sábado, 7 de outubro de 2017

NUNO RAU: CINCO POEMAS DE MECÂNICA APLICADA





ZEITGEIST, OU PARAPSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

                            para Roberto Bozzetti

o Espírito do Tempo eu nunca vi:
devo estar cego, ou ando desfocado,
se pra cavalo deste santo irado
não mostro vocação nem pedigree.
Não sei se escrito ou psicografado,
me dizem que ele anda por aí
disperso, esparso em tudo o quanto li,
e eu procurando aqui, bem do meu lado.
Mas não me cabem passos nesta dança,
só a sensação de ter perdido o bonde
e visto as tais flores no ar [sem hastes],
quando, virando cabos e esperanças,
uma voz sussurrava não sei onde:
“Ainda é cedo, amor, mal começaste...”




SÁBADO EM COPACABANA

a menina olha o mar
do outro lado da avenida  Ela está parada
no calçadão enquanto
os carros passam
as noites passam
as suas chances
passam enquanto seu olhos
trilham o meio do breu das águas
e se perguntam onde foram parar
os dólares e os euros
que clientes americanos e italianos
largavam por cima
do lençol molhado de suor
e esperma  Ela não sabe que a máquina
de imprimir notas verdes
está emperrada no além
do breu das águas e os gringos
andam agora com as mãos
nos bolsos no olho
da rua  Ela tem sonhos
psycho em que dança
nua com as colunas de uma igreja
abandonada entre
orgasmos
numa batida trance
numa batida trance
numa batida trance  Ela
tem sonhos ácidos em que seus dedos
gozam quando tocam as notas
verdes que saltam de uma pauta
como cédulas de cinquenta
na batida
do funk  Ela tem sonhos
mínimos em que seu corpo
acende feito neon quando milhões
de mãos se esfregam
em suas pernas
perfeitas de cleópatra
do subúrbio
e seus poros aspiram moedas
que douram seus pelos
como água oxigenada e vão
direto para a conta
bancária do paraíso
fiscal através de cabos
subterrâneos  Copacabana
é um delírio nas retinas, este lugar
é um sonho em que você
não consegue dormir uma noite
que seja, ela
pensa de dentro
do inferninho da beira da praia
à meia-luz  Ela tem sonhos
turvos com um nirvana
cheio de lojas que seu dinheiro
pode comprar porque Copacabana
tatuou em sua pele
com saliva
todas as línguas
que o mundo fala
quando  não quer
dizer nada








FRAGMENTAÇÃO


tenho escrito poemas
aos pedaços, espalhados
por e-mails, contra-
capas,  guardanapos, mensagens
instantâneas, na verdade
qualquer pedaço de papel
que me olhe com sua interrogação
branca, seu jeito
de esfinge dando bandeira em cima
de um móvel, mata-
borrão de palavras fazendo
pose de papiros, tenho
escrito poemas
em pedaços que não quero
juntar, tenho pedido às canetas
que falhem, às teclas
que emperrem quando
envio cada fragmento
a um destino diferente, rasurando
os vínculos, perdendo
a linha como quem deleta
um telefone importante, tenho
esperado que os amigos
se distraiam entre as amenidades
com que disfarço o contrabando
das palavras, tenho lido
muitos poemas e sinto
tédio frente ao presente
que ainda pretende
chocar quando retiro
os andaimes e o impacto
não penetra além
da película, imagem.  Então, pra ver tudo
melhor arranquei
meus olhos e joguei no fundo de um copo
sem fundo – é de lá que passei
a interrogar o abismo
dos céus como um burocrata afogado
em papéis velhos enquanto anjos
sem pedigree entoam salmos
punks de três acordes, distorção
amplificada e loop
frenético diante da parede
transparente onde rabisco
versos com uma tinta
tão negra que a grande noite
dos séculos não vai deixar
ninguém ler.



NO ALÉM DO LABIRINTO

                   para Antonio Cícero

agora o mar, um útero, me aguarda
gelado, e o choque logo transformado
em asfixia [e dela, num só passo
áspero e rápido, ao balé que as algas
fantasmagóricas desenham na água]
não assusta, nem antes o sol claro
contra o azul infinito recortado
com seu halo, nem a visão das vagas
e das terras ao longe que eu tanto
quis um dia conhecer, nem a brisa
que do calor do sol me distraía.
Tudo isso pensava ontem quando
olhava seu rosto e algo me vinha
do futuro, num susto, e você ria.



ARS POÉTICA

diga logo e que você tem a dizer e saia


Nuno Rau.  Mecânica aplicada.  São Paulo: Patuá, 2017.


Nenhum comentário:

Postar um comentário