sábado, 12 de dezembro de 2015

TRÊS BÁRBAROS E LIVRES DE MARCELO DINIZ

Duas mãos - foto de Marcelo Diniz


         Marcelo Diniz postou, como volta e meia o faz, poemas novos em seu perfil no Facebook – não eram sonetos, modalidade em que sua mestria é absoluta e à qual tem se dedicado com quase exclusivismo. No corre-corre,  os dois que li – não sei se postou mais - eram poemas extraordinários, e acabei pedindo uns dias depois a ele   que mos enviasse, que eu gostaria de ter a primazia de posta-los aqui no Firma.  Gentilmente ele me enviou três, a que chamou de”seleta pro firma de rascunhos bárbaros e livres”.  Dou-os aqui,  com muita alegria e orgulho – e a admiração de sempre.  Talarico ilustrou.


1. 
é possível encontrar palavras sem procurá-las
as bárbaras cambalhotas de um guarda-chuva aberto pela calçada
e o que se tem à mão ao abri-lo sempre nos trai como um morcego estropiado
palavrões sempre são encontrados em semelhantes circunstâncias
a nódoa no brim o rasgo dos fundilhos
há palavras que parecem arrancadas de nós
o que falamos sem saber por mais que pensemos depois
fazendo brotar o sentido como uma vegetação atrasada
o que por mais que pensemos vaza sem efígie
um significado inusitado e ao mesmo tempo tão antigo
tropeçamos a todo momento no murmúrio
não que sejamos necessariamente atrapalhados com as palavras
nunca as estudamos tanto nunca enxergamos tanto através delas
existência mais consistente do que a mudez que nos rodeia
lixo espacial de antigos satélites
e que risca o céu quando algum pedaço cai
e esfria seu metal na terra e enferruja
as palavras estão sempre onde não as supomos
topada martelo no dedo língua entre dentes
capazes de dizer eu te amo na hora mais adversa
as palavras nos dizem
é preciso escutá-las e lê-las como uma camisa ao avesso
ver-lhes o oco articulado
ver-lhes a corda o mecanismo a chave e ainda
ouvi-las com risco e encanto
lê-las com lento maravilhamento e súbita revelação
a que repetida se torna real
e a que repetida perde o sentido
a que grita e propaga
a que sussurra hesita e naufraga

no travesseiro no elevador


2.
– vô

como fosse o adão das coisas
substantivos na boca e dêiticos no indicador
como se me ensinasse a língua
que sabia com orgulho e gosto
de um mundo vasto e repleto de motivos
como se toda palavra fosse um fruto
macio mordido pela primeira vez
como se sua fala colasse à coisa falada
e ria satisfeito e me traduzia
o que não me era nítido ainda
e não eram os passos temerosos de colono recém chegado
e não era a inocência imaginada dos colonizados
nem era a catequese do cosmos
não havia ainda a palavra astúcia
havia a interjeição com o fato de cada coisa cor
responder ao som que repetisse e eu repetia
como se repetindo provasse do mesmo fruto
como se a flor do pequeno jardim fosse
o sabor da vogal extraída
e as pétalas coubessem o imaculado esplendor
na cor de uma única sílaba
de fato o mundo começara ali
a satisfação de fazer sentido
nada mais tinha história naquele vocabulário abrupto
cuja sintaxe se desenhava entre prosódia e gesto
quando enfim me deu nome




Ilustração de Talarico

3.
a água que me lavou o corpo é um desperdício
desce pelo ralo com meus resquícios para sempre
vejo as pessoas passando e percebo muitas
não se acham belas e a beleza é um desperdício
a incidência de restar paralelo como um segredo
cultivando certa voz que lhe soprasse sempre
a verdade que mais se estima do que é inútil
o brilho de alumínio da embalagem descartada
que reflete o céu aleatório de seu destino
o que respiram as cerdas da vassoura enquanto
chiam no chão da barbearia no meio da tarde quente
o clarão de um fósforo riscado em cômodo escuro
a consistência da bolha de luz que arrasta pelos móveis
o rumor de sombra de sua pele oscilante
o desperdício sempre foi sua insistente atenção
à musa que visita os alvéolos efêmeros dos fungos
à cultura de poeira e seu ilegível inventário de ácaros
ao azinhavre do utensílio que aposentou seu dono
à alegria provável do que é desnecessário
porque deixou de sê-lo e também à graça de nunca ter sido
o desperdício de olhar a esquina e não exigir mais nada
abandonar o saco plástico e imaginar a quanto
será elevado antes da tempestade na rua vazia
a parede descascada é uma paisagem extraterrestre
o alívio indiferente à chuva de meteoros
que dizimou de vez a urgência da vida de outrora
o universo decerto fosse mais seco não se infiltrasse
esta espessura de lágrima e riso que o desperdício
acumula em cada nicho de sua minuciosa colmeia
a inaudível aspereza do vento se houver vento













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