Véspera de natal.
Chego cedo na casa dos pais, almoço
com eles, depois do almoço a indispensável sesta.
Depois de alguns minutos, acordo sem
entender direito. No quarto ao lado, aos
berros, meu pai chama por minha mãe.
Ela, da sala, lhe responde, pachorrentamente, o que me indicava não
haver nada de anormal na aparente emergência: “ – O que há? O que você quer?” Recebeu de volta outra pergunta: “- O que
você está fazendo?” Vem deitar!” “Vou, mas primeiro vou acabar de ver o filme
de Maria e José. Ela passou três meses fora e chega grávida, ele não está
gostando nada disso. Acho que ela vai
ser apedrejada. Você não quer ver? Vem ver o apedrejamento” A conversa é, das palavras à entonação com
que são ditas, mais o que exalam de absoluto à vontade na certeza do que o
outro está pensando, um resumo de quase 70 anos de vida em comum.
No que obviamente devem se incluir as lições de
catecismo, o beabá da história da sagrada família e outras informações do
almanaque religioso que minha mãe, como boa filha de italiano, tem de cor e
salteado. Meu pai responde, de dentro de
sua picardia, que se aguça, a depender da ocasião, pelo Alzheimer contraído há não muito tempo:
“- Vou ver nada, eu não! Ela não é
apedrejada. Se Maria foi apedrejada, foi
com pedras de gelo.”
Do quarto ao lado, começo a rir.
Foi-se a sesta. Acabou num quase Monty Python.
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Foto de Ivo Korytowski |
Falei em catecismo... meus pais
moram hoje na Barão de Ipanema em frente
à igreja de São Paulo Apóstolo, a qual, vista de cima, me ocorre que deveria ser chamada de basílica de São Paulo
Apóstolo por conta de sua cúpula redonda.
Só que diferente do que eu pensava, isso parece não ser o bastante para que uma
igreja seja chamada basílica Enfim... os
que são católicos que se entendam. Anexo à São Paulo Apóstolo fica o colégio Guido de Fontgalland. Colégio
pequeno, particular, ensino religioso.
Olho pela janela do apartamento de minha mãe e lembro que os mais
antigos resquícios de catolicismo em mim, todos muito débeis em termos de
reverência respeitosa, ligam-se àquela igreja e àquela escola. Que mal freqüentei. A ambos. Espaços com os quais não estabeleci
a mínima proximidade afetiva. Provável
mesmo que, até muito pelo contrário, quero-os afetivamente distantes.
Ali eu fui reprovado pela primeira
vez em catecismo.
Tenho medo de me confundir aqui ao escrever, já que parece
que existe – ou existia – um colégio da própria igreja. Mas não quero que esses detalhes me travem,
sigo.
Penso que tive duas experiências marcantes na
minha relação com o catolicismo e ambas só fizeram afastar-me dele. Houve uma anterior a este desastrado
catecismo, mas conto esta primeiro: matriculado numa turma onde também estavam
alguns colegas de escola (eu estava na 2ª. ou na 3ª. série), a professora era
nada menos que assustadora: uma negra imensa de óculos de lentes escuras, uma
voz trovejante, encorpada, que ela
emitia sempre com muita intensidade. Não bastasse, ainda brandia uma régua, a exemplo daqueles mestres que
vemos em gravuras de livros
antigos. Leio “assustadora” e “negra” e nem de longe enxergo
qualquer laivo de racismo no que escrevi. O “negro” do assustador não se liga ao fato de
a professora ser uma pessoa negra, estou certo disso. Claro que ela o era. Mas vem
do fato de que, lembro agora, as vezes em que fui à malfadada aula – penso
que talvez tenha ido a duas, três, não mais do que isso – a professora trajava
sempre uns vestidos de tecido escuro, pesados
– e me ocorre também que eu às vezes a
via fora dali, no dia-a-dia do bairro e sempre a via assim trajada. E mais do que isso, eu a associei desde logo,
e ainda agora, também por conta de uns óculos puxados para fora, à montanha demoníaca que aparece em “Uma noite no Monte Calvo”, de Mussorgski, no Fantasia de Disney, filme que vivia
passando nos cinemas de Copa e que lembro de ter assistido várias vezes, mesmo muito antes do advento dos vídeos caseiros.
No filme, o belíssimo poema sinfônico de Mussorgski faz um medley com a
“Ave Maria” de Schubert, as trevas demoníacas sendo banidas pela luminosidade
celestial, o tormentoso de Mussorgski trocado pela impressionante placidez de
Schubert, o cortejo de fantasmas, pela
procissão. Quem viu o desenho de Disney
sabe.
Mas o que ficou de aterrorizante
dessa minha primeira experiência catecúmena frustrada foi de início ouvir o que
a professora falava com enorme prazer, que sua voz aterradora chegava a tornar
quase palpável: dizia ela sobre os atributos divinos, antegozando o êxtase do
terror que devia saber que semeava na garotada, que a onipotência, a onisciência e a onipresença
de Deus significavam especialmente que “Deus
vê e sabe de tudo que você faz e pensa” , acrescentando com cada vez mais ênfase
o “Não há onde alguém possa fugir da
presença de Deus, nem mesmo antes de nascer!” ... alguns anos depois vim a me
divertir com a coincidência desse mesmo medo pânico na canção de Raul Seixas, “Para Nóia”: “Deus vê
sempre tudo o que cê faz/mas eu não via Deus... achava assombração...”
Mas por aquela época aquilo
não me divertiu, horrorizou-me. Ainda mais quando o Marco Antonio, um menino
que era da minha turma na escola e era como se dizia “muito levado”, aprontou
alguma durante a temível lição, certamente entre um mandamento e outro, que fez com que a professora partisse irada
para cima dele, de régua em punho, com o
propósito mesmo de alcança-lo, e o alcançaria, e sei lá o que faria com o pobre moleque, se
não fosse a existência de um tablado
onde ela ministrava suas aterradoras lições – tablado que a deixava ainda mais
alta, mais corpulenta, mais ameaçadora - , o qual fez com que ela pisasse em falso
ao descê-lo, tentasse ainda se segurar mas em vão numa carteira próxima, e viesse
se desequilibrando, catando cavaco até desabar estrondosamente no chão, o
terrível monstro do Monte Calvo ali, prostrado a nossos pés infantis, tudo sem
deixar em nenhum momento de bradar “Capeta, menino dos infernos!” e repetindo,
repetindo, repetindo a frase, mesmo derreada no chão. Engraçado é que da cena lembro só mesmo
desse enorme desabar e da frase que o monstro repetia.
Não sei se é honesto dizer que Marco Antonio foi tomado de pânico e
correu porta afora, ou
se isso já é por conta de uma necessidade minha de saber os desdobramentos da
narrativa. Essa veracidade não sou capaz
de assegurar. Não tenho mais a mínima
lembrança de nenhum outro pormenor relativo ao catecismo. Sei que,
também sem saber detalhes das circunstâncias, ao final do curso fui declarado
ainda não apto para a primeira comunhão – sei que nunca fui capaz de decorar aquele decálogo
perverso de interdições. O que foi um alívio, já que outro pânico que
me infundiram foi com relação ao fato de que a hóstia representa o corpo de
Cristo e que se partir na boca na hora da comunhão terá sido um pecado muito sério,
que Cristo ficaria triste e ferido, eu chegava
a imaginar minha boca com o gosto do sangue do Filho de Deus, horror dos
horrores! Mas a demonstração pragmática
que Deus dera de sua onisciência e onipotência ao derrubar a temida professora
tinha sido eloqüente demais para que eu não passasse desde então a viver
arrumando pretexto para justificadamente
me esconder sempre dele. Digo, Dele.
Brrrrrrrrrr.
Falei antes que esse episódio não
tinha sido a minha primeira experiência marcante a me afastar do catolicismo
(penso mesmo que das religiões em geral, certamente pelo menos as monoteístas)
. Nem sequer o fato de ter sido reprovado em catecismo o foi, já que houve ainda outra reprovação, na verdade um
abandono do curso em prol do sagrado exercício da pelada, que eu até já contei
aquihttp://robertobozzetti.blogspot.com.br/2011/02/em-torno-d-missa-de-behr-e-de-mim.html
Mas a experiência anterior a que me
refiro, acho mesmo que até mais decisiva, se deu com o livro Marcelino pão e vinho.
Foi o primeiro livro que li, aos 6
anos. Eu só fui para a escola com 7
anos, entrei direto na segunda série, fui alfabetizado em casa por meu irmão –
acho que ele nem sabe o quanto lhe sou ternamente grato até hoje por isso. Escrito por José Maria Sánchez Silva,
publicado pela primeira vez nos primeiros anos da ditadura franquista (para quem não sabe, um
dos esteios de Franco era a igreja católica), é a estória de um menino órfão
que é adotado por monges franciscanos, passando a viver no mosteiro com
eles. Apesar de ser alegre e muito
inquieto, entre mil peripécias Marcelino
vai bater num sótão, onde a entrada lhe era expressamente proibida, e lá se
depara com uma escultura de um Senhor morto (espanhol... brrrrrrr!) , com o
qual passa a conversar constantemente – e secretamente, visto que lhe era
interdito – e acaba revelando a Cristo que seu maior sonho era encontrar-se com
a mãe, desejo irrealizável a não ser que ele, claro, morresse.
Claro que é o que acaba ocorrendo, após uma enfermidade contraída. Posso estar me equivocando quanto a
um detalhe ou outro, não importa. Em
linhas gerais, é isso. Sei que nos anos
1950 foi feito o filme, de enorme sucesso de público, mas dele não tenho
lembrança alguma. O que me lembro é a
imagem, construída em letra escrita, do Cristo descendo de sua cruz e levando a
alma do menino consigo. E dos monges,
após, prostrados, ante o pequeno corpo morto.
Como o título desta postagem indica, me proponho
nesta série a contar em quatro ou cinco momentos algo de minhas memórias
copacabanenses, e alguém pode estar se perguntando que diabos Marcelino tem a ver com Copacabana. Não é apenas pelo fato de ser memória de infância
e de eu ter vivido a infância em Copa,
mas aqui no caso de Marcelino tem ainda e principalmente o seguinte: o sótão onde o menino ia
conversar com o Cristo crucificado era identificado por mim ao quarto de
guardados que havia na minha casa em Copacabana. Era um quarto pequeno,
atulhado de esboços de quadros (“bozzetti” em italiano significa exatamente
isso) de meu avô, um personagem admirável, pintor acadêmico, e que havia deixado de pintar por
ter ficado cego (tenho pouquíssimas lembranças de meu avô ainda
enxergando). Ali ficavam guardadas
também uma porção de ferramentas, muitas, que meu avô, mesmo depois de cego
ainda utilizava, além de quinquilharia de toda ordem, bisnagas de tinta, espátulas
diversas, cavalete, mil tralhas. Pois
bem: entre os amontoamentos do pequeno cubículo havia uma escultura de gesso de
um Cristo crucificado, feita por ele o avô. Entre o sótão que o pequeno Marcelino freqüentava às
escondidas dos monges e o quarto de guardados de nossa casa deu-se uma relação
por assim dizer ficcional, que fez a ponte identitária que acabou por tornar a minha
leitura produtiva. E ao mesmo tempo
apontou na direção de um necessário afastamento para evitar uma relação vicária com o escrito. E seu resultado mais efetivo foi o de ter me
aproximado para sempre da literatura e ter me afastado para sempre do
catolicismo.
A leitura do terrível livrinho
espanhol acho que me pavimentou o bloqueio para a não-aceitação dos
ensinamentos da catequese católica, e em sentido mais amplo, cristã, para
sempre. E, mais fundo, o que tudo isso tem de Copacabana, não sei bem, mas
certamente essas reminiscências têm a ver com uma Copacabana interna a mim.
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O Cristo do espanho Juan Manuel Miñarro |