Ilustração de Talarico
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MURILO
MENDES (1901-1975)
A LAGARTIXA
Sentado
ao sol num banco de jardim romano observo uma lagartixa no seu contínuo
vaivém. Tento inutilmente agarrá-la;
mesmo que sim, ela escorregaria logo das minhas mãos; digo escorreria porque a
lagartixa tem algo de líquido.
Inaferrável
pequeno sáurio! procuro captar um milésimo-luz do seu olhar, certamente de uma
estranheza sem igual.
Que
brinquedo propor à lagartixa?
Cabra-cega, pique, chicote-queimado, talvez os únicos brinquedos
adaptáveis à sua condição, forma, agilidade, e aos seu gosto do enigma. O ideal seria dançar com ela uma ciranda, mas
afasto este pensamento cruel: a lagartixa não tem mãos como as nossas. Além disso, trata-se de uma
anarco-individualista: nunca vi lagartixas em bando; magnificamente só, a
lagartixa esgueira-se entre as pedras, os muros, as folhagens, perseguindo não
se sabe bem o quê; indecisa entre o sol e a sombra, talvez encontre na pedra a
síntese que mira: com efeito, a pedra resume unidade e dureza.
Falando
lagartixa, falo infância onde lagartixa
foi doce companheira das minhas horas
juiz-foranas, nos jardins e pomares daquele tempo. Falando infância, (adolescência, mocidade,
madureza e próxima velhice), não poderia deixar de apontar aqui uma figura
feminina; sem as figuras femininas duraria o mundo, de que também a lagartixa é
flexível comparsa?
**
É
a tarde de uma segunda-feira de carnaval; devo ter doze anos; estou sentado ao
sol num banco, no pomar da casa paterna, considerando os movimentos de uma
lagartixa que espreitava desde
semanas. Isto é, seria a mesma de
antes? Quem distingue ao certo as
lagartixas, quem distinguiria as meninas chinesas? E se houver lagartixas chinesas, meu Deus!
então o caso se complicará muitíssimo. Eu,
que gosto de dar nome a todas as coisas, não poderia batizar uma
lagartixa. Assim, quantas Heloísas,
Elisabetes e Mercedes não-nascidas!
De
repente desponta entre os jambeiros e os cambucazeiros minha namorada Dolores,
filha do advogado N... Vieira, fantasiada de princesa oriental; um vestido com
muitos babados e refolhos, entre verde, vermelho, azul, alaranjado; coberta de
lantejoulas; à cabeça um turbante de seda amarela. Eu gostava de Dolores, gostava demais do
carnaval, gostava de fantasias (se bem que nunca as usasse) mas não pude
tolerar aquele absurdo travesti que desfigurava minha linda ex-amiga, dando-lhe
mesmo – coisa terrível – um ar flácido.
Súbito
Dolores passou a inexistir para mim. Refletida
nas lantejoulas eu via a vulgaridade do clã Vieira. A lagartixa ia e vinha; não parou;indiferente
em absoluto à fantasia de Dolores, revelava, sem querer, bom gosto. Resolvi seguir sua lição, passando-a para o
plano dos homens.
A
menina-moça voltou para mim surpreendida:
-
Estão todos te esperando para a batalha de confete na rua Halfeld.
Lancei
os dados, decidido a intransigir, a quebrar a rotina, a me afirmar como gente:
-
Desculpe, Dolores, mas não posso ir.
-
Porque?
-
Estou muito interessado em estudar os movimentos daquela lagartixa.
Dolores
nem mordeu os lábios, como de praxe: partiu a todo o galope para avisar a minha
tribo que eu enlouquecera. Vieram todos, arlequins, pierrôs, pierretes,
colombinas, dominós, índios, feiticeiras, rajás armados de lanças-perfume,
sacos de confete, rolos de serpentinas; rodeando-me entre afeto, censura e
espanto.
Confirmei
minha informação anterior; ninguém conseguiu me arrancar dali. Com a
movimentação em torno dela, minha querida lagartixa, sardanita ou sardanisca,
desapareceu. Voltei em vão ao pomar nos
dias sucessivos; e perdi Dolores para sempre.
Murilo Mendes. A idade do serrote. RJ: Sabiá, 1968.
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