sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

De A TAL CHAMA O TAL FOGO: AS ANACRONIAS (1989)


SEIS ANACRONIAS  

 

I

quanto tentei acompanhar o carme adolescente
que solfejei na porta do alumbramento
lábios que refutei por medo
na loja do mundo simples
onde nos condenamos à felicidade.

 

 
II

finjo que ali não tem o que procuro
e adiante embaraço os pés
nos cadarços dos sapatos.
mereço o tombo embora
me iluda: navio, me digo
e não calçada.

 

 
III

aquela noite te acordei e fui te arrastar
com toda volúpia
pra te dizer que o primeiro amor morreu
o segundo amor morreu
o grande amor não era
e cantar-me a tardia adolescência.
para mim.  para meus ouvidos
desabotoados.
 

 

IV

pergunto entre um significado
e o itinerário daquele ônibus
entre o esmalte das carrocerias
e o verniz das carcaças, o sono
e o deambular da espécie
rumo ao mar
lêmingues

 

 
V

na manhã – embora de estiletes
acarinho a vida: seu dorso de terciopelo
a mão vai se tornando minha
a voz zela à bocca chiusa
o adeus à terra prometida
 

 

VI

melancólico ectoplasma medusado fogo flâmula
o varredor vai acumulando palavras recolhidas
junto ao meio-fio
saio de novo para a velha manhã
bonita e desabitada de palavras
ele continua lá.  varrendo.
o ajudo – mtaadoâfperolasnoli
fora as que ficaram
mal varridas.
 
 
 

SÉTIMA ANACRONIA

poder apagar a cidade
relógios e galerias
todas as calçadas toda a memória dos passos
todos os calendários virados.
não se pode estancar a
continuidade da cidade na cidade
do homem na cidade
do homem
como se
- cadê o privilégios dos caminhos? –
fosse só atravessar e num
mesmo movimento
apagar estancar zerar
e viver como se a mentira não fosse a água
a água



 

Roberto Bozzetti. A tal chama o tal fogo.  Oficina Raquel, 2008


Marianne Von Werefkin - Cidade à noite com taberna (1880)

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