Uma das primeiras postagens deste blog foi sobre Graciliano
Ramos, visto por seu filho, o também escritor Ricardo Ramos, num valioso livro
dedicado às lembranças de seu convívio com o velho, Retrato
fragmentado.
http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2010/12/graciliano-em-dois-fragmentos.html Arrumando estantes aqui,
e aproveitando que a FLIP deste ano é
dedicada a Graciliano, um dos escritores
do meu fatal lado esquerdo, resolvi vadiar um pouco pelo livro de Ricardo. E por outras páginas, alusivas ao mestre
alagoano. Ficam sendo fragmentos dos
fragmentos e de outros fragmentos...
Na página
32 de Retrato fragmentado leio:
“A linguagem, para Graciliano, era um
problema. Ou casos a resolver, e não dos
mais corriqueiros. Tanto que demandava
pesquisa, de raízes ou eufonias, sem muito a ver com as tendências de
época… meu cunhado James Amado me
relembra um diálogo, bastante longo, em que ele descartava o modernista “me dê”,
por não encontrar base na sua realidade oral, nem na gramática, em benefício de
um “dê cá”, real e fluente.
Há outros
exemplos, inúmeros, que pedem somente esforço de memória. Um deles meu pai me contou, reconstituindo o
tempo em que escrevia São Bernardo na
língua de Paulo Honório. Estava sentado
na varanda da casa de Palmeira dos Índios, trabalhando, quando chega Clóvis, um
dos seus irmãos mais moços, fazendeiro, eventual consultor para assuntos do
agreste e se apeia afogueado, suando. Papai o chama. Esbaforido meu tio o
atende, ouve a pergunta que o surpreende, dá de ombros, responde atravessado:
- Ora,
Grace! Quem pariu mateus que o balance!
Ele dá uma
gargalhada e agradece:
- Obrigado,
Clóvis. Era isso que eu queria.”
Mais adiante, na 191:
“Logo após
sua morte foi publicado “Máscara mortuária de Graciliano Ramos” soneto de
Vinícius de Moraes; o poema “Graciliano Ramos”, de João Cabral de Melo Neto,
saiu a seguir.
O verso inicial
de Vinícius, “Feito só, sua máscara paterna”, diz bem das suas relações com
Graciliano. Durante a doença do Velho,
ele nos visitava regularmente. Chegava
educado, atencioso, encantador, ficava o tempo requerido, nem muito nem pouco,
a nos entreter amável e inteligente. Era
uma presença que fazia bem a meu pai, a todos nós. E continuou além dele, ainda que mais
espaçada, no convívio conosco. Bar,
livraria, jantar de amigos. Um dos
nossos últimos encontros, já vivia sua temporada baiana, aconteceu num almoço
na casa de Jenner Augusto, com muita bebida, piscina, comida, interminável e
caloroso. Ele me convidou, fosse vê-lo, matar saudades. Deu o endereço, combinamos. Eu de férias, pouco depois ia procurá-lo, em Itapuã. Cheguei, toquei a
campainha, passei o portão. E me surgiu
um cachorro enorme, ladrando, ameaçador.
Congelei, de susto ou medo, quando ouvi o grito:
-
Graciliano!
O bicho
aquietou-se, Vinícius apareceu. Fomos
entrando. Ainda meio arisco, perguntei:
- Ele se
chama Graciliano?
E Vinícius,
no seu natural carinhoso:
-
Claro. É um São Bernardo.”
Aqui o belo soneto de Vinícius, que, não sei por que, ao
relê-lo agora, me ecoou um tanto o “Le tombeau d’Edgar Poe”, de Mallarmé - releio-o de novo: não. Acho que só o motivo. Talvez o primeiro verso. Eis o soneto de Vinícius:
MÁSCARA MORTUÁRIA DE GRACILIANO
RAMOS
Feito só,
sua máscara paterna,
Sua máscara
tosca, de acre-doce
Feição, sua
máscara austerizou-se
Numa
preclara decisão eterna.
Feito só,
feito pó, desencantou-se
Nele o
íntimo arcanjo, a chama interna
Da paixão
em que sempre se queimou
Seu duro corpo
que ora longe inverna.
Feito pó,
feito pólen, feito fibra
Feito
pedra, feito o que é morto e vibra
Sua máscara
enxuta de homem forte.
Isto revela
em seu silêncio à escuta:
Numa severa
afirmação da luta,
Uma
impassível negação da morte.
Na seqüência, leio ainda no belo livro de Ricardo Ramos:
"João
Cabral de Melo Neto, apesar de visível desde os meus começos, sempre foi mais
uma admiração a distância que um particular de pessoal, entretanto alimentado
na substância das afinidades. Aquilo de
nordestino afiado, só lâmina, que apura a palavra escrita e a esgota, quase
nunca a diz. Um errante por profissão,
um erradio por formação ou destino.
Atribuí os nossos desencontros a tais fados, que nos evitavam,
limitavam meus desejados contatos a
breves encontros no Rio, quatro dias no Porto, ligeiras aparições em São Paulo.
E no entanto, para mim, tudo era ontem.
O poema
sobre Graciliano é definitivo. Como
iluminação do escritor, como sentido e afirmação da obra. Somente um oficial do mesmo ofício, irmão de
opa, seria tão preciso. A precisão,
aliás, marca de João Cabral. Ou de
Graciliano. Esse despojamento, que despreza os enfeites, emblema de um e
outro. Irmanados, João Cabral e
Graciliano, um interpreta o outro. ‘Falo
somente com o que falo:/Falo somente do que falo:/Falo somente por quem
falo:/Falo somente para quem falo.’ Os dois pontos dão seqüências. Mínimas, essenciais. Do seco e de suas paisagens.
Sentados
num corredor de hotel, enquanto lá dentro jantavam, animados, escritores de várias
instâncias literárias, João Cabral e eu nos abstínhamos, enfastiados. Um pelo temperamento, outro pela rotina. Aí falamos de meu pai. E João Cabral, inesperado, me declarou:
- Eu não o
conheci.
Surpreso,
pois até eu vinha com João desde longe, reagi:
- Não é
possível!
João Cabral
simplesmente declarou:
- Eu o via
na José Olympio e não me aproximava. Por mais que quisesse, era
inatingível. Nunca cheguei nem perto.
Eu disse o
que devia, ou podia. Duas almas gêmeas.
Muito possivelmente, íntimas. Se
Graciliano fosse poeta, estaria próximo de João Cabral. Se João Cabral fosse prosador, se avizinharia
de Graciliano. Entre um e outro, os
imponderáveis. Que nós pesamos,
pensativos. Sem concluir, decerto, mas
com aquela sensação de penoso desencontro. ‘O que é sinônimo da míngua.’”
A íntegra do extraordinário poema de João Cabral:
GRACILIANO RAMOS:
Falo
somente com o que falo:
com as
mesmas vinte palavras
girando ao
redor do sol
que as
limpa do que não é faca:
de toda uma
crosta viscosa,
resto de
janta abaianada,
que fica na
lâmina e cega
seu gosto
da cicatriz clara.
***
Falo
somente do que falo:
do seco e
de suas paisagens,
Nordestes,
debaixo de um sol
ali do mais
quente vinagre:
que reduz
tudo ao espinhaço,
cresta o
simplesmente folhagem,
folha
prolixa, folharada,
onde possa
esconder-se a fraude.
***
Falo
somente por quem falo:
por quem
existe nesses climas
condicionados
pelo sol,
pelo gavião
e outras rapinas:
e onde
estão os solos inertes
de tantas
condições caatinga
em que só
cabe cultivar
o que é
sinônimo da míngua.
***
Falo
somente para quem falo:
quem padece
sono de morto
e precisa
um despertador
acre, como
o sol sobre o olho:
que é
quando o sol é estridente,
a
contrapelo, imperioso,
e bate nas
pálpebras como
quem bate
numa porta a socos.
|
Ricardo Ramos |
Ricardo nasceu no começo do mesmo
1929 em que seu pai Graciliano foi prefeito em Palmeira dos Índios, Alagoas. A passagem de 27 meses do Velho pelo cargo é conhecida de todos os que sabem o mínimo
sobre ele, pois foi graças aos relatórios que enviou ao governo daquele estado que
sua escrita precisa, firme, sem rodeios e rebuços indicou ao Sul maravilha que ali estava um escritor –
e que escritor! – inédito ainda àquela altura.
Não me estendo aqui sobre a passagem, de resto facilmente encontrável
em suas linhas gerais nas biografias disponíveis, inclusive na internet. Mas não se pode deixar de frisar e repisar
que a herança deixada, se não frutificou – e não frutificou mesmo, não digo
apenas em Alagoas, mas no Brasil todo – é exemplar por seu espírito
republicano, por sua integridade, por sua inteireza de límpida transparência na
função de homem público. Como sua
escrita, diga-se.
Ricardo, p.
111:
“Dois anos
mais tarde, (...) ele me encontrou lendo direito comercial. E veio me ensinando, muito pai que acha um
jeito de confraternizar. Indireto, mas
educativo. Foi minha vez de rir e
perguntar:
- Onde
diabo você aprendeu isso?
E ele,
reflexivo, me respondeu:
- Em 29 eu
agüentei a crise, a prefeitura de Palmeira e você.
Fora o ano
em que nasci. Acidente, mas
contornável. Tanto que seguiu,
concluindo:
- Se não
soubesse um pouco de direito comercial, de escrituração, eu tinha falido. Mas não, sobrevivi. Porque não mandei fazer por mim.”
Para quem não os conhece, não
resisto e adianto alguns trechos. Do relatório
referente a 1929, veja-se a abertura, na qual a “capilaridade” do poder é absolutamente perversa, por
remeter sempre, inexoravelmente, ao pretenso “poder absoluto” de cada um. É a situação, familiar para nós brasileiros, de que o guarda da esquina
tem mais poder que um juiz, na medida em que ele, o guarda, é o juiz. O que se contrapõe a isso, que se reforça com
a famosa “falta de vontade política” de quem poderia mudar tal situação, é a
conformidade com os “desígnios do Senhor”.
Leia-se:
“COMEÇOS
O
principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros,
segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração.
Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante
de Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do
Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e
Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de
polícia e advogavam.
Para que tal anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos
dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de
algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensava
uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que
todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.
Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram
os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se
metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se
enganam em contas. Devo
muito a eles.
Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse
ser pior."
Ainda no mesmo relatório, a inevitável necessidade de ter
que indispor-se com todo o sistema da cordialidade brasileira, que Sérgio B. de
Holanda formulou e explicou como funciona, partindo do sentido etimológico: é
relativa ao coração, como sede dos afetos (bons e maus), e é herança da
sociedade patriarcal, pré-moderna, opondo-se ao domínio do racional e do impessoal próprio
das relações modernas. A cordialidade faz com que a lei seja secundária,
relativa, flexível e frouxa, valendo o
princípio das relações estabelecidas com aqueles aos quais cabem empregá-la,
não com ela propriamente. Leva a lei ao
ponto certo, emprega-a de maneira a não favorecer os que dela se beneficiam ou
burlam? A “amizade” torna-se de súbito
inimizade, dessa vez sem aspas. É o que temos na conclusão do primeiro
relatório:
CONCLUSÃO
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há
curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.
Evitei
emaranhar-me em teias de aranha.
Certos
indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se
julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem
impostos.
Não me
entendi com esses.
Há quem
ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça,
e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice,
preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem
como assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja
isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisas tão
simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos, deixei
gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.
Não
favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros,
porém, foram da inteligência, que é fraca.
Perdi
vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram
falta.
Há
descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos
dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e
prosperidade.
Voltando à p. 33 do Retrato
fragmentado, conta o narrador, como um exemplo perfeito do que expus acima:
“Às vezes
eram lembranças que ficariam inéditas:
- Logo que
cheguei à prefeitura, proibi animais soltos na cidade. Palmeira era um pasto de bois, cavalos,
porcos e cabras, uma sujeira grossa. Na primeira infração, o dono pagava multa;
se reincidisse, os bichos iam a leilão.
Foi aquele escarcéu. Eu agüentei
firme, praça pública não é fazenda de ninguém.
A maioria meteu o rabo entre as pernas, diminuiu muito a invasão, mas
não terminou. Muritiba chegava todo santo dia com o maço de multas. Uma ocasião ficou-me rondando, meio sem
jeito. ‘Que aconteceu, homem?’ Ele me informou que achara umas vacas de meu
pai, juntas das amigas, zanzando à toa.
‘E você?’ Respondeu: ‘Não fiz nada não.’
Emntão eu mandei: ‘Pois faça, lavre a multa. Prefeito não tem pai.’ Dito e feito. Eu paguei a multa, peguei o recibo, de noite
falei com seu Sebastião: ‘Olhe aqui, veja, hoje encontramos umas vacas suas
fazendo footing. Se mandasse lhe entregar a multa, o senhor
tinha um ataque do coração. Por isso eu
mesmo paguei.’ O velho impou, estourou esbravejando, suviu nas tamancas. E terminou me devolvendo o dinheiro. Depois, a vaca dele nunca mais visitou o
centro.”
Não há
frase mais exemplar da anticordialidade, do espírito certeiro capaz de
diferenciar o público do privado (diferenciação cuja falta assombra mais e mais
este país torto na entrada do terceiro milênio) do que “Prefeito não tem
pai.”. Uma lição assombrosa, se
pensarmos em Alagoas 1929, de
modernidade. A seco. Precisa. A retórica
da anti-retórica, remédio contra a verborragia que nos assola ainda hoje. E em Graciliano todo este arsenal
extraordinário de linguagem é posto sempre a serviço do diagnóstico preciso de
nossas mazelas, das necessidades de superarmos os incríveis déficits que ainda
hoje trazemos enquanto nação. Veja-se a
passagem a seguir do 2º. Relatório:
"MIUDEZAS
Não pretendo levar ao público a idéia de que os meus empreendimentos tenham
vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem. E, comparados a
outros ainda menores, demonstram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas
um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou
microscópio.
Quando iniciei a rodovia de Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes era de que
ela não prestava porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem. E
argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia
ser executado pelo Município.
Agora mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem. Ou as obras públicas
de Palmeira dos Índios são pagas pelo Estado. Chegarei a convencer-me de que
não fui eu que as realizei."
A situação
absurda de não crer em nossa própria capacidade de realizar obras de cidadania,
ações que nos dignifiquem enquanto povo, sociedade, ou como se queira chamar, é
outro traço persistente em nosso “complexo de vira-latas” (que parece estar
sempre à espreita, quando pensamos tê-lo superado), na forma de uma idéia insistente de que nunca poderemos estar
à altura de nós mesmos. Graciliano é
também desde aquela época o contra-exemplo perfeito disso – e a consciência de
ser esse contra-exemplo. Afinal, valha
aqui o truísmo, é ele o autor da extraordinária obra que deixou, onde, bem
observados, esses traços comparecem em tempo integral.
De modo a encerrar aqui esses rabiscos, remeto ao poema que Murilo
Mendes lhe dedicou, dez anos depois de sua morte, e publicou no seu livro de 1970,
Convergência:
|
Murilo Mendes |
MURILOGRAMA A GRACILIANO RAMOS
1
Brabo.
Olhofaca. Difícil.
Cacto já se
humanizando,
Deriva de
um solo sáfaro
Que não
junta, antes retira,
Desacontece,
desquer.
2
Funda o
estilo à sua imagem:
Na tábua
seca do livro
Nenhuma
voluta inútil,
Rejeita
qualquer lirismo.
Tachando a
flor de feroz.
3
Tem desejos
amarelos.
Quer amar,
o sol ulula,
Leva o
homem do deserto
(Graciliano-Fabiano)
Ao limite
irrespirável.
4
Em dimensão
de grandeza
Onde o
conforto é vacante,
Seu passo
trágico escreve
A épica
real do BR
Que
desintegrado explode.
|
Pessoa não identificada, Graciliano, Neruda, Portinari e Jorge Amado |
Ricardo Ramos. Retrato fragmentado. Siciliano, 1992.
Vinícius de Moraes. Poesia completa e prosa. Nova Aguilar, 1987.
João Cabral de Melo Neto. Obra completa. Nova Aguilar, 1994.
Murilo Mendes. Poesia completa e prosa. Nova Aguilar, 1994.