Este
texto, “Grandeur en misère van het
tropicalisme”, foi publicado na revista holandesa DE GIDS em
seu número de janeiro/fevereiro deste ano (o link vai abaixo). A revista, em formato tablóide, formato de tão significativa memória para quem foi
leitor da imprensa alternativa durante a ditadura implantada com o golpe de
1964, é a mais antiga revista dedicada à
literatura em terras holandesas, tendo sido fundada em 1837, ou seja, tem 180
anos de existência. Em seu expediente,
aliás, assim está escrito (aqui, um viva
ao Google Translator com o auxílio luxuoso do discernimento): “ De Gids [‘O
Guia’] é a mais antiga revista de cultura literária e geral dos Países Baixos e
uma das revistas deste tipo estabelecidas há mais tempo no mundo. O Guia concentra-se em
literatura, filosofia, sociologia, arte, política, ciência, história; em suma,
tudo o que é interessante, desde que inédito. A revista é publicada
bimestralmente e traz ensaios sobre temas atuais políticos, históricos e culturais,
prosa holandesa e traduzida, e poesia estrangeira.”
Quando o antropólogo Matthjis van de
Port (atualmente radicado na Bahia, onde estuda cultura e religiosidade popular
e faz pequenos e valiosos curta-metragens sobre esses assuntos) e o
editor, o romancista e ensaísta Edzard Mik, me convidaram para integrar um dossiê sobre os
trópicos que a revista lançaria no número(que acabou levando por título “Trópicos? Os trópicos não existem mais”), o que eles me pediram foi um texto que abordasse
a identidade possível de uma reflexão
sobre a cultura tropical feita por um “nativo”, pois a visão européia, e holandesa em particular, sobre a cultura tropical já era familiar a eles e já estava bem
clicherizada (e ambos me citaram o clichê “não existe pecado ao sul do Equador”). Falaram-me para eu pensar em algo como “usos
e abusos da idéia de tropical”. Foi precisamente
este o mote.
Me disseram ainda: você pode optar por
um ensaio ou por uma abordagem poético-literária do tema, a revista gosta e
investe nessas hibridizações de gênero. E
aqui aconteceu algo curioso. Quando perguntei
que espaço eu teria e soube que seriam três páginas, resolvi que seria
impossível um ensaio sobre o assunto em três páginas (aliás, qualquer ensaio
sobre qualquer assunto não dá para ser em três páginas). Assim, optei pela abordagem poético-literária. Depois eu soube que nos referíamos a espaços
diferentes; eu raciocinava na nossa formatação acadêmica habitual, A 4, o editor me falava em espaços
referentes às páginas da revista, o que me proporcionaria na verdade 7 ou 8
páginas. Mas disso eu só soube com o
trabalho já bem adiantado, e estava gostando de poder lidar com a imaginação
desataviada, além do que sabia que a revista gosta desses textos livres. E assim segui. E, para minha alegria, o texto
foi bastante bem recebido, depois de traduzido (imagino a trabalheira!) por Ane Lopes Michielsen.
Em suma: isto não é um ensaio. Como defini num certo momento na troca de
correspondências é uma “fantasia sobre
os devaneios e pesadelos de um país tropical”.
O texto, que começa citando, sem mencionar, o Catatau,
de Leminski também não é uma reflexão, ou sequer um
devaneio, sobre o tropicalismo, como a programação visual que acabou tomando na
revista sugere. Mas não tomo mais tempo
aqui não. Encaminho vocês, leitores, ao
texto. Em tempo: a versão da revista online não está com o meu
texto disponível: a íntegra da revista é da edição impressa; aos poucos é que
vão sendo disponibilizados todos os textos online.
FANTASIA SOBRE OS DEVANEIOS E OS PESADELOS DE UM PAÍS TROPICAL
(Sobre usos e abusos de tropical)
1.
Renatus
Cartesius pirou e antes de expirar sonhou o horror da natureza que o vácuo
tenta encher em vão; na verdade, dizendo
melhor, Cartesius vivenciou-o. Parece
que passara boa parte de sua vida, até os 40 anos, obcecado com as questões relativas à
produtividade da dúvida, é possível até que tenha escrito um discurso sobre o método, alguns
frangalhos de latim parecem atestá-lo,
talvez tivesse até, quem sabe, chegado a bom termo em sua enorme empreitada, mas ao aceitar o convite, numa manhã de 1636, para
vir aos trópicos com o Príncipe Nassau, acabou por desembarcar e finalmente se estabelecer por aqui, dedicando-se competentemente a afazeres
dispersos mas muito profícuos, ainda que
um tanto obscuros, adquirindo ao fim certa fama, certa notoriedade – embora não
obtivesse reconhecimento oficial, o que impediu de ser a sua glória – ao desenvolver
um tipo de atividade lúdica valendo-se uma pelota feita de couro de paca, num afã que
espantava e provocava o riso de seus contemporâneos mas que séculos mais tarde os ingleses
patenteariam, e que se expandiria pelo mundo como o jogo dos pés,
do pé na bola, o balípodo, o ludopédio.
Esse jogo concretizou todas as projeções
sonhadas por Cartesius na conjugação entre a geometria e a álgebra, as
coordenadas longitudinais e latitudinais no retângulo euclidiano em direção a
sua superação – para o quadrado já havia o xadrez, em concentração e fúria
equivalentes, mas em velocidade muito mais lenta. Foi depois, muito depois, que vieram Rinus
Michels, Johan Cruyff e Romário – e assim se pode resumir boa parte de uma longa história.
2.
Frequentemente
sonhamos que a tudo o trópico devora, em
sua entropia de plantas carnívoras de
raízes semoventes. A síntese a que
chegamos tantas vezes não passa em absoluto pela análise: fica brilhando,
zênite sem nadir. Assim nos
desentendemos, assim pensamos que nos entendemos, assim pensamos que o Outro
nos entende. E somos ficção, o sumo
dela.
3.
As
dualidades nos constituem perversamente:
nós as vemos como contrastes,
assim como transformamos toda diferença em oposição, todo signo em vetor sequioso
de seu oposto: Euclides da Cunha falou
em litoral e interior, Oswald de Andrade em floresta e escola, os tropicalistas em
formiplac & céu de anil, tudo sendo a herança barrocatólica que poucas
vezes recebeu a profundidade do corte sacrificial e redentor: mas momentos houve de exceção, anotando aqui, entre poucos outros: Euclides, por exemplo, deveria ser mais
lembrado não pela profecia que registrou, da boca do monumento que criou com Antonio Conselheiro: “o mar vai virar sertão o sertão vai virar
mar”, mas por seu próprio dilaceramento como intelectual, que abjurou seus equívocos de Bildung para engrandecer a humanidade com uma obra assombrosa de denúncia e invenção lingüística. Machado de Assis, pouco dado a explicitar
contrastes, o fez como se fosse a vingança suprema de seu obsessivo macho a
incriminar a mulher com o epíteto falsamente doce da cigana oblíqua e
dissimulada – na verdade, quem se
vingava da estupidez dominante do macho era Machado, o que demorou pelo menos uns 50 anos
para que se começasse a perceber: em Machado o contraste não se externa, mas
ali está, zênite sem nadir: seus Bento Santiago e Brás Cubas são os estúpidos
postos no ponto cego da estupidez circundante, por isso invisíveis. Uma das nossas apostas otimistas é que o Brasil ainda possa a vir a ser uma
nação a altura de honrar o nome de Machado de Assis. E de Euclides da Cunha.
4.
Sabia
Oswald, instruído por Blaise Cendrars: “Tendes as locomotivas cheias, ides
partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor
descuido vos fará partir na direção oposta ao Vosso destino.” Carregamos ainda
hoje a dúvida de saber se já não
cometemos grandemente o tal menor descuido.
Nesse caso, nosso destino terá sido jogado, como aconteceu com Macunaíma,
no sumidouro da Uiara, só nos restando desde então, parece, repetir sua narrativa na voz do papagaio. Oswald e Mário de Andrade sofreram os trópicos
com sinais trocados – e para acrescer a este drama, outro: sinais por vezes intercambiáveis.
5.
A
dualidade flagrada por Euclides da Cunha nos constitui ainda numa outra
dimensão , a de um desengonço continental:
como periferia, buscávamos até a segunda guerra a Europa francesa e
cruzávamos os mares de volta para lá estar, como cruzamos hoje os céus para ir
aos USA, mas ignoramos quase completamente nossos vizinhos tropicais: Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela...nomes da
América que nos cerca, exótica, estranha e longínqua, que fala outra língua, o castelhano tão
distante do português – mentira de
dimensão andina, que gostamos de repetir
– preferíamos no passado maltratar o perroquet francês, hoje até aprendemos o
inglês, o que também não importa muito, valendo muitas vezes só a sonoridade e o embromation.
6.
Antes
que dormíssemos apaziguados pelo lusotropicalismo freyreano, a antropofagia
oswaldiana nos manteve aberto pelo menos um dos olhos: enquanto o outro,
pálpebra cerrada, foi para a anunciação da Virgem sobre todos os
outeiros, a pupila vigilovoraz fixou-se no bispo Sardinha. Saía de cena o bom selvagem, arrombava a festa o mau selvagem. São histórias do último século que passou –
passou, mas não é tão certo que tenha acabado de todo. Talvez o nosso exílio de nós mesmos continue,
como em célebre primeira página nos
assinalava Sérgio Buarque de Holanda.
7.
O
tropical frondoso, pluviante e flutual, geograficamente
situado logo abaixo do equatorial amazônico, parece por vezes querer dar o tom de seu exclusivismo no tropical Brasil. Mas não é assim. Esse universal, como todo
universal, não resiste a que se cutuque por baixo. Não há apenas Jorge Amado e José Lins, há
Graciliano Ramos e sua ascese não religiosa, recusando o “resto de janta
abaianada”, a mesma recusada por João Cabral.
Esse tropical é milenarista, árido, em ascese comunista ou religiosa,
transgressora ou conservadora, força tropical semidesértica, da carência, da
pedra, do estoicismo e do messianismo, da moral rígida a vigorar entre as festas
do calendário cristão. A matriz
euclideana (da Cunha) deixa-se ver em tudo isso, em tudo o que há de vigoroso em Elomar Figueira Mello, em Ariano Suassuna, em
Luiz Gonzaga, em Glauber Rocha. Encontrando-se com a verticalidade setecentista do Aleijadinho chega às frondes de Guimarães
Rosa, mergulha nas montanhas, grutas e igrejas de Minas, desperta a lâmina
assombrosa da voz de Milton Nascimento, a lâmina seca da poesia de Drummond, as
plantas alucinógenas dos Murilos, Mendes e Rubião. E aqui já estamos entrando nas cidades, na
vocação urbana e urbanística de Minas, rara entre nós, que acabou por resultar
em JK e Niemeyer. Como antes a Mauritsstadt de Pernambuco não deu apenas a
pedra de João Cabral, deu dele mesmo o rio e o mangue, como de Alceu Valença, como
da Nação Zumbi, na periferia de Recife e Olinda.
8.
Mas
antes é preciso considerar o mais lembrado:
o tropical mais permeável ao exótico, mais permissivo e complacente. Do
húmus, dos liquens, dos manguezais, pantanais – Manoel de Barros! – e litorais.
Estereótipos de outros Caribes, de outros Hawaiis,
que encontraram no gênio de Dorival Caymmi quem os eternizasse – o que
obviamente implica anular sua estereotipia – e na potente sabedoria de Antonio Risério quem
o balizasse e mostrasse o nexo que a partir daí se construirá para o urbano do
pós-guerra, para além, novamente, da compreensão dos sobrados e mocambos de
Freyre. Esse tropical dá em Jorge Amado
também, claro, em João Ubaldo, bem como resulta no palimpsesto onde foram
renitentemente apagadas e reescritas e, mais recentemente, gravadas
fonomecanicamente – e nem sempre lidas ou ouvidas, o que é uma das dimensões da
nossa face trágica - os veios e as vozes
negras e indígenas, de Solano Trindade, Abdias, Clementina de Jesus, Juruna e
Terena. Quilombos e MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
9.
Melhor
talvez do que ninguém, é Caetano Veloso quem sempre chega às iluminadas sínteses do muito que somos, do
que precisamos ser, incluído aí o desalento da hipótese de que não venhamos a
ser jamais: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína.” Quando andamos por nossas periferias, olhamos
o casario dos moradores que a muito custo conseguem levantar algumas paredes,
olhamos para as escolas que ali subsistem, os templos religiosos que ali se
esgueiram... ou vamos para as construções suntuosas, erguidas com o dinheiro
público para glória de nossos faraós, comerciantes e banqueiros ou para os magníficos eventos de índole esportiva
e midiática, sejam viadutos, arenas... tudo parece assim, ruínas, ruínas,
ruínas que não chegaram a ser construções.
Presídios de nossas almas. Os shoppings, não. Estes em geral, intactos. Como as imensas igrejas marmorizadas.
10.
Olhar
para a metrópole hoje exige o esforço de tentar vê-la pelas lentes do MTST (Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto). Fenômeno recentíssimo de organização e politização
de trabalhadores despossuídos, estes, que estão em sua origem, vêm de longe em tempo e espaço: Quilombos e
MST, por certo, mas também o processo de gentrificação que está na base do Rio
de Janeiro de Lima Barreto, que se haussmannizou desumanizando-se há mais ou
menos um século. Hoje explodem arsenais entre o mar e os morros. Baionetas calam descontentes. O crime organizado empreende um êxodo rural
às avessas.
11.
Mas
que não se perca de início o fio do que de melhor a cultura – e dentro
dela a arte – burguesa e das classes médias urbanas logrou obter.
A cidade dos modernistas, a rigor, não era ainda a cidade que sairá do
processo de industrialização levado a
cabo por todo o período getulista – de 1930 a, com um breve interregno, 1954. São Paulo passa a existir de fato aí, a
partir desse período, em velocidade vertiginosa, para se tornar cidade a mais populosa das
Américas, uma das dez maiores do mundo. Em diferença marcante, o Rio, Salvador
e Recife abrigavam em seu seio tradições
culturais enraizadas desde o século XVI – São Paulo fez-se sobretudo de
trânsito e trocas. Seja como for, mesmo nos paulistas Mário e
Oswald, e assim também em Bandeira,
recifense que se radicou no Rio, é
visível nas suas obras a permanência de passados de certa forma nostálgicos em construções
de memória e de história, mesmo em se tratando de passado não totalmente
vivenciado por eles. É só com a poesia
de Drummond que o urbano despede as últimas nostalgias do passado rural. E é
com a prosa de Clarice Lispector também, um pouco mais tarde. Sem
reminiscências nostálgicas, sem exteriorizações ou anotações tropicais, sequer
pelo avesso, em Clarice emerge a voz urbana da mulher. Em Drummond não há nostalgia, mas há as marcas quase raivosas da passagem do indivíduo do interior do país
para o urbano, do recolhimento opressivo mineiro para o espanto atordoado do
litoral carioca. É o Rio, sem dúvida, que
acolherá essa poesia, como acolhe hoje a estátua do poeta à beira mar em
Copacabana. A poesia de Drummond foi
acolhida de inicio pelos dois grandes artífices do construtivismo urbano na
portentosa música mediatizada que se fez a partir da década de 1960, sobretudo
no Rio, em torno de Antonio Carlos Jobim e João Gilberto. Aos quais se deve acrescentar Vinícius de
Moraes, habitué da alta poesia como seu mestre e confrade Drummond. A bossa nova era ponto de chegada e
partida: ali desembocou a tradição do samba e do choro, gêneros
musicais populares criados a partir da matriz das musicalidades negro-mestiças cariocas
desde o começo do século XX. No meio do caminho o encontro com a lírica
modernista culta, de fundo neo-romântico, com acentuada consciência de construção, em Vinícius.
Musicalmente se deu o mesmo, com Jobim, maestro onde desaguavam Debussy
e Villa-Lobos além – e por causa – do ímpeto zen-provocativo de Koelreutter; daí a bossa nova partiu para o mundo, conquistou o
mundo, influenciou o jazz, que ela mesma, em low
profile, com a voz sussurrante e o violão em surdina de João, havia devorado e depurado em suas entranhas
discretamente antropófagas, como recomendava e profetizava Oswald. Biscoito fino para as massas. Nossa alma
tropical cantava ao ver o Rio de Janeiro. Como sempre, em nossa tradição
poética sentimental e sublimadora, onde se lê “alma”, leia-se “corpo”. Rio de Janeiro, cidade mulher. Lirismo de homens machos. Másculos.
12.
Mas
de repente foram os bárbaros que vieram.
Porque, como no poema de Kaváfis,
já estavam entre nós. No lirismo
misógino popular, revestido de admoestações morais de duplo sentido e de
sensualidade explícita e matreira. A
mulher que não tem decoro. A mulher que
gosta de apanhar. A mulher que é
decorosa porque sabe que apanhar do seu homem é a prova de amor. O homem que sabe respeitar a mulher do outro
homem e (por isso) bate só na sua. Nos infinitos
entrecruzamentos sócio-psicanalíticos aí implicados, uma mitopoética de
sangue, beijo e mordaça escorre do lirismo dos sambistas, Noel Rosa&Ismael
Silva&Wilson Batista, das vielas das favelas, das ruas dos subúrbios, dos
lares da falsa moralidade pequeno-burguesa do teatro de Nelson Rodrigues, das
taras de Dalton Trevisan, do hiper-realismo de Rubem Fonseca, do bas-fond de João Antonio. O que veio aos poucos se adocicando, como nos
engenhos de Gilberto Freyre, foi-se solidificando em duros tijolos que o método
Paulo Freire tentou ensinar a empilhar para erguer lares de libertação. Mas o conservadorismo vencedor do golpe em 64
convenceu que os tijolos eram de rapadura, doces. Ou pastéis de carne humana com caldo de cana
caiana. Trevas da alma lírica brasileira, dirá de novo Caetano, mulheres de
coronel, dirá Gilberto Gil. Perdoa-me
por me traíres, dirá Chico Buarque. As
coisas estão no mundo, só que é preciso aprender, dirá Paulinho da Viola. Mas
este já será um outro momento.
13.
Será
o momento em que os tropicalistas, equipados com altas doses de coragem e potência
inventiva musical e poética – IN-VEN-ÇÃO -, a reivindicarem para si o adjetivo
radical “tropical” ensinaram várias
lições básicas de sobrevivência na metrópole.
Nos vãos e desvãos das cidades, a partir de São Paulo, com o esteio
trazido da vivência da Bahia e da “cidade da Bahia” (Salvador), aliados à
vanguarda da Poesia Concreta do Trio Noigandres e da música contemporânea dos
maestros paulistas além do rock de altíssimo calibre dos Mutantes, até pode não ter sido o ensinamento para a vida
empírica mais pragmático em nossa sociedade tropical sombria, mas foi a espessura
de uma vivência artística que nos antenou e desprovincianizou, não sem pagar alto preço, incluindo prisão e exílio,
condenação pela direita e desconfiança e
desconforto para sempre incorporados pela esquerda, conectando-nos ao mundo
contemporâneo, estética e politicamente – no sentido de politização do
cotidiano: tarefa levada a cabo com pioneirismo e com o destemor de incorporar
a discussão e as possíveis vivências diferentes de família, sexo, gênero, raça,
drogas, suplementares a uma arte ousada
e libertária, correndo sempre por entre
escaramuças da vanguarda e do mercado: o pop na veia do mundo, a neo-vanguarda
sem revival sacralizante. Que heranças incorporar, que vivências
recusar? Saber separar o joio do trigo e
tantas vezes aproveitar o joio. Exemplos?
Sobretudo o que sempre fora associado no gosto do receptor
intelectualizado, por preconceitos classistas, ao pior da indústria do entretenimento, o rock
barato de Roberto & Erasmo Carlos, o sam(bluesrocksoul)BA de Jorge Ben Jor
e Tim Maia, o cinema barato, “chanchada”,
paródico dos musicais hollywoodianos. Na estética tropicalista
acentua-se ainda o contraste – nisso ele
é neo-antropófago, sim – entre o rural e o urbano, e o rural permanece (ou
retorna), mas ora como lembrança nostálgica, ora como pesadelo de onde não conseguimos
sair.
14.
Seria
esse o seu ponto fraco, apontado por um
marxista agudo e inteligente como Roberto Schwarz. Mas parece que teimamos em nos reconectar a
pesadelos de que não conseguimos sair, dando um nó nas tripas do marxismo por
mais inteligente que seja. E o rural, o arcaico, o errado serão o defeito de
fabricação – Tom Zé! – perfeito para o que queremos. Ou para o que quiseram os tropicalistas. Reproposição da contribuição milionária de
todos os erros, de que falava, outra vez, Oswald. Guerrilha, luta armada contra marchas de
famílias movidas por conservantismo cristão e medo de um comunismo caricato.
Toques de recolher, cachorros mortos nas ruas, policiais vigiando. War, children, it was just a shot away, happiness was a warm gun, era preciso estar atento e forte, não tivemos tempo de temer a morte.
15.
Só
nesta semana em que escrevo foram mais 99 mortos em massacres em dois
presídios. A média nacional por presídio este ano já é de 12 mortos. Em 1992, na maior penitenciária de São Paulo,
o Carandiru – hoje desativado – , uma
invasão da tropa mais violenta da Polícia Militar para conter um motim resultou
em 111 mortos. No presídio desta semana que teve 60 mortos, o comandante da PM
disse não ter invadido para contenção do motim para “evitar outro Carandiru”. Ou seja, admitiu incapacidade de controlar
suas forças de repressão. As autoridades dos dois estados onde ocorreram as
matanças se eximem de responsabilidade, dizendo que se trata de “guerra de
facções rivais”, como se não coubesse ao estado zelar pela segurança dos
apenados. Os números que apresento aqui são oficiais, o que vale dizer: despertam
sempre a suspeita de serem minimizados. De
qualquer forma, mais de vinte anos se passaram e prossegue o que estava no
terrível rap-canção “Haiti”, de Caetano e Gil, de 1993: “mas presos são quase
todos pretos/ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres/e
pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”. O que ecoa também em “Diário de um detento” do
extraordinário grupo paulistano hip-hop Racionais
MCs: “Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo.../quem mata mais ladrão ganha
medalha de prêmio/o ser humano é descartável no Brasil/como modess usado ou
bombril/Cadeia? Claro que o sistema não quis/esconde o que a novela não
diz/Ratatatá! sangue jorra como água/do ouvido, da boca e nariz/O Senhor é meu
pastor.../perdoe o que seu filho fez/morreu de bruços no salmo 23/sem padre,
sem repórter/sem arma, sem socorro/vai pegar HIV na boca do cachorro/cadáveres
no poço, no pátio interno/Adolf Hitler sorri no inferno!/o Robocop do governo é
frio, não sente pena/só ódio e ri como a hiena/mas quem vai acreditar no meu
depoimento?/Dia 3 de outubro, diário de um detento." O descaso não é apenas por presos, como está
no retrato de um Rio muito diferente daquele da bossa nova, num samba de 1987
de um dos mais caros filhos do movimento, Chico Buarque: “Rio de
ladeiras/civilização encruzilhada/cada ribanceira é uma nação/à sua maneira com
ladrão, lavadeiras, honra, tradição/fronteiras, munição pesada/São Sebastião
crivado/nublai minha visão/na noite da grande/fogueira desvairada.” Recuar no tempo a procura de monstruosidades
e seus testemunhos não é difícil.
Difícil é lidar com o lado sombrio da “alma brasileira”, que não
consegue superar os binarismos maniqueístas mais corriqueiros e dar um passo
mínimo em direção à dialética. Renatus
Cartesius piraria de vez em travar contato com nossa deriva relativista em
direção desembestada ao absoluto obscurantismo. Tantas tradições religiosas com
o vigor do politeísmo africano vicejaram por aqui e se dobraram à intolerância
neopentecostal que ocupa cada passo e
nos espreita de forma a cada dia mais ameaçadora.
16.
O
tropical pantaneiro da poesia de Manoel
de Barros parece estar com os dias contados, condenado aos campos de grãos transgênicos do
agronegócio. Os avanços sociais dos
governos de Lula & Dilma não resistiram às sanhudas investidas
conservadoras de sempre e foram a nocaute, menos por seus erros – que foram
muitos – e muito mais por seus acertos, poucos mas decisivos, de inclusão social. O Congresso que assim selou nossa sorte, afastando a presidenta
legitimamente eleita e contra a qual nada se comprovou de desabonador, o fez
numa indescritível sessão na qual imperou a grotesquerie
mais abusiva, mais cínica: votaram pelo impeachment, com os discursos
demagógicos mais inacreditáveis em seus fáceis efeitos melodramáticos,
personagens políticos sobre os quais
pairam suspeitas e mesmo sérias
acusações de lenocínio, pedofilia, tráfico de drogas e de gente, trabalho
escravo, apropriação indébita de propriedades, malversação de dinheiro público,
falências fraudulentas, extermínio de pessoas, estelionato, além de muitos
serem adúlteros contumazes, homossexuais
homofóbicos, apologistas da tortura e de torturadores. E o fizeram em nome de Deus, da pátria e da
família, valores supremos para resguardar a moralidade pública. O pesadelo tropical, contraluz da euforia
trágica tropicalista, prossegue.
17.
Nosso
sumo não é ficção.