segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

AH, DOIS SONETOS... E O SÉCULO XVIII
















Observação inicial: o título desta postagem estava errado.  Agora foi feita a correção. Embora o século 18 seja central aqui, como ideário, a nortear os comentários a respeito dos dois sonetos, o do Parnasse Satyrique é do século 17, conforme se lerá ao final. Por isso mesmo, penso ser  fundamental proceder à correção. 

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... DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA


Não vês, Lise, brincar esse menino
Com aquela avezinha?  Estende o braço;
Deixa-a fugir; mas apertando o laço,
A condena outra vez ao seu destino?


Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo,
Que cuido, que estou livre do embaraço,
Então me prende mais meu desatino.


Em um contínuo giro o pensamento
Tanto a precipitar-me  se encaminha,
Que não vejo onde pare o meu tormento.


Mas fora menos mal esta ânsia minha,
Se me faltasse a mim o entendimento,
Como falta a razão a esta avezinha.


                                        Pong..!
                            

                            do PARNASSE SATYRIQUE

                            Amo flagrar nos bosques a aventura
                            da traseira a pastora ao pastor dando
                            tanto e tão bem que o gozo culminando
                            desmaiam mortos ambos na natura


                            amo dos campos ver não a pintura
                            mas um carneiro à fêmea então carcando
                            mesmo o bode que à cabra enfim montando
                            não lembra mais de prado e de verdura

                            amo ver na campina todo o empenho
                            da vaca sob touro tão ferrenho
                            que a vararia e em duas se pudesse


                            foder é a nossos olhos primavera
                            tão vária que se nada mais fodesse
                            campina campo e tudo mais já era
                       
(soneto do século 17 do Parnasse Satyrique, anônimo, traduzido por Marcelo Diniz)


J’ayme dedans un bois à trouver d’aventure,
Dessus une bergère un berger culetant,
Qu’il attaque si bien et l’escarmouche tant,
Qu’ils meurent à la fin au combat de nature.


     J’ayme voir dans les champs non la belle peinture,
     Mais un bélier cornu sa femmelle foutant
     Et le bouc éschauffé sur la sienne montant
     Par un si doux plaisir oublier sa pasture.
 


J’ayme voir sur un pré à un pareil effort
Le taureauqui se joint à la vache si fort,
Qu’il voudroit s’il pouvoit la percer d’outre en outre.

     Le foutre est à nos yeux un printemps diapré,
     Au coeur un paradis, mais si je ne vois foutre
     Je n’ayme point ny champs, ny campagnes, ny pré.












            Pensei em dar a  esta postagem o título de algo como “Viva o século 18!”.  Mas aí resolvi inseri-la na série “Ah, sonetos...” Seja como for,  o espírito dela  é mesmo de celebração do glorioso século quando se completou o que Max Weber chamou de “desencantamento do mundo”, que nos deixou de herança o que de melhor se poderia ter feito da modernidade, com a separação das esferas do saber e o fim das crenças na “magia do Universo” ou coisa que o valha.  Se tanto se desvirtuou de seu legado, talvez possamos culpar de saída a moralidade burguesa que se estabeleceu pelo século seguinte e, que óbvio, é parte do mesmo legado.  Pois na verdade o soneto do Parnasse Satyrique, prenuncia com um século de antecedência o caráter libertário e libertador do ideário iluminista.  Ele se entronca numa tradição genealógica que vem subterrânea desde os gregos e passa por Rabelais, Ronsard, tanto outros.  No século 18 continua subterrânea, certo, mas o veio é muito forte (lembremos do português Bocage e o círculo neoclássico português).  Seja como for, aprendeu muito o homem no século 18, sobretudo por retomar a antiga lição racionalista grega ao observar as relações existentes no mundo natural e, em esforços especulativos, deslindar,  por rebatimentos e contrastes, natureza e cultura.  E quanto a aprendizados:  Cláudio Manuel da Costa, um dos nossos inconfidentes de Minas, aprende algo da vivência amorosa – em especial o sofrimento –  ao ver a perversidade mesmo que – ou justo porque – carinhosa da criança que brinca de aprisionar e libertar uma pobre avezinha. Lições de amor, agora em linguagem, digamos, menos decorosa, (que se manteria debaixo do tacão censório pelos tempos afora) é o que também está no poema anônimo francês traduzido por Marcelo Diniz, em que a primavera desperta o cio por toda parte - e ai se não despertasse!  A relação interior natureza/subjetividade, em tonalidade pré-romântica desponta neste deliciosamente obsceno soneto seiscentista (em tradução de cunho emulatório de Diniz,  que parece mesmo superar o original), tanto quanto os dilemas de fundo cultista entre razão e desrazão estão no de Cláudio Manuel.  Lógico que se sempre se poderá argumentar  qualquer coisa a favor do século 18 – e mesmo contra, que neste mundo nada é mesmo simples – mas convém não esquecer que a tônica aqui vai sobretudo para o sortilégio (palavra tão pouco iluminista!) verbal próprio de poesia tão boa – incluindo, claro, a excelência da tradução.

 

3 comentários:

  1. Sonetos sensacionais. Isso posto, convém dizer: texto leve e despretensioso, inteligente, delicioso. Tanto mais quanto traz à tona aquele século tão querido, talvez o berço a ninar nossa faladíssima Modernidade, em suas peculiaridades pouco elogiosas, mas também em sua potência criativa e, por que não dizer, revolucionária. Nada mal para uma terça-feira à noite, certo?

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    1. Obrigado por suas palavras carinhosas, querida Marcela. Um beijo do
      Roberto Bozzetti

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