domingo, 29 de outubro de 2017

O GATO METONÍMICO

                                        ou: Disiecta membra




cabeça de camundongo
de calango língua
pé de galinha
rabo de lagartixa
penas de sabiá
cambacica
juriti
carriça
carapaça de escaravelho
ao sol ressecada
pele de jararaca
escamas da sardinha roubada
à beira da vala me olha com olhos de rã
gourmet rigoroso
à sua maneira

o gato oferece
suas metonímias

sábado, 7 de outubro de 2017

NUNO RAU: CINCO POEMAS DE MECÂNICA APLICADA





ZEITGEIST, OU PARAPSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

                            para Roberto Bozzetti

o Espírito do Tempo eu nunca vi:
devo estar cego, ou ando desfocado,
se pra cavalo deste santo irado
não mostro vocação nem pedigree.
Não sei se escrito ou psicografado,
me dizem que ele anda por aí
disperso, esparso em tudo o quanto li,
e eu procurando aqui, bem do meu lado.
Mas não me cabem passos nesta dança,
só a sensação de ter perdido o bonde
e visto as tais flores no ar [sem hastes],
quando, virando cabos e esperanças,
uma voz sussurrava não sei onde:
“Ainda é cedo, amor, mal começaste...”




SÁBADO EM COPACABANA

a menina olha o mar
do outro lado da avenida  Ela está parada
no calçadão enquanto
os carros passam
as noites passam
as suas chances
passam enquanto seu olhos
trilham o meio do breu das águas
e se perguntam onde foram parar
os dólares e os euros
que clientes americanos e italianos
largavam por cima
do lençol molhado de suor
e esperma  Ela não sabe que a máquina
de imprimir notas verdes
está emperrada no além
do breu das águas e os gringos
andam agora com as mãos
nos bolsos no olho
da rua  Ela tem sonhos
psycho em que dança
nua com as colunas de uma igreja
abandonada entre
orgasmos
numa batida trance
numa batida trance
numa batida trance  Ela
tem sonhos ácidos em que seus dedos
gozam quando tocam as notas
verdes que saltam de uma pauta
como cédulas de cinquenta
na batida
do funk  Ela tem sonhos
mínimos em que seu corpo
acende feito neon quando milhões
de mãos se esfregam
em suas pernas
perfeitas de cleópatra
do subúrbio
e seus poros aspiram moedas
que douram seus pelos
como água oxigenada e vão
direto para a conta
bancária do paraíso
fiscal através de cabos
subterrâneos  Copacabana
é um delírio nas retinas, este lugar
é um sonho em que você
não consegue dormir uma noite
que seja, ela
pensa de dentro
do inferninho da beira da praia
à meia-luz  Ela tem sonhos
turvos com um nirvana
cheio de lojas que seu dinheiro
pode comprar porque Copacabana
tatuou em sua pele
com saliva
todas as línguas
que o mundo fala
quando  não quer
dizer nada








FRAGMENTAÇÃO


tenho escrito poemas
aos pedaços, espalhados
por e-mails, contra-
capas,  guardanapos, mensagens
instantâneas, na verdade
qualquer pedaço de papel
que me olhe com sua interrogação
branca, seu jeito
de esfinge dando bandeira em cima
de um móvel, mata-
borrão de palavras fazendo
pose de papiros, tenho
escrito poemas
em pedaços que não quero
juntar, tenho pedido às canetas
que falhem, às teclas
que emperrem quando
envio cada fragmento
a um destino diferente, rasurando
os vínculos, perdendo
a linha como quem deleta
um telefone importante, tenho
esperado que os amigos
se distraiam entre as amenidades
com que disfarço o contrabando
das palavras, tenho lido
muitos poemas e sinto
tédio frente ao presente
que ainda pretende
chocar quando retiro
os andaimes e o impacto
não penetra além
da película, imagem.  Então, pra ver tudo
melhor arranquei
meus olhos e joguei no fundo de um copo
sem fundo – é de lá que passei
a interrogar o abismo
dos céus como um burocrata afogado
em papéis velhos enquanto anjos
sem pedigree entoam salmos
punks de três acordes, distorção
amplificada e loop
frenético diante da parede
transparente onde rabisco
versos com uma tinta
tão negra que a grande noite
dos séculos não vai deixar
ninguém ler.



NO ALÉM DO LABIRINTO

                   para Antonio Cícero

agora o mar, um útero, me aguarda
gelado, e o choque logo transformado
em asfixia [e dela, num só passo
áspero e rápido, ao balé que as algas
fantasmagóricas desenham na água]
não assusta, nem antes o sol claro
contra o azul infinito recortado
com seu halo, nem a visão das vagas
e das terras ao longe que eu tanto
quis um dia conhecer, nem a brisa
que do calor do sol me distraía.
Tudo isso pensava ontem quando
olhava seu rosto e algo me vinha
do futuro, num susto, e você ria.



ARS POÉTICA

diga logo e que você tem a dizer e saia


Nuno Rau.  Mecânica aplicada.  São Paulo: Patuá, 2017.


domingo, 1 de outubro de 2017

CINCO POEMAS DE ELESBÃO RIBEIRO (1946)

MACHADIANA

tantas missas assisti
tantos braços perdi



TERAPIA

é mesmo impagável a minha amada
trouxe-me para casa do hospital
tinha operado o joelho
trouxe uma garrafa de vinho
acendeu um charuto
abriu as pernas
anda
vamos cuidar desse joelho



PROJEÇÕES

os deuses que os homens criam são mais bonitos
mais garbosos mais sublimes
do que os homens que os deuses criam




De “Cantigas para ninar raparigas românticas tanto quanto eu”

5

de tanto ouvir histórias
que lhe contava a mãe
andava a pobre menina pobre
para desespero do pai
pobre sapateiro da aldeia
a caçar sapos pelos charcos

não percas tempo menina
o sapo que procurar é príncipe
no palácio real
disse-lhe a bruxa

se queres tanto beijar o príncipe
faço-te uma bela princesa
assim fez

foi a pobre menina rica princesa
beijar o príncipe
o rico príncipe voltou a sapo

então não sabias que sou má
disse a bruxa à pobre menina



PARTILHAMENTO

pegou-a nua na cama com outro
nu também
nus estavam nus saíram correndo
ficou fulo da vida
queria tanto partilhar


         Os três primeiros poemas, de Estação Piedade (2013); os outros dois são de Namorada anarquista (2014), todos editados pela Editora Texto Território.  Neste dia 03 de outubro, eu e Elesbão lançaremos nossos livros mais recentes, respectivamente Despreparação para a morte e Abnegação (v. capa), no auditório do PAT, na UFRRJ, campus Seropédica às 18:00 h, com leitura de poemas e debate. Os dois livros são editados pela Editora Texto Território.