domingo, 26 de janeiro de 2014

AH, UM SONETO... MAIS UM DE JORGE DE LIMA


A garupa da vaca era palustre e bela,
uma penugem havia em seu queixo formoso;
e na fronte lunada onde ardia uma estrela
pairava um pensamento em constante repouso. 

Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela
que do fundo do sonho eu às vezes esposo
e confunde-se à noite à outra imagem daquela
que ama me amamentou e jaz no último pouso.

Escuto-lhe o mugido – era o meu acalanto,
e seu olhar tão doce inda sinto no meu
o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios.

Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto:
semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu
o leite e a suavidade a manar de dois seios.


(Poema XV do Canto I de “Invenção de Orfeu”.  In: Jorge de Lima.  Poesia completa, v. 2.  RJ: Nova Fronteira, 1980.)

 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

ÁGUA E FOGO


Penso da fonte à nuvem
e o movimento reverso
da água em seu ciclo intérmino
entanto
            penso
mas
 agora o fogo
vejo
que
              imanta seu falso  lastro
rastilho paiol 
                              em fósforo
de caixa combustão
que me queima   
                        vejo  queimo
-me


 

( jóquei sobre mim cavalo
valho o que sob o que sobre
em mim se joga?)

 

a visão sobre se põe
o pensamento
– são estes os dias –
e o condena ao silêncio
como se medo
não fosse o que é:
semente de segredo

ao querer a água
o fogo se impõe
ao temer o fogo
a água o atravessa
quer

só os dias longos que
atravesso no tempo
sono tempo quer-se

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

GIACOMO LEOPARDI


A NOITE DO DIA DE FESTA

 
Noite sem vento, doce, clara.  A lua
Flutua sobre tetos e pomares,
Serena, revelando ao longe, os montes.
As ruas e os caminhos silenciam,
Minha amada.  Pelos balcões, são raros
Os lampiões, um sono suave invade
Os aposentos, você dorme, nada
Perturba o seu repouso, muito menos
A chaga que me abriu dentro do peito!
Mas você dorme, e ao céu de aspecto ameno
– E à antiga natureza onipotente
Que me vota à aflição – dirijo os olhos.
“Para você, nem mesmo uma esperança;
Para os seus olhos, só um brilho: lágrimas”,
Ela me disse.  Mas que dia magnífico!
Dormem danças e jogos, mas, em sonho,
Talvez para você desfilem todos
De quem gostou ou aos quais agradou
(Menos eu, que nesse rol não compareço).
Mas se calculo os dias que me restam,
Vejo-me aos gritos, a rolar na terra:
Que vida horrível numa vida jovem!
Vai pela rua o canto solitário
De quem já trabalhou, passou na tasca,
E volta tarde para a casa pobre.
Vai-me apertando, amargo, o coração,
Só penso em como tudo passa e passa,
Quase sem deixar rastro.  Já se foi
O dia de festa, e agora chega o dia
Normal, onde tudo se escoa no tempo,
Todos os atos humanos. E o estrondo
Dos antigos, as vozes dos heróis
De ontem, onde estão? e o grande império,
E as armas e o fragor que faz tremer
Os caminhos da terra e do oceano?
Tudo é paz e silêncio.  O mundo
Tudo aquieta.  Já não se pensa em nada.
Quando criança, vinha a espera ansiosa
Do dia de festa, que findava logo.
Sofrendo, comprimia o travesseiro,
Ao ouvir pela noite aquele canto
Que ia morrendo, aos poucos, lentamente,
Morrendo e me apertando o coração.

                                  Tradução de Décio Pignatari

 

In: Décio Pignatari. 31 poetas 214 poemas: Do Rigveda e Safo a Apollinaire.  2 ed. Unicamp, 2007.

 
 

LA SERA DEL DÌ DI FESTA 

 Dolce e chiara è la notte e senza vento,
 E queta sovra i tetti e in mezzo agli orti
 Posa la luna, e di lontan rivela
 Serena ogni montagna. O donna mia,
 Già tace ogni sentiero, e pei balconi
 Rara traluce la notturna lampa:
 Tu dormi, che t'accolse agevol sonno
 Nelle tue chete stanze; e non ti morde
 Cura nessuna; e già non sai nè pensi
 Quanta piaga m'apristi in mezzo al petto.
 Tu dormi: io questo ciel, che sì benigno
 Appare in vista, a salutar m'affaccio,
 E l'antica natura onnipossente,
 Che mi fece all'affanno. A te la speme
 Nego, mi disse, anche la speme; e d'altro
 Non brillin gli occhi tuoi se non di pianto.
 Questo dì fu solenne: or da' trastulli
 Prendi riposo; e forse ti rimembra
 In sogno a quanti oggi piacesti, e quanti
 Piacquero a te: non io, non già, ch'io speri,
 Al pensier ti ricorro. Intanto io chieggo
 Quanto a viver mi resti, e qui per terra
 Mi getto, e grido, e fremo. Oh giorni orrendi
 In così verde etate! Ahi, per la via
 Odo non lunge il solitario canto
 Dell'artigian, che riede a tarda notte,
 Dopo i sollazzi, al suo povero ostello;
 E fieramente mi si stringe il core,
 A pensar come tutto al mondo passa,
 E quasi orma non lascia. Ecco è fuggito
 Il dì festivo, ed al festivo il giorno
 Volgar succede, e se ne porta il tempo
 Ogni umano accidente. Or dov'è il suono
 Di que' popoli antichi? or dov'è il grido
 De' nostri avi famosi, e il grande impero
 Di quella Roma, e l'armi, e il fragorio
 Che n'andò per la terra e l'oceano?
 Tutto è pace e silenzio, e tutto posa
 Il mondo, e più di lor non si ragiona.
 Nella mia prima età, quando s'aspetta
 Bramosamente il dì festivo, or poscia
 Ch'egli era spento, io doloroso, in veglia,
 Premea le piume; ed alla tarda notte
 Un canto che s'udia per li sentieri
 Lontanando morire a poco a poco,
 Già similmente mi stringeva il core.

domingo, 12 de janeiro de 2014

DOIS POEMAS DE RAUL BOPP




DIAMBA

 

Negro velho fuma diamba
para amassar a memória

O que é bom fica lá longe...

Os olhos vão-se embora pra longe
O ouvido de repente parou
 
Com mais uma pitada
o chão perdeu o fundo
Negro escorregou
Caiu no meio da  África

Então apareceu do fundo da floresta
uma tropa de elefantes enormes
trotando
Cinqüenta elefantes
puxando uma lagoa

– Para onde vão levar esta lagoa?
Está derramando água no caminho

A água no caminho juntou
correu correu
fez o rio Congo
 
Águas tristes gemeram
e as estrelas choraram

– Aquele navio veio buscar o rio Congo!
Então as florestas se reuniram
e emprestaram um pouco de sombras pro rio Congo dormir

Os coqueiros debruçaram-se na praia
para dizer adeus




DONA CHICA

 

A negra serviu o café

– A sua escrava tem uns dentes bonitos dona Chica
– Ah o senhor acha?

Ao sair
a negra demorou-se com um sorriso na porta da varanda

Foi entoando uma cantiga casa-a-dentro:

            Ai do céu caiu um galho
            Bateu no chão Desfolhou

Dona Chica não disse nada
Acendeu ódios no olhar

Foi lá dentro Pegou a negra
Mandou metê-la no tronco
– Iaiá Chica não me mate!
– Ah! Desta vez tu me pagas

Meteu um trapo na boca
Depois
quebrou os dentes dela com um martelo

– Agora
junte esses cacos numa salva de prata
e leve assim mesmo
babando sangue

pr’aquele moço que está na sala, peste!

 

 

Raul Bopp.  Cobra Norato e outros poemas.  10ª. ed. Civilização Brasileira/MEC, 1975.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

NÃO ME CHAME


                                                         para o Adriano Nunes e
                                             o Paulo Talarico

 

Não me chame
            não sou gregário
                        não sou de enxame
é pouco provável
            que eu vá
embora nem vá
dizer:

 
 Não
 

mas não vou
não me espere
               nunca me atraso
também
não me adianto
nem pro ménage
nem pra homenagem
    nem pro rendez-vous
nem pra santíssima trindade
 

Não quero encontrar os semelhantes
não tou na fila do confessionário
nem na do mega-show
nem na do lambe o cu do empresário
nem na dos cumprimentos
o pódio que desabe 

nado e que se foda a direção dos ventos
e o que leva a correnteza
           
eu já tou dentro e muito dentro
não tenho tempo, absorvido sou
escravo
anfitrião
hóspede
              da beleza

 

 

domingo, 5 de janeiro de 2014

HEINE DUAS VEZES


Os grandes deuses ora dormem,
Envoltos numa nuvem cinza;
Escuto como roncam forte,
A tempestade se aproxima.

Que tempo atroz! A tempestade
Quer destroçar a embarcação –
No vento e no escarcéu quem há de
Pôr sela, arreios e bridão?

Não tenho culpa se a procela
Empurra os barcos para o fundo,
Então me enrosco nas cobertas
E, como um deus, enfim eu durmo.

           

Eingehüllt in graue Wolken,
Schlafen jetzt die großen Götter,
Und ich höre, wie sie schnarchen,
Und wir haben wildes Wetter.
 
Wildes Wetter! Sturmeswüten
Will das arme Schiff zerschellen -
Ach, wer zügelt diese Winde
Und die herrenlosen Wellen!
 
Kanns nicht hindern, daß es stürmet,
Daß da dröhnen Mast und Bretter,
Und ich hüll mich in den Mantel,
Um zu schlafen wie die Götter.

                     [1824-26]



H. Heine por Gottlieb Gassen





O conteúdo que um poema encarna
Jamais surgiu num estalar de dedos;
Se demiurgos não criam do nada,
Ah, muito menos os mortais aedos.

 
Do preexistente lixo primordial
Foi que eu formei o corpo masculino;
Dele eu tirei o osso com o qual
Moldei o da mulher ainda mais lindo.
 
O céu saiu do entulho aqui da Terra,
Os anjos desdobrei da mulherada;
Somente pelo esforço do “poeta” –
É que a matéria é valorizada.

 
                       
Der Stoff, das Material des Gedichts,
Das saugt sich nicht aus dem Finger;
Kein Gott erschafft die Welt aus nichts,
Sowenig wie irdische Singer.
 
Aus vorgefundenem Urweltsdreck
Erschuf ich die Männerleiber,
Und aus dem Männerrippenspeck
Erschuf ich die schönen Weiber.

 
Den Himmel erschuf ich aus der Erd'
Und Engel aus Weiberentfaltung;
Der Stoff gewinnt erst seinen Wert
Durch künstlerische Gestaltung.

                              [1844]



                                         Traduções de André Vallias
 


Heinrich Heine.  Heine hein? Poeta dos contrários. Introdução e traduções de André Vallias. Perspectiva, 2011.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

TEMPORADA DE VERÃO, COPACABANA.1


Véspera de natal.

Chego cedo na casa dos pais, almoço com eles, depois do almoço a indispensável sesta. 

Depois de alguns minutos, acordo sem entender direito.  No quarto ao lado, aos berros, meu pai chama por minha mãe.  Ela, da sala, lhe responde, pachorrentamente, o que me indicava não haver nada de anormal na aparente emergência: “ – O que há? O que você quer?”  Recebeu de volta outra pergunta: “- O que você está fazendo?” Vem deitar!” “Vou, mas primeiro vou acabar de ver o filme de Maria e José. Ela passou três meses fora e chega grávida, ele não está gostando nada disso.  Acho que ela vai ser apedrejada. Você não quer ver? Vem ver o apedrejamento”  A conversa é, das palavras à entonação com que são ditas, mais o que exalam de absoluto à vontade na certeza do que o outro está pensando, um resumo de quase 70 anos de vida em comum.  No que obviamente devem se incluir as lições de catecismo, o beabá da história da sagrada família e outras informações do almanaque religioso que minha mãe, como boa filha de italiano, tem de cor e salteado.  Meu pai responde, de dentro de sua picardia, que se aguça, a depender da ocasião,  pelo Alzheimer contraído há não muito tempo: “- Vou ver nada, eu não!  Ela não é apedrejada. Se Maria  foi apedrejada, foi com pedras de gelo.”

Do quarto ao lado, começo a rir. Foi-se a sesta. Acabou num quase Monty Python.

Foto de Ivo Korytowski

Falei em catecismo... meus pais moram hoje na Barão de Ipanema  em frente à igreja de São Paulo Apóstolo, a qual, vista de cima,  me ocorre que  deveria ser chamada de basílica de São Paulo Apóstolo por  conta de sua cúpula redonda. Só que diferente do que eu pensava, isso parece não ser o bastante para que uma igreja seja chamada basílica  Enfim... os que são católicos   que se entendam.  Anexo à São Paulo Apóstolo  fica o colégio Guido de Fontgalland. Colégio pequeno, particular, ensino religioso.  Olho pela janela do apartamento de minha mãe e lembro que os mais antigos resquícios de catolicismo em mim, todos muito débeis em termos de reverência respeitosa, ligam-se àquela igreja e àquela escola.  Que mal freqüentei.  A ambos. Espaços com os quais não estabeleci a mínima proximidade afetiva.  Provável mesmo que,  até muito pelo contrário, quero-os afetivamente distantes.

Ali eu fui reprovado pela primeira vez em catecismo. Tenho medo de me confundir aqui ao escrever, já que parece que existe – ou existia – um colégio da própria igreja.  Mas não quero que esses detalhes me travem, sigo.



 

 Penso que tive duas experiências marcantes na minha relação com o catolicismo e ambas só fizeram afastar-me dele.  Houve uma anterior a este desastrado catecismo, mas conto esta primeiro: matriculado numa turma onde também estavam alguns colegas de escola (eu estava na 2ª. ou na 3ª. série), a professora era nada menos que assustadora: uma negra imensa de óculos de lentes escuras, uma voz trovejante, encorpada,  que ela emitia sempre  com muita intensidade.  Não bastasse, ainda brandia  uma régua, a exemplo daqueles mestres que vemos  em gravuras de livros antigos.  Leio  “assustadora” e “negra” e nem de longe enxergo qualquer laivo de racismo no que escrevi.  O “negro” do assustador não se liga ao fato de a professora ser uma pessoa negra, estou certo disso.  Claro que ela o era.  Mas vem  do fato de que,  lembro agora,  as vezes em que fui à malfadada aula – penso que talvez tenha ido a duas, três, não mais do que isso – a professora trajava sempre uns vestidos de tecido escuro,  pesados – e me ocorre também  que eu às vezes a via fora dali, no dia-a-dia do bairro  e sempre a via assim trajada. E mais do que isso, eu a associei desde logo, e ainda agora, também por conta de uns óculos puxados para fora,  à montanha demoníaca que aparece em  “Uma noite no Monte Calvo”, de Mussorgski, no Fantasia de Disney, filme que vivia passando nos cinemas de Copa e que lembro de ter assistido várias vezes, mesmo muito antes  do advento dos vídeos caseiros.  No filme, o belíssimo poema sinfônico de Mussorgski faz um medley com a “Ave Maria” de Schubert, as trevas demoníacas sendo banidas pela luminosidade celestial, o tormentoso de Mussorgski trocado pela impressionante placidez de Schubert, o cortejo de fantasmas,  pela procissão.  Quem viu o desenho de Disney sabe.


 

 

Mas o que ficou de aterrorizante dessa minha primeira experiência catecúmena frustrada foi de início ouvir o que a professora falava com enorme prazer, que sua voz aterradora chegava a tornar quase palpável: dizia ela sobre os atributos divinos, antegozando o êxtase do terror que devia saber que semeava na garotada,  que a onipotência, a onisciência e a onipresença de Deus significavam especialmente que  “Deus vê e sabe de tudo que você faz e pensa” , acrescentando com cada vez  mais ênfase  o  Não há onde alguém possa fugir da presença de Deus, nem mesmo antes de nascer!” ... alguns anos depois vim a me divertir com a coincidência desse mesmo medo pânico na canção de Raul Seixas, “Para Nóia”: “Deus vê sempre tudo o que cê faz/mas eu não via Deus... achava assombração...”

Mas por aquela época aquilo não me divertiu, horrorizou-me. Ainda mais quando o Marco Antonio, um menino que era da minha turma na escola e era como se dizia “muito levado”, aprontou alguma durante a temível lição, certamente entre um mandamento  e outro,  que fez com que a professora partisse irada para cima dele, de  régua em punho, com o propósito mesmo de alcança-lo, e o alcançaria,   e sei lá o que faria com o pobre moleque, se não fosse a existência de um  tablado onde ela ministrava suas aterradoras lições – tablado que a deixava ainda mais alta, mais corpulenta, mais ameaçadora - , o qual  fez com que ela pisasse em falso ao descê-lo, tentasse ainda se segurar mas em vão numa carteira próxima, e viesse se desequilibrando, catando cavaco até desabar estrondosamente no chão, o terrível monstro do Monte Calvo ali, prostrado a nossos pés infantis, tudo sem deixar em nenhum momento de bradar “Capeta, menino dos infernos!” e repetindo, repetindo, repetindo a frase, mesmo derreada no chão.   Engraçado é que da cena lembro só mesmo desse enorme desabar e da frase que o monstro repetia.  Não sei se é honesto dizer que Marco Antonio foi tomado de pânico e correu porta afora, ou se isso já é por conta de uma necessidade minha de saber os desdobramentos da narrativa.  Essa veracidade não sou capaz de assegurar.  Não tenho mais a mínima lembrança de nenhum outro pormenor relativo ao catecismo. Sei que, também sem saber detalhes das circunstâncias, ao final do curso fui declarado ainda não apto para a primeira comunhão – sei que nunca fui capaz de decorar aquele decálogo perverso  de interdições.  O que foi um alívio, já que outro pânico que me infundiram foi com relação ao fato de que a hóstia representa o corpo de Cristo e que se partir na boca na hora da comunhão terá sido um pecado muito sério, que Cristo ficaria  triste e ferido, eu chegava a imaginar minha boca com o gosto do sangue do Filho de Deus, horror dos horrores!  Mas a demonstração pragmática que Deus dera de sua onisciência e onipotência ao derrubar a temida professora tinha sido eloqüente demais para que eu não passasse desde então a viver arrumando pretexto para justificadamente  me esconder sempre dele.  Digo, Dele. Brrrrrrrrrr.

 


Falei antes que esse episódio não tinha sido a minha primeira experiência marcante a me afastar do catolicismo (penso mesmo que das religiões em geral, certamente pelo menos as monoteístas) . Nem sequer o fato de ter sido reprovado em catecismo o  foi, já que  houve ainda outra reprovação, na verdade um abandono do curso em prol do sagrado exercício da pelada, que eu até já contei aquihttp://robertobozzetti.blogspot.com.br/2011/02/em-torno-d-missa-de-behr-e-de-mim.html

 

Mas a experiência anterior a que me refiro, acho mesmo que até mais decisiva, se deu com o livro Marcelino pão e vinho.
 
 
Foi o primeiro livro que li, aos 6 anos.  Eu só fui para a escola com 7 anos, entrei direto na segunda série, fui alfabetizado em casa por meu irmão – acho que ele nem sabe o quanto lhe sou ternamente grato até hoje por isso.  Escrito por José Maria Sánchez Silva, publicado pela primeira vez nos primeiros anos  da ditadura franquista (para quem não sabe, um dos esteios de Franco era a igreja católica), é a estória de um menino órfão que é adotado por monges franciscanos, passando a viver no mosteiro com eles.  Apesar de ser alegre e muito inquieto, entre mil peripécias  Marcelino vai bater num sótão, onde a entrada lhe era expressamente proibida, e lá se depara com uma escultura de um Senhor morto (espanhol... brrrrrrr!) , com o qual passa a conversar constantemente – e secretamente, visto que lhe era interdito – e acaba revelando a Cristo que seu maior sonho era encontrar-se com a mãe, desejo irrealizável a não ser que ele, claro,  morresse.  Claro que é o que acaba ocorrendo, após uma enfermidade contraída.  Posso estar me equivocando quanto a um detalhe ou outro, não importa.  Em linhas gerais, é isso.   Sei que nos anos 1950 foi feito o filme, de enorme sucesso de público, mas dele não tenho lembrança alguma. O que me lembro é a imagem, construída em letra escrita, do Cristo descendo de sua cruz e levando a alma do menino consigo.  E dos monges, após, prostrados, ante o pequeno corpo morto.
 Como o título desta postagem indica, me proponho nesta série a contar em quatro ou cinco momentos algo de minhas memórias copacabanenses, e alguém pode estar se perguntando que diabos Marcelino  tem a ver com Copacabana.  Não é apenas pelo fato de ser memória de infância e  de eu ter vivido a infância em Copa, mas aqui no caso de Marcelino tem ainda e principalmente  o seguinte: o sótão onde o menino ia conversar com o Cristo crucificado era identificado por mim ao quarto de guardados que havia na minha casa em Copacabana.  Era um quarto pequeno, atulhado de esboços de quadros (“bozzetti” em italiano significa exatamente isso) de meu avô, um personagem admirável,  pintor acadêmico,  e que havia deixado de pintar por ter ficado cego (tenho pouquíssimas lembranças de meu avô ainda enxergando).  Ali ficavam guardadas também uma porção de ferramentas, muitas, que meu avô, mesmo depois de cego ainda utilizava, além de quinquilharia de toda ordem, bisnagas de tinta, espátulas diversas, cavalete, mil tralhas.  Pois bem: entre os amontoamentos do pequeno cubículo havia uma escultura de gesso de um Cristo crucificado, feita por ele o avô. Entre o sótão que o pequeno Marcelino freqüentava às escondidas dos monges e o quarto de guardados de nossa casa deu-se uma relação por assim dizer ficcional, que fez a ponte identitária que acabou por tornar a minha leitura produtiva.  E ao mesmo tempo apontou na direção de um necessário afastamento para evitar uma  relação vicária com o escrito.  E seu resultado mais efetivo foi o de ter me aproximado para sempre da literatura e ter me afastado para sempre do catolicismo.

A leitura do terrível livrinho espanhol acho que me pavimentou o bloqueio para a não-aceitação dos ensinamentos da catequese católica, e em sentido mais amplo, cristã, para sempre. E, mais fundo, o que tudo isso tem de Copacabana, não sei bem, mas certamente essas reminiscências têm a ver com uma Copacabana interna a mim.


O Cristo do espanho Juan Manuel Miñarro