A
MULHER DE LOT
Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras
razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de
prata.
Por distração – amarrando a tira da
sandália.
Para não olhar mais para a nuca
virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu
morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio na esperança de
Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá
do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a
trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde
pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes
de abutres.
Já não eram bons nem maus –
simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico
consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu
vestido.
Tive a impressão de que me viam dos
muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões
mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou,
roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o
passo.
Na beira trotava um hamster apoiado
nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para
trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves
mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias
vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia
que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivesem
abertos.
É possível que ao cair meu rosto
fitasse a cidade.
PRIMEIRA
FOTO DE HITLER
E quem é essa gracinha de tiptop?
É Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco,
raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coração do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos.
Tradução
de Regina Przybycien
Wislawa
Szymborska. Poemas. Companhia das
Letras, 2011.
Atordoado. Acho que a palavra define bem como fiquei ao
travar contato, não faz nem um ano, com a poesia dessa polonesa, ganhadora do
Nobel em 1996, morta no começo deste 2012, aos 90 anos. Me deparei numa livraria com os poemas de Szymborska
traduzidos por Regina Przybycien, e
desde então não me canso de lê-los e de neles
descobrir sempre algo que me atordoa.
Tinha
tomado aqui a firme decisão de escolher apenas um poema como representativo do
que eu gostaria que os leitores deste blog conhecessem ao travar contato com Szymborska. Não consegui.
Foi difícil deixar de publicar quatro de uma vez. Acabei me fixando em apenas dois: “A
mulher de Lot” toma a si, com sucesso, a jubilosa tarefa de tirar de cima das
mulheres o epíteto bíblico nada lisonjeiro da desobediente curiosidade feminina
a ser punida pela crueldade divina. As razões por que ela teria olhado para trás
não incluem a incontinente bisbilhotice gratuita, nem demonstram
necessariamente que seu espírito ainda estaria ligado em pecado a Sodoma (as
duas interpretações mais freqüentes, quero crer, do mito bíblico pelos
cristãos), mas são desfiadas com uma naturalidade impressionante de hipóteses –
todas – plausíveis e algumas terríveis: o verso 11, neste particular me lembra,
por sua desolação, o terrível escrito do pórtico do Inferno em Dante. Já “Primeira foto de Hitler” reúne os
elementos magistrais de sua poesia, com um inequívoco, porque explícito, acréscimo
de humor cruel da mais alta potência.
Creio
que o atordoante nessa poesia vem muito
de sua dicção coloquial (lógico que confio aqui às cegas na competência da
tradução – que já li ser de fato muito boa) e de portar um não-sei-quê do olhar
de uma pessoa comum, que só não o fosse por se obrigar a exercitar um olhar
insensato sobre o mundo. Não sei se me
faço entender. Acho que não. Não importa. Importa ler Wislawa Szymborska.