ZEITGEIST, OU PARAPSICOLOGIA DA
COMPOSIÇÃO
para Roberto
Bozzetti
o Espírito do Tempo eu nunca
vi:
devo estar cego, ou ando
desfocado,
se pra cavalo deste santo irado
não mostro vocação nem
pedigree.
Não sei se escrito ou
psicografado,
me dizem que ele anda por aí
disperso, esparso em tudo o
quanto li,
e eu procurando aqui, bem do
meu lado.
Mas não me cabem passos nesta
dança,
só a sensação de ter perdido o
bonde
e visto as tais flores no ar [sem hastes],
quando, virando cabos e
esperanças,
uma voz sussurrava não sei
onde:
“Ainda
é cedo, amor, mal começaste...”
SÁBADO
EM COPACABANA
a menina olha o mar
do outro lado da avenida Ela está parada
no calçadão enquanto
os carros passam
as noites passam
as suas chances
passam enquanto seu olhos
trilham o meio do breu das
águas
e se perguntam onde foram parar
os dólares e os euros
que clientes americanos e
italianos
largavam por cima
do lençol molhado de suor
e esperma Ela não sabe que a máquina
de imprimir notas verdes
está emperrada no além
do breu das águas e os gringos
andam agora com as mãos
nos bolsos no olho
da rua Ela tem sonhos
psycho em que dança
nua com as colunas de uma
igreja
abandonada entre
orgasmos
numa batida trance
numa batida trance
numa batida trance Ela
tem sonhos ácidos em que seus
dedos
gozam quando tocam as notas
verdes que saltam de uma pauta
como cédulas de cinquenta
na batida
do funk Ela tem sonhos
mínimos em que seu corpo
acende feito neon quando
milhões
de mãos se esfregam
em suas pernas
perfeitas de cleópatra
do subúrbio
e seus poros aspiram moedas
que douram seus pelos
como água oxigenada e vão
direto para a conta
bancária do paraíso
fiscal através de cabos
subterrâneos Copacabana
é um delírio nas retinas, este
lugar
é um sonho em que você
não consegue dormir uma noite
que seja, ela
pensa de dentro
do inferninho da beira da praia
à meia-luz Ela tem sonhos
turvos com um nirvana
cheio de lojas que seu dinheiro
pode comprar porque Copacabana
tatuou em sua pele
com saliva
todas as línguas
que o mundo fala
quando não quer
dizer nada
FRAGMENTAÇÃO
tenho escrito poemas
aos pedaços, espalhados
por e-mails, contra-
capas, guardanapos, mensagens
instantâneas, na verdade
qualquer pedaço de papel
que me olhe com sua
interrogação
branca, seu jeito
de esfinge dando bandeira em
cima
de um móvel, mata-
borrão de palavras fazendo
pose de papiros, tenho
escrito poemas
em pedaços que não quero
juntar, tenho pedido às canetas
que falhem, às teclas
que emperrem quando
envio cada fragmento
a um destino diferente,
rasurando
os vínculos, perdendo
a linha como quem deleta
um telefone importante, tenho
esperado que os amigos
se distraiam entre as
amenidades
com que disfarço o contrabando
das palavras, tenho lido
muitos poemas e sinto
tédio frente ao presente
que ainda pretende
chocar quando retiro
os andaimes e o impacto
não penetra além
da película, imagem. Então, pra ver tudo
melhor arranquei
meus olhos e joguei no fundo de
um copo
sem fundo – é de lá que passei
a interrogar o abismo
dos céus como um burocrata
afogado
em papéis velhos enquanto anjos
sem pedigree entoam salmos
punks de três acordes, distorção
amplificada e loop
frenético diante da parede
transparente onde rabisco
versos com uma tinta
tão negra que a grande noite
dos séculos não vai deixar
ninguém ler.
NO
ALÉM DO LABIRINTO
para Antonio
Cícero
agora o mar, um útero, me
aguarda
gelado, e o choque logo
transformado
em asfixia [e dela, num só passo
áspero e rápido, ao balé que as
algas
fantasmagóricas desenham na água]
não assusta, nem antes o sol
claro
contra o azul infinito
recortado
com seu halo, nem a visão das
vagas
e das terras ao longe que eu
tanto
quis um dia conhecer, nem a
brisa
que do calor do sol me
distraía.
Tudo isso pensava ontem quando
olhava seu rosto e algo me
vinha
do futuro, num susto, e você
ria.
ARS
POÉTICA
diga logo e que você tem a
dizer e saia
Nuno
Rau. Mecânica
aplicada. São Paulo: Patuá, 2017.