavre do utensílio que aposentou seu dono
à alegria provável do que é desnecessário
porque deixou de sê-lo e também à graça de nunca ter sido
o desperdício de olhar a esquina e não exigir mais nada
abandonar o saco plástico e imaginar a quanto
será elevado antes da tempestade na rua vazia
a parede descascada é uma paisagem extraterrestre
o alívio indiferente à chuva de meteoros
que dizimou de vez a urgência da vida de outrora
o universo decerto fosse mais seco não se infiltrasse
esta espessura de lágrima e riso que o desperdício
acumula em cada nicho de sua minuciosa colmeia
a inaudível aspereza do vento se houver vento