domingo, 20 de março de 2016

JOSÉ CRAVEIRINHA (1922-2003) TRÊS VEZES


 
 
 
              A participação em uma banca de concurso público esta semana me reconectou a um poeta de quem praticamente me esquecera, de quem não lia nada acho que desde a graduação: o moçambicano José  Craveirinha.  Grande poeta, pensei em postar dele aqui a monumental “Ode a uma carga perdida num barco incendiado chamado Save”, poema que foi analisado – aliás, brilhantemente – na prova de aula por uma candidata.  Mas resolvi optar por três peças pequenas, todas comprovadoras da força excepcional desta poesia.  Não localizei nenhum livro do poeta aqui nas minhas estantes, tendo então me valido do excelente blog de Antônio Miranda http://www.antoniomiranda.com.br/index.html.


SEM TÍTULO

 Não sei se existe Deus.
Mas se Deus existe
Ele está com toda a certeza
a comer comigo esta farinha
no mesmo prato.

 

APARÊNCIAS

 
Amigos!
Apesar das aparências
estarem de acordo com as circunstâncias
não sou eu quem morre de medo.
 
Antes
Durante
E após os interrogatórios
(Inclusive nos quotidianos trajectos de jipe)
a minha língua é que se torna de papel almaço
E minhas desavergonhadas rótulas de borracha
Coitadas é que tremem.

 Ao bom evangelho dos cassetetes
ouvir avoengos pássaros bantos
cantarem algures nos ombros
velhas melodias de feridas.
 
E depois
à sedutora persuasão das ameaças
pela décima segunda vez humildemente
pensar: Não sou luso-ultramarino
SOU MOÇAMBICANO!

 
Será suficiente esta confissão
Sr. Chefe dos cassetetes
da 2ª. Brigada?





 
 
MÁQUINA ELÉCTRICA DE COSTURA

Quando finalmente Maria
menos havia de cansar-se a coser
sua nova máquina eléctrica de costura
em funesto ilogismo encerrada
 noutro esmero de alinhaves
solidária se prosternou
desusada.
 
Infeliz
máquina de costura.




Extraídos de  CRAVEIRINHA, José.  Obra Poética.  Maputo: Direcção de Cultura, Universidade Eduardo Mondlane, 2002.  367 p.

 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário