terça-feira, 30 de julho de 2013

NICOLÁS GUILLÉN


BURGUESES


No me dan pena los burgueses vencidos.
Y cuando pienso que van a dar me pena,
aprieto bien los dientes, y cierro bien los ojos.

Pienso en mis largos días sin zapatos ni rosas,
pienso en mis largos días sin sombrero ni nubes,
pienso en mis largos días sin camisa ni sueños,
pienso en mis largos días con mi piel prohibida,
pienso en mis largos días Y

No pase, por favor, esto es un club.
La nómina está llena.
No hay pieza en el hotel.
El señor ha salido.

Se busca una muchacha.
Fraude en las elecciones.
Gran baile para ciegos.

Cayó el premio mayor en Santa Clara.
Tómbola para huérfanos.
El caballero está en París.
La señora marquesa no recibe.
En fin Y

Que todo lo recuerdo y como todo lo recuerdo,
¿qué carajo me pide usted que haga?
Además, pregúnteles,
estoy seguro de que también
recuerdan ellos.

Nicolás Guillén. Obra poética. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1995.


Fotografia colhida no site da  Fundación Nicolás Guillén

quinta-feira, 25 de julho de 2013

AH, UM SONETO... DE CARLOS DE OLIVEIRA

Esta estação do ano podes -la
em mim; folhas caindo ou já caídas;
ramos que o frêmito do frio gela;
árvore em ruína, aves despedidas.
E podes ver em mim, crepuscular,
o dia que se extingue sobre o  poente,
com a noite sem astros a anunciar
o repouso da morte, gradualmente.
Ou podes ver o lume extraordinário,
morrendo do que vive: a claridade,
deitado sobre o leito mortuário
que é a cinza da sua mocidade.
            Eis o que torna o teu amor mais forte:
            amar quem está tão próximo da morte.

(dos “Sonetos de Shakespeare reescritos em português”)


In: Carlos de Oliveira.  Trabalho poético (primeiro volume).  Lisboa: Sá da Costa, s/d.
Ilustração de Talarico

domingo, 21 de julho de 2013

VASKO POPA


NA ALDEIA DOS ANCESTRAIS

 

Alguém me abraça
Alguém me fita com olhos de lobo
Alguém tira o chapéu
Para que eu o veja melhor

Todos me perguntam
Você sabe quem eu sou

Velhotes e velhotas desconhecidos
Apoderam-se dos nomes
De rapazes e garotas de minha lembrança

Pergunto a um deles
Se ainda está vivo o rico
Gueórguie Kúria

Eu sou ele responde-me
Com voz de outro mundo
 
Acaricio-lhe a face
E com os olhos peço que me diga
Se eu estou vivo ainda

 


                        Tradução de Aleksandar Jovanovic

 

in: Osso a osso. Vasko Popa. Tradução, organização e notas de Aleksandar Jovanovic. São Paulo: Perspectiva/EdUSP, 1989.  


terça-feira, 16 de julho de 2013

José Afonso - Epígrafe Para a Arte de Furtar


Abaixo, a melodia de Zeca Afonso para o poema "Epígrafe para a arte de furtar", de Jorge de Sena, postagem anterior a esta.  O poema foi publicado no livro Fidelidade, de 1952, na  ditadura salazarista; o disco de José Afonso é de 1970, na ditadura de Marcelo Caetano, herdeiro de Salazar.





JORGE DE SENA

Ilustração de Talarico
 



EPÍGRAFE PARA A ARTE DE FURTAR

 

Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?
 
roubam-me a Pátria;
e A Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?

sempre há quem roube
quem eu desejo:
e de mim mesmo
todos me roubam
- quem cantarei?

roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui del-rei!

 

 

In: Jorge de Sena: Ressonâncias e Cinquenta poemas. (introd. e org. Gilda Santos). RJ: 7 Letras, 2006

 
 
    Em seu disco de 1970, Traz outro amigo também, o compositor português José Afonso (Zeca Afonso) gravou a canção que fez ao musicar o poema de Sena, ainda sob a ditadura de Marcelo Caetano, herdeiro de Salazar.  No link abaixo, a gravação do citado disco.
 
 
 
 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

PAULO LEMINSKI

Ilustração de Talarico



AO PÉ DA PENA
 

todo sujo de tinta
o escriba volta para casa
cabeça cheia de frases alheias
frases feitas
letras feias
linhas lindas
a pele queima
as palavras esquecidas
formas formigas
todas as palavras da tribo
 

por elas
trocou a vida
dias luzes madrugadas
hoje
quando volta para casa
página em branco e em brasa
asa lá se vai
dá de cara com nada
com tudo dentro
                                   sai

 
                                          Paulo Leminski. Toda poesia. SP: companhia das Letras, 2014.

sábado, 6 de julho de 2013

GRACILIANO


            Uma das primeiras postagens deste blog foi sobre Graciliano Ramos, visto por seu filho, o também escritor Ricardo Ramos, num valioso livro dedicado às lembranças de seu convívio com o velho,  Retrato fragmentado. 
http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2010/12/graciliano-em-dois-fragmentos.html Arrumando estantes aqui,  e aproveitando que a FLIP deste ano é dedicada a Graciliano,  um dos escritores do meu fatal lado esquerdo, resolvi vadiar um pouco pelo livro de Ricardo.  E por outras páginas, alusivas ao mestre alagoano.   Ficam sendo fragmentos dos fragmentos e de outros fragmentos...

             Na página 32 de Retrato fragmentado leio:

             “A linguagem, para Graciliano, era um problema.  Ou casos a resolver, e não dos mais corriqueiros.  Tanto que demandava pesquisa, de raízes ou eufonias, sem muito a ver com as tendências de época…  meu cunhado James Amado me relembra um diálogo, bastante longo, em que ele descartava o modernista “me dê”, por não encontrar base na sua realidade oral, nem na gramática, em benefício de um “dê cá”, real e fluente.
            Há outros exemplos, inúmeros, que pedem somente esforço de memória.  Um deles meu pai me contou, reconstituindo o tempo em que escrevia São Bernardo na língua de Paulo Honório.  Estava sentado na varanda da casa de Palmeira dos Índios, trabalhando, quando chega Clóvis, um dos seus irmãos mais moços, fazendeiro, eventual consultor para assuntos do agreste e se apeia afogueado, suando. Papai o chama. Esbaforido meu tio o atende, ouve a pergunta que o surpreende, dá de ombros, responde atravessado:
            - Ora, Grace! Quem pariu mateus que o balance!
            Ele dá uma gargalhada e agradece:
            - Obrigado, Clóvis. Era isso que eu queria.”

 

 


Mais adiante, na 191:
   

            “Logo após sua morte foi publicado “Máscara mortuária de Graciliano Ramos” soneto de Vinícius de Moraes; o poema “Graciliano Ramos”, de João Cabral de Melo Neto, saiu a seguir.

            O verso inicial de Vinícius, “Feito só, sua máscara paterna”, diz bem das suas relações com Graciliano.  Durante a doença do Velho, ele nos visitava regularmente.  Chegava educado, atencioso, encantador, ficava o tempo requerido, nem muito nem pouco, a nos entreter amável e inteligente.  Era uma presença que fazia bem a meu pai, a todos nós.  E continuou além dele, ainda que mais espaçada, no convívio conosco.  Bar, livraria, jantar de amigos.  Um dos nossos últimos encontros, já vivia sua temporada baiana, aconteceu num almoço na casa de Jenner Augusto, com muita bebida, piscina, comida, interminável e caloroso. Ele me convidou, fosse vê-lo, matar saudades.  Deu o endereço, combinamos.  Eu de férias, pouco depois ia procurá-lo, em Itapuã.  Cheguei, toquei a campainha, passei o portão.  E me surgiu um cachorro enorme, ladrando, ameaçador.  Congelei, de susto ou medo, quando ouvi o grito:
           - Graciliano!
            O bicho aquietou-se, Vinícius apareceu.  Fomos entrando.  Ainda meio arisco, perguntei:
            - Ele se chama Graciliano?
            E Vinícius, no seu natural carinhoso:
            - Claro.  É um São Bernardo.”  
        
 
           Aqui o belo soneto de Vinícius, que, não sei por que, ao relê-lo agora, me ecoou um tanto o  “Le tombeau d’Edgar Poe”, de Mallarmé - releio-o de novo: não.  Acho que só o motivo.  Talvez o primeiro verso.   Eis o  soneto de Vinícius:


MÁSCARA MORTUÁRIA DE GRACILIANO RAMOS

Feito só, sua máscara paterna,
Sua máscara tosca, de acre-doce
Feição, sua máscara austerizou-se
Numa preclara decisão eterna.

Feito só, feito pó, desencantou-se
Nele o íntimo arcanjo, a chama interna
Da paixão em que sempre se queimou
Seu duro corpo que ora longe inverna.

Feito pó, feito pólen, feito fibra
Feito pedra, feito o que é morto e vibra
Sua máscara enxuta de homem forte.

Isto revela em seu silêncio à escuta:
Numa severa afirmação da luta,
Uma impassível negação da morte.

 

 

          Na seqüência, leio ainda no belo livro de Ricardo Ramos:


           "João Cabral de Melo Neto, apesar de visível desde os meus começos, sempre foi mais uma admiração a distância que um particular de pessoal, entretanto alimentado na substância das afinidades.  Aquilo de nordestino afiado, só lâmina, que apura a palavra escrita e a esgota, quase nunca a diz.  Um errante por profissão, um erradio por formação ou destino.  Atribuí os nossos desencontros a tais fados, que nos evitavam, limitavam  meus desejados contatos a breves encontros no Rio, quatro dias no Porto, ligeiras aparições em São Paulo.  E no entanto, para mim, tudo era ontem.
            O poema sobre Graciliano é definitivo.  Como iluminação do escritor, como sentido e afirmação da obra.  Somente um oficial do mesmo ofício, irmão de opa, seria tão preciso.  A precisão, aliás, marca de João Cabral.  Ou de Graciliano. Esse despojamento, que despreza os enfeites, emblema de um e outro.  Irmanados, João Cabral e Graciliano, um interpreta o outro.  ‘Falo somente com o que falo:/Falo somente do que falo:/Falo somente por quem falo:/Falo somente para quem falo.’ Os dois pontos dão seqüências.  Mínimas, essenciais.  Do seco e de suas paisagens.
            Sentados num corredor de hotel, enquanto lá dentro jantavam, animados, escritores de várias instâncias literárias, João Cabral e eu nos abstínhamos, enfastiados.  Um pelo temperamento, outro pela rotina.  Aí falamos de meu pai.  E João Cabral, inesperado, me declarou:
            - Eu não o conheci.
            Surpreso, pois até eu vinha com João desde longe, reagi:
            - Não é possível!
            João Cabral simplesmente declarou:
            - Eu o via na José Olympio e não me aproximava. Por mais que quisesse, era inatingível.  Nunca cheguei nem perto.
            Eu disse o que devia, ou podia.  Duas almas gêmeas.  Muito possivelmente, íntimas.  Se Graciliano fosse poeta, estaria próximo de João Cabral.  Se João Cabral fosse prosador, se avizinharia de Graciliano.  Entre um e outro, os imponderáveis.  Que nós pesamos, pensativos.  Sem concluir, decerto, mas com aquela sensação de penoso desencontro. ‘O que é sinônimo da míngua.’”
 
 
  A íntegra do extraordinário poema de João Cabral:
GRACILIANO RAMOS:
 
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

 
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
               ***
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

 
que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.
                ***
 Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

 
e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.
              ***
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

 
que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
quem bate numa porta a socos.
Ricardo Ramos

 
 

 
Ricardo nasceu no começo do mesmo 1929 em que seu pai Graciliano foi prefeito em Palmeira dos Índios, Alagoas. A  passagem de  27 meses do Velho pelo cargo  é conhecida de todos os que sabem o mínimo sobre ele, pois foi graças aos relatórios que enviou ao governo daquele  estado que sua escrita precisa, firme, sem rodeios e rebuços indicou  ao Sul maravilha que ali estava um escritor – e que escritor! – inédito ainda àquela altura.  Não me estendo aqui sobre a passagem, de resto facilmente encontrável em suas linhas gerais nas biografias disponíveis,  inclusive na internet.  Mas não se pode deixar de frisar e repisar que a herança deixada, se não frutificou – e não frutificou mesmo, não digo apenas em Alagoas, mas no Brasil todo – é exemplar por seu espírito republicano, por sua integridade, por sua inteireza de límpida transparência na função de homem público.  Como sua escrita, diga-se. 
            Ricardo, p. 111:
            “Dois anos mais tarde, (...) ele me encontrou lendo direito comercial.  E veio me ensinando, muito pai que acha um jeito de confraternizar.  Indireto, mas educativo.  Foi minha vez de rir e perguntar:
            - Onde diabo você aprendeu isso?
            E ele, reflexivo, me respondeu:
            - Em 29 eu agüentei a crise, a prefeitura de Palmeira e você.
            Fora o ano em que nasci.  Acidente, mas contornável.  Tanto que seguiu, concluindo:
            - Se não soubesse um pouco de direito comercial, de escrituração, eu tinha falido.  Mas não, sobrevivi.  Porque não mandei fazer por mim.”
 
            Os relatórios do prefeito Graciliano foram incluídos no volume Viventes das alagoas, mas podem ser acessados na internet no site da excelente Revista de História. Para o Relatório de 1929: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/conteudo-complementar/relatorio-da-prefeitura-municipal-de-palmeira-dos-indios-1929

 

Para quem não os conhece, não resisto e adianto alguns trechos.  Do relatório referente a 1929, veja-se a abertura, na qual a “capilaridade”  do poder é absolutamente perversa, por remeter sempre, inexoravelmente, ao pretenso “poder absoluto” de cada um.  É a situação, familiar para  nós brasileiros, de que o guarda da esquina tem mais poder que um juiz, na medida em que ele, o guarda, é o juiz.  O que se contrapõe a isso, que se reforça com a famosa “falta de vontade política” de quem poderia mudar tal situação, é a conformidade com os “desígnios do Senhor”.  Leia-se:

“COMEÇOS

O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração.
Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante de Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.
Para que tal anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensava uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.
Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles.
Não sei se a administração do Município é boa ou ruim.
Talvez pudesse ser pior."

             Ainda no mesmo relatório, a inevitável necessidade de ter que indispor-se com todo o sistema da cordialidade brasileira, que Sérgio B. de Holanda formulou e explicou como funciona, partindo do sentido etimológico: é relativa ao coração, como sede dos afetos (bons e maus), e é herança da sociedade patriarcal, pré-moderna,  opondo-se ao domínio do racional e do impessoal próprio das relações modernas. A cordialidade faz com que a lei seja secundária, relativa, flexível e  frouxa, valendo o princípio das relações estabelecidas com aqueles aos quais cabem empregá-la, não com ela propriamente.  Leva a lei ao ponto certo, emprega-a de maneira a não favorecer os que dela se beneficiam ou burlam?  A “amizade” torna-se de súbito inimizade, dessa vez sem aspas. É o que temos na conclusão do primeiro relatório:

 

CONCLUSÃO
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.
Evitei emaranhar-me em teias de aranha.
Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.
Não me entendi com esses.
Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisas tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.
Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.
Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta.
Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.


 

            Voltando à p. 33 do Retrato fragmentado, conta o narrador, como um  exemplo perfeito do que expus acima:

            “Às vezes eram lembranças que ficariam inéditas:
            - Logo que cheguei à prefeitura, proibi animais soltos na cidade.  Palmeira era um pasto de bois, cavalos, porcos e cabras, uma sujeira grossa. Na primeira infração, o dono pagava multa; se reincidisse, os bichos iam a leilão.  Foi aquele escarcéu.  Eu agüentei firme, praça pública não é fazenda de ninguém.  A maioria meteu o rabo entre as pernas, diminuiu muito a invasão, mas não terminou. Muritiba chegava todo santo dia com o maço de multas.  Uma ocasião ficou-me rondando, meio sem jeito. ‘Que aconteceu, homem?’ Ele me informou que achara umas vacas de meu pai, juntas das amigas, zanzando à toa.  ‘E você?’ Respondeu: ‘Não fiz nada não.’  Emntão eu mandei: ‘Pois faça, lavre a multa.  Prefeito não tem pai.’  Dito e feito.   Eu paguei a multa, peguei o recibo, de noite falei com seu Sebastião: ‘Olhe aqui, veja, hoje encontramos umas vacas suas fazendo footing.  Se mandasse lhe entregar a multa, o senhor tinha um ataque do coração.  Por isso eu mesmo paguei.’ O velho impou, estourou esbravejando, suviu nas tamancas.  E terminou me devolvendo o dinheiro.  Depois, a vaca dele nunca mais visitou o centro.” 

 
            Não há frase mais exemplar da anticordialidade, do espírito certeiro capaz de diferenciar o público do privado (diferenciação cuja falta assombra mais e mais este país torto na entrada do terceiro milênio) do que “Prefeito não tem pai.”.  Uma lição assombrosa, se pensarmos em Alagoas 1929,  de modernidade.  A seco. Precisa. A retórica da anti-retórica, remédio  contra a verborragia que nos assola ainda hoje.  E em Graciliano todo este arsenal extraordinário de linguagem é posto sempre a serviço do diagnóstico preciso de nossas mazelas, das necessidades de superarmos os incríveis déficits que ainda hoje trazemos enquanto nação.   Veja-se a passagem a seguir do 2º. Relatório:

 
"MIUDEZAS
Não pretendo levar ao público a idéia de que os meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem. E, comparados a outros ainda menores, demonstram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou microscópio.
Quando iniciei a rodovia de Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes era de que ela não prestava porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem. E argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia ser executado pelo Município.
Agora mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem. Ou as obras públicas de Palmeira dos Índios são pagas pelo Estado. Chegarei a convencer-me de que não fui eu que as realizei."
 
        A situação absurda de não crer em nossa própria capacidade de realizar obras de cidadania, ações que nos dignifiquem enquanto povo, sociedade, ou como se queira chamar, é outro traço persistente em nosso “complexo de vira-latas” (que parece estar sempre à espreita, quando pensamos tê-lo superado), na forma de uma  idéia insistente de que nunca poderemos estar à altura de nós mesmos.  Graciliano é também desde aquela época o contra-exemplo perfeito disso – e a consciência de ser esse contra-exemplo.  Afinal, valha aqui o truísmo, é ele o autor da extraordinária obra que deixou, onde, bem observados, esses traços comparecem em tempo integral.

De modo a encerrar aqui  esses rabiscos, remeto ao poema que Murilo Mendes lhe dedicou, dez anos depois de sua morte, e publicou no seu livro de 1970, Convergência:

           
Murilo Mendes


MURILOGRAMA  A GRACILIANO RAMOS

                                              

1

Brabo. Olhofaca. Difícil.
Cacto já se humanizando,

Deriva de um solo sáfaro
Que não junta, antes retira,

Desacontece, desquer.

2

Funda o estilo à sua imagem:
Na tábua seca do livro

Nenhuma voluta inútil,
Rejeita qualquer lirismo.

Tachando a flor de feroz.

3

Tem desejos amarelos.
Quer amar, o sol ulula,

Leva o homem do deserto
(Graciliano-Fabiano)
 
Ao limite irrespirável.

4

Em dimensão de grandeza
Onde o conforto é vacante,
 
Seu passo trágico escreve
A épica real do BR

Que desintegrado explode.

 

 

Pessoa não identificada, Graciliano, Neruda, Portinari e Jorge Amado
 

 
Ricardo Ramos.  Retrato fragmentado. Siciliano, 1992.
Vinícius de Moraes. Poesia completa e prosa. Nova  Aguilar, 1987.
João Cabral de Melo Neto. Obra completa. Nova Aguilar, 1994.
Murilo Mendes. Poesia completa e prosa. Nova Aguilar, 1994.