História, crianças: Setembro de 1969. Para a apresentação da
canção “Gotham City”, de Jards Macalé com letra de Capinam, no IV Festival
Internacional da Canção, (TV Globo), sobem ao palco do Maracanãzinho o próprio
Macalé, completamente desconhecido do grande -
e mesmo do pequeno –
público, mulato barbudo, óculos fundo de
garrafa, vestindo uma bata que mais parecia um camisolão; além dele, os quatro integrantes da banda de rock Os Brazões,
sem camisa, corpos pintados de urucum, com colares em torno da testa, cheios de
guizos ruidoso; e mais ninguém menos que
Naná Vasconcelos – parece que incorporado à última hora à troupe – que saltava
pelo palco e comandava as tumbadoras. A
orquestra atacou com a solenidade possível – o Padrão Globo começava a sua
hegemonia – a introdução, um pastiche irôonico do prefixo de abertura do seriado Batman em arranjo a cargo de Rogério Duprat. Logo a seguir as
tumbadoras de Naná e as guitarras distorcidas dos Brazões entravam para uma
platéia cujo aturdimento chegaria ao ápice nos versos do refrão berrados por
Macalé e ecoados pelos músicos:
“CUIDADO! Há um morcego na porta principal/CUIDADO! Há um abismo na
porta principal!!!”
A letra de Capinam era a seguinte:
Aos 15 anos eu
nasci em Gotham city
Era um céu
alaranjado em Gotham city
Caçavam bruxas
no telhado em Gotham city
No dia da
independência nacional
Cuidado! Há um
morcego na porta principal
Cuidado! Há um
abismo na porta principal
Eu fiz um quarto
quase azul em Gotham city
Sobre os muros
altos da tradição em Gotham city
No cinto de
utilidades as verdades: Deus ajuda
A quem cedo
madruga em Gotham city
Cuidado! Há um
morcego na porta principal
Cuidado! Há um
abismo na porta principal
Só serei livre
se sair de Gotham city
Agora vivo o que
vivo em Gotham city
Mas vou fugir
com meu amor de Gotham city
A saída é a
porta principal
Cuidado! Há um
morcego na porta principal
Cuidado! Há um
abismo na porta principal
No céu de Gotham
city há um sinal
Sistema elétrico
e nervoso contra o mal
Meu amor não
dorme, meu amor não sonha
Não se fala mais
de amor em Gotham city
Cuidado! Há um
morcego na porta principal
Cuidado! Há um
abismo na porta principal
Ouça-se a gravação em "ambiente de festival":
Estava
ouvindo esta semana mesmo e comentando com amigos e os filhos essa gravação
ao vivo da apresentação de “Gotham Ciy”. Há tempos não a
ouvia, a performance eu vi pela TV nos meus 13 anos, entre aturdido e
fascinado (é o que Hugo Friedrich chama de “efeito de dissonância) pelo que se
passava naquele palco. E não há como deixar de anotar (com auxílio do livro de
Zuza Homem de Mello, A era dos festivais: uma parábola): a
apresentação de Jards Macalé veio logo na sequência da também atordoante
"Charles Anjo 45", com Jorge Ben e o Trio Mocotó. E foi o
festival que teve ainda a deliciosa "Ando meio desligado", dos
Mutantes - claro que nenhuma delas recebeu premiação expressiva. E o
que se passava naquele palco apenas nove
meses depois da decretação do AI-5, abrindo o mais terrível período de
repressão da história brasileira do século XX , precisa ser dimensionado entre
os efeitos traumáticos dos mais radicais experimentos a que o acirramento
do final do Tropicalismo havia levado a (de)composição de canções –
para falar com Tatit – no ano anterior: naquele palco toda a
performance de “Gotham City” inscreveu-se no
âmbito de uma estridência excessiva que impedia – deliberadamente, diga-se - sua
boa recepção pelo amplo público fora do círculo restritíssimo de iniciados nas
discussões envolvendo vanguarda, canções, tropicalismo e, sobretudo, as
relações entre arte e política. Não havia como compreender o óbvio: “há
um morcego na porta principal.” Batman, o justiceiro, quem é ele,
quem era ele, quem eram nossos morcegos justiceiros, que justiça
defendiam, já que se queriam crer onipresentes a partir do sinal nos
céus de Gotham City? Seria o vero custódio ou seria o que
não poderíamos em hipótese alguma deixá-lo escapar? Não importa, a
pergunta é a essa altura retórica, nós o deixamos escapar e não poderia: lá
está(va) ele, na porta principal, e não é/era o corvo sobre o busto de Palas da
sala escura do poeta. Éra o Estado terrorista, o que se valeu do ato arbitrário
para prender, fazer desaparecer, saquear, seqüestrar, matar, na certeza da
impunidade. Que importa a história, que importa um nome a zelar
velar se as balsas cheias dos despojos das cidades saqueadas não
interrompem sua furtiva viagem noturna?
Estamos hoje, 48 anos
depois, capazes de enxergá-lo? Aí estão os guardiões simbólicos da ordem, e todos eles
valem-se do que velam: caçam
bruxas a pretexto de resguardar dias santificados pelo Estado que se faz de
laico, enquanto esperam que cumpramos nossos papéis acautelados e amordaçados
como múmias atadas em clichês: não pense em crise, trabalhe, mulher vá ás
compras e traz o orçamento que eu libero as verbas, “Deus ajuda a quem cedo
madruga”. Certamente não foi à toa que
Capinan, o letrista de “Gotham City”, havia escrito antes mesmo, com 20 e
poucos anos, o mais incisivo poema
político de toda a década de 60, pouco depois do golpe de 64, “Inquisitorial”,
a que devemos sempre voltar
(cf. aqui: http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2012/02/jose-carlos-capinan.html) Ali se lê entre tantas passagens admiráveis:
(cf. aqui: http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2012/02/jose-carlos-capinan.html) Ali se lê entre tantas passagens admiráveis:
“Pergunto:
tu, ante o presente,
Como
te defines ao que será passado?
Há
urgência de resposta, antes que a noite chegue.
Carregarás
fardos para evitar
(Repara
que o rio corre e a noite vem como onda)
Ou
deixarás que apenas sejamos o tempo
E
irreparável memória?
(...)
Ah,
como louvamos o tempo
Que
nos põe distantes,
Só
importando em memória
A
nossa escolha e saída.”
Pois aqui
estamos nós hoje ante a gravidade do momento presente. As redes sociais brincam que na verdade são
vários morcegos e de fato são. Mas o
peso do tempo é grave.
Garotos: José Guilherme Merquior dedicou ao primeiro
livro de Capinam, Inquisitorial, uma
alentado ensaio, no qual anota com preciosa precisão sobre a dicção do poeta: fala
Merquior em uma gravidade sem tristeza.
Espantoso que Capinam fosse pouco mais do que um garoto – tinha 25 anos - a
despertar a atenção de um crítico da importância de Merquior? O texto vem assinado “Paris, abril de 1968”. Merquior tinha 27. Às portas do maio de 68, Paris. Tempos.
Na
mosca, Merquior: O poeta letrista fala da gravidade do que ocorre no mundo (o
plano do conteúdo) em uma elocução (o plano da forma) grave: seu
verso é fluido, mas tem peso – o que
significa precisa e metaforicamente: não afunda - , o que responde, de sua
parte, por sua não tristeza – não é empolado, não é pedante, pernóstico ou
perdido em retoricismos. Que se recordem
algumas de suas letras: “Jogaram a viola
no mundo/mas fui lá no fundo buscar” ou aquela admirável esconjuração da
morte: “gritando para assustar a coragem
da inimiga”, ou ainda “não deixar nada
mais do que as cinzas de um cigarro”, sem falar na sublime síntese em que
define o desejo: “ele pesa sobre a terra mais
que a lei da gravidade”. Pois em “Gotham
City” essa gravidade não dorme: a base
da letra é a métrica dodecassilábica (com variantes, principalmente para a
articulação com a melodia, como de resto é sempre nas canções bem resolvidas) e
a extensão e gravidade dos versos é o penhor da espalhafatosa (mas coerente com
o momento) performance de seu parceiro
Macalé: “Só serei livre se sair de Gotham city/Agora vivo o que vivo em Gotham city”. A “gravidade sem tristeza” para definir a
dicção de Capinam é um admirável achado de Merquior, sem mais.
Em
apresentações mais recentes, Jards Macalé tem cantado “Gotham City”. Mudou a performance, ficou mais afim a seu
histrionismo de malandro-porraloca-letrado-culto-carioca, a pedir que o vaiem
ao final de cada apresentação. Se perde
em gravidade, a performance reveste-se de sentidos matreiros que atestam a
permanência de alguma forma do estado geral de coisas flagrado na canção. Confira-se aqui nesta apresentação em São
Paulo, 2015:
O
abismo é inquietante. Aporia,
salto. Ei-lo. É a saída, sendo ao mesmo tempo o lócus do morcego. Não saímos de Gotham
City, ainda vivemos o que vivemos em Gotham City, é absolutamente urgente que
isso fique claro. Nós não enfrentamos o
morcego, ele é o poder do banditismo feito lei, nós sabemos disso, como sabemos
o que esses justiceiros fizeram todos esses anos, em que os que viveram felizes
em Gotham City habituaram-se chamar de “terrorista” uma mulher que teve a
coragem de pegar em armas e rumar para o
abismo. Melhor dizendo: chamaram – e
chamam – de terroristas todos os que tiveram a coragem de lutar contra o
arbítrio, ainda que alguns tenham se beneficiado – e continuem se beneficiando –
disso. O fato de Dilma Roussef não constituir um caso isolado atesta essa
funesta permanência.
É preciso fechar estas descosturadas
anotações pedindo desculpas pela
magnífica foto (infelizmente não achei os créditos) de tão medonha criatura. Melhor tradução para o que tentei dizer não
há.
Tempos sinistros vivemos. Heróis ou figuras carismáticas não há. Uma gerontocracia dos que sempre estiveram no poder e dos sucessores por 64, esterilizou a brisa fresca da juventude e, de roldão, aumentou o fosso e eliminou a troca de experiências entre as gerações.
ResponderExcluir"Gerontocracia" é, de fato. E mais do que isso, é uma gerontocracia transtemporal, trans-histórica, é preciso achar uma maneira de que não venha a ser perene.
ExcluirObrigado, um abraço