Observação inicial: o título desta postagem estava errado. Agora foi feita a correção. Embora o século 18 seja central aqui, como ideário, a nortear os comentários a respeito dos dois sonetos, o do Parnasse Satyrique é do século 17, conforme se lerá ao final. Por isso mesmo, penso ser fundamental proceder à correção.
Ping...
...
DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA
Não vês, Lise, brincar esse menino
Com aquela avezinha? Estende o braço;
Deixa-a fugir; mas apertando o laço,
A condena outra vez ao seu destino?
Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo,
Que cuido, que estou livre do
embaraço,
Então me prende mais meu desatino.
Em um contínuo giro o pensamento
Tanto a precipitar-me se encaminha,
Que não vejo onde pare o meu tormento.
Mas fora menos mal esta ânsia minha,
Se me faltasse a mim o entendimento,
Como falta a razão a esta avezinha.
Pong..!
do PARNASSE SATYRIQUE
Amo flagrar nos bosques a aventura
da traseira a pastora ao pastor dando
tanto e tão bem que o gozo culminando
desmaiam mortos ambos na natura
amo dos campos ver não a pintura
mas um carneiro à fêmea então carcando
mesmo o bode que à cabra enfim
montando
não lembra mais de prado e de verdura
amo ver na campina todo o empenho
da vaca sob touro tão ferrenho
que a vararia e em duas se pudesse
foder é a nossos olhos primavera
tão vária que se nada mais fodesse
campina campo e tudo mais já era
(soneto do
século 17 do Parnasse Satyrique, anônimo, traduzido por Marcelo Diniz)
J’ayme dedans un bois à trouver
d’aventure,
Dessus
une bergère un berger culetant,
Qu’il
attaque si bien et l’escarmouche tant,
Qu’ils
meurent à la fin au combat de nature.
J’ayme
voir dans les champs non la belle peinture,
Mais un
bélier cornu sa femmelle foutant
Et le bouc éschauffé sur la sienne montant
Par un si doux plaisir oublier sa pasture.
J’ayme
voir sur un pré à un pareil effort
Le taureauqui se joint à la vache si fort,
Qu’il
voudroit s’il pouvoit la percer d’outre en outre.
Le foutre
est à nos yeux un printemps diapré,
Au coeur
un paradis, mais si je ne vois foutre
Je n’ayme point ny champs, ny campagnes, ny
pré.
Pensei em dar a esta postagem o título de algo
como “Viva o século 18!”. Mas aí resolvi inseri-la na série “Ah,
sonetos...” Seja como for, o espírito dela é mesmo de celebração do
glorioso século quando se completou o que Max Weber chamou de “desencantamento
do mundo”, que nos deixou de herança o que de melhor se poderia ter feito
da modernidade, com a separação das esferas do saber e o fim das crenças
na “magia do Universo” ou coisa que o valha. Se tanto se desvirtuou de
seu legado, talvez possamos culpar de saída a moralidade burguesa que
se estabeleceu pelo século seguinte e, que óbvio, é parte do mesmo
legado. Pois na verdade o soneto do Parnasse Satyrique, prenuncia com um
século de antecedência o caráter libertário e libertador do ideário
iluminista. Ele se entronca numa
tradição genealógica que vem subterrânea desde os gregos e passa por Rabelais,
Ronsard, tanto outros. No século 18
continua subterrânea, certo, mas o veio é muito forte (lembremos do português
Bocage e o círculo neoclássico português).
Seja como for, aprendeu muito o homem no século 18, sobretudo por
retomar a antiga lição racionalista grega ao observar as relações
existentes no mundo natural e, em esforços especulativos, deslindar, por
rebatimentos e contrastes, natureza e cultura. E quanto a
aprendizados: Cláudio Manuel da Costa, um dos nossos inconfidentes de
Minas, aprende algo da vivência amorosa – em especial o sofrimento – ao
ver a perversidade mesmo que – ou justo porque – carinhosa da criança que
brinca de aprisionar e libertar uma pobre avezinha. Lições de amor, agora em
linguagem, digamos, menos decorosa, (que se manteria debaixo do tacão censório
pelos tempos afora) é o que também está no poema anônimo francês traduzido por
Marcelo Diniz, em que a primavera desperta o cio por toda parte - e ai se não
despertasse! A relação interior natureza/subjetividade, em tonalidade
pré-romântica desponta neste deliciosamente obsceno soneto seiscentista (em
tradução de cunho emulatório de Diniz, que parece mesmo superar o
original), tanto quanto os dilemas de fundo cultista entre razão e desrazão
estão no de Cláudio Manuel. Lógico que se sempre se poderá
argumentar qualquer coisa a favor do século 18 – e mesmo contra, que
neste mundo nada é mesmo simples – mas convém não esquecer que a tônica aqui
vai sobretudo para o sortilégio (palavra tão pouco iluminista!) verbal próprio
de poesia tão boa – incluindo, claro, a excelência da tradução.