A
participação em uma banca de concurso público esta semana me reconectou a um
poeta de quem praticamente me esquecera, de quem não lia nada acho que desde a
graduação: o moçambicano José
Craveirinha. Grande poeta, pensei
em postar dele aqui a monumental “Ode a uma carga perdida num barco incendiado
chamado Save”, poema que foi analisado – aliás, brilhantemente – na prova de
aula por uma candidata. Mas resolvi optar por três peças
pequenas, todas comprovadoras da força excepcional desta poesia. Não localizei nenhum livro do poeta aqui nas
minhas estantes, tendo então me valido do excelente blog de Antônio Miranda http://www.antoniomiranda.com.br/index.html.
SEM
TÍTULO
Não sei se existe Deus.
Mas se Deus existeEle está com toda a certeza
a comer comigo esta farinha
no mesmo prato.
APARÊNCIAS
Amigos!
Apesar das aparênciasestarem de acordo com as circunstâncias
não sou eu quem morre de medo.
Antes
Durante
E após os interrogatórios
(Inclusive nos quotidianos trajectos de jipe)
a minha língua é que se torna de papel almaço
E minhas desavergonhadas rótulas de borracha
Coitadas é que tremem.
Ao bom evangelho dos cassetetes
ouvir avoengos pássaros bantoscantarem algures nos ombros
velhas melodias de feridas.
E depois
à sedutora persuasão das ameaças
pela décima segunda vez humildemente
pensar: Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO!
Será suficiente esta confissão
Sr. Chefe dos cassetetesda 2ª. Brigada?
MÁQUINA ELÉCTRICA DE COSTURA
Quando finalmente Maria
menos havia de cansar-se a
coser sua nova máquina eléctrica de costura
em funesto ilogismo encerrada
noutro esmero de alinhaves
solidária se prosternou
desusada.
Infeliz
máquina de costura.
Extraídos de CRAVEIRINHA, José. Obra
Poética. Maputo: Direcção de Cultura, Universidade Eduardo Mondlane, 2002.
367 p.
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