domingo, 1 de abril de 2012

A BUCHADA DE CARNEIRO DE BRAGA E O VATAPÁ DE CAYMMI NA ENTRADA DO OUTONO

            Mário Faustino desdenhava da crônica e dos poetas que ele admirava e cuja admiração parecia decrescer a cada vez que ele lembrava que andavam se entregando ao exercício da crônica jornalística.  No fundo – e no raso – isso me parece um equívoco, mas quem sou eu  pra discutir com Mário Faustino, poeta e agitador cultural de minha muita admiração, que se fosse vivo ainda estaria por aí com 80 e poucos anos e teria muito provavelmente construído uma obra basilar de nossa poesia e da nossa crítica – a exemplo do que fizeram os concretistas seus amigos e também eles alvo de algumas  discordâncias quanto às questões de poética.  Aliás, o que teria sido da relação entre eles, não tivesse Faustino morrido naquele acidente aéreo em 1962?
                Suposições, conjeturas, tergiversações.  Assumo  aqui, agora e frequentemente,  um certo tom  de crônica, eu que desde ontem ando lendo e relendo Rubem Braga por dever de ofício.  Braga cronista fez para mim nas nossas letras aquilo que de mais próximo tivemos dos poemas em prosa baudelaireanos, o que é uma coisa a se investigar com mais profundidade,  talvez.   Mas há crônicas de Braga que são textos definitivos, daqueles peremptos, aqueles que atravessarão os tempos – e creio que de ninguém mais, além de Braga, pelo menos em quantidade.  Não sei se é o caso desta crônica que posto aqui hoje, e que não posto exatamente por estas razões em torno das quais fico remanchando.
                Posto porque nunca a tinha lido –  que eu lembre, pelo menos –, porque ela é magnífica, e porque é uma homenagem à altura daquele que considero um dos dois pratos mais espetaculares da cozinha brasileira.  Razão pela qual a postagem é complementada pelo outro prato que merece a mesma honra: o vatapá.  E que recebeu tratamento à altura do gênio Dorival Caymmi, tão genial que se você tiver alguma prática e boa intuição culinária dá pra fazer um vatapá seguindo o que diz a letra.   Rubem Braga e Dorival Caymmi eram, ainda por cima, amicíssimos, o que faz desta postagem um convite à alegria nesta entrada de outono.
                Há diversos vídeos de “Vatapá” no youtube, vários ótimos.  Fiquei entre postar este com os filhos do patriarca e um com João Bosco, acompanhado de Jamil Joanes e Vitor Biglione. Mas homenagear o clã acabou dando a diretriz, além do que o arranjo muito jobiniano de Dori (pena  os demais músicos não serem identificados) me convenceu de vez, trazendo à lembrança também os sons de Tom.
                Em tempo: pode parecer que falar em buchada de carneiro em pleno Domingo de Ramos, que abre a semana da páscoa, seria uma provocação anti-católica.  Nem pensei nisso, a não ser agora.  Mas a idéia de uma implicância – ainda que gratuita – também não me desagrada de todo.  

BUCHADA DE CARNEIRO
               Um dia, quando este mundo for realmente cristão, eu acho que ninguém terá coragem de matar um carneiro. Até que já devia ser pecado matar carneirinho. Tem tanto pecado na religião que a gente por dentro mesmo, não acha, não sente que é pecado - e matar um carneiro, ato bárbaro, contra um bichinho tão inocente, a balir, a chorar, é considerado coisa honesta! Entretanto desejar a mulher do próximo é pecado. Vamos que seja pecado avançar na mulher do próximo, telefonar com más intenções para a mulher do próximo, dançar muito apertado com a mulher do próximo - mas cobiçar, meu Deus, não devia ser pecado, porque muitas vezes é somente castigo e aflição; eu que o diga!
              Mas voltemos ao carneirinho; e contemos que tio Estácio carregou o bicho dentro da camioneta horas e horas, o tempo todo ele chorando, como se adivinhasse o fim da viagem. Tio Estácio até chegou a botar um esparadrapo tapando a boca do bichinho para ele não se lamuriar mais, porque os balidos feriam a consciência, cortavam o coração dos algozes. Mas de esparadrapo na boca o carneinho ficou tão infeliz chorando para dentro, tão desgraçado, que tio Estácio tirou o esparadrapo. E durante horas continuou aquela triste lamentação. Foi de noite que eles chegaram ao sítio. Um camarada queria amarrar o carneirinho lá fora, onde ele pudesse comer capim, tio Estácio achou que era perigoso, tem muita cobra; “aliás, ponderou, como ele vai morrer amanhã, não convém que coma hoje; assim dá menos trabalho para limpar". Vejam que bom coração é o tio Estácio!
               No dia seguinte, ao romper da alva, deu-se a execução, feita com requintes de técnica. Oh, se alguma senhora me lê, pare por aqui; eu sou um repórter fiel e tenho de contar tudo. A verdade é que não assisti ao ato nefando; tio Estácio também não; o carrasco foi Argemiro; o local afastado da casa-grande. Ficamos tomando refresco de maracujá para acalmar os nervos, procurando não pensar no que estava acontecendo naquele momento. Juro que eu ainda tinha uma vaga esperança, um sonho louco de que o crime não se concretizasse, o carneirinho talvez pudesse fugir, ou talvez na hora o braço de Argemiro tombasse...
             Mas aconteceu:  uma paulada rija na cabeça e depois o bichinho, ainda vivo, foi sangrado.
             É horrível pensar nisso. Vamos encerrar o assunto. Na verdade não houve mais nada. Apenas D. Irene passou o dia inteiro muito ocupada, dirigindo o serviço de duas negras,  e ela mesma trabalhando como doida.
             No dia seguinte todo mundo acordou com um ar estranho, Lula e Juca disseram que nem queriam tomar café, Mário e Manuel chegaram de longe, havia alguma coisa no ar. Pelas duas ou três horas da tarde essa coisa que estava no ar aterrissou na mesa.
             Lá em cima eu falei de religião. Pois se há alguma coisa que pode ar uma idéia de céu, de bem-aventurança, de gostosura plena - é buchada. Intestinos e vísceras mil, sangue em sarapatel, tudo se confunde junto ao pirão, esse fabuloso pirão em que a gente sente a alma celestial do carneirinho. Devo dizer que os miolos foram comidos dentro do crânio, com toda a dignidade; e aquela parte em que o carneiro prova que não é ovelha foi petiscada frita - uma delícia. Comemos, comemos, comemos, comemos; e cada vírgula quer dizer pelo menos uma cachacinha, e o ponto e vírgula pelo menos duas. O ponto final foi um grande sono de rede. E se vocês além de tudo ainda querem saber o moral história, direi baixinho, envergonhado e contrafeito, mas confessarei: o crime compensa.

                                                                           Fevereiro, 1955

In: A cidade e a roça, 2 ed. Editora do Autor, 1961.


VATAPÁ
Dorival Caymmi
( vídeo de 1984, com Danilo e Dori Caymmi)

Quem quiser vatapá, ô
Que procure fazer
Primeiro o fubá
Depois o dendê
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Amendoim, camarão, rala um coco
Na hora de machucar
Sal com gengibre e cebola, iaiá
Na hora de temperar
Não para de mexer, ô
Que é pra não embolar
Panela no fogo
Não deixa queimar
Com qualquer dez mil réis e uma nêga ô
Se faz um vatapá
Se faz um vatapá
Que bom vatapá




2 comentários:

  1. Eu também não sou ninguém, mas concordo com você em que Faustino não tinha razão neste caso. De "quem sou eu?" em "quem sou eu?", vai que ganhamos? Também estou em fase de crônica e li agora "Viúva na praia". É uma beleza, um perfeito antídoto contra a morbidez. Rubem Braga desmente Faustino. É o suficiente, não é?

    O Caymmi também está uma beleza. Estou vendo algumas músicas dele nas aulas de violão. De longe, estamos vivendo quase o mesmo.

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  2. Mariana querida,
    pois é, acho que dá para situar e de certa forma datar o que diz o Faustino, não é? quando mais não seja, por conta da excelência dos textos do Rubem Braga, que resistem e resistirão. e a crônica é fascinante, em especial a desses anos 50/60 quando através delas nós vemos um desenho de uma nova cidade. não que elas valham como documentos exatamente, mas como os registros de novos olhares, novas percepções. e as alturas impressionantes que algumas atingem mesmo. essa "Viúva na praia" diz de tudo isso. e não tem um quê da excelência das provocações baudelaireanas? a mim me parece - ou será que estou sendo pouco exigente com o que seria o "meu Baudelaire"? Não sei.
    quanto a ouvir você tocar Caymmi, só lamento que estejamos vivendo assim tão de longe.
    Um beijo grande do
    Bozzetti

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