quinta-feira, 19 de maio de 2016

DOIS POEMAS DE GEIR CAMPOS (1924-1999)


CANTO DE PEIXE I

Há um jeito de calar que o peixe sabe
de mais efeito onde o falar não cabe:
um jeito de boiar sob as estrelas
quando é mais límpido o instante de vê-las,
um jeito de intuir quando faísca
o aço fatal no cerne doce da isca,
um jeito de espelhar raios de sol
para indicar na tocaia um anzol,
um jeito de carpir o companheiro
ferido ou morto por arpão certeiro,
um jeito de saltar por cima d’água
quando submersa é mais dorida a mágoa,
um jeito de rolar dentro da onda
que se encaixota pesada e redonda,
um jeito de flanar sob o navio
de pesca em calculado desafio,
um jeito de franzir as barbatanas
à vista de armadilhas (des)humanas,
um jeito de mascar a excitação
para agir bem na boa ocasião,
um jeito de minguar sob a tarrafa
atento à brecha por onde se safa,
um jeito de acenar ao camarada
que olha os ocos da rede e não vê nada,
um jeito de alertar que sempre vence o
cortinado mais duro de silêncio,
um jeito de treinar as nadadeiras
nas correntes adversas mais ligeiras,
um jeito de nadar roçando o fundo
nas fronteiras do seu com outro mundo,
um jeito de parar tocando o limo
como frágil e derradeiro arrimo,
um jeito de assumir a cor do lodo
ou do saibro ou da pedra e sumir todo,
um jeito de se encompridar na areia
na esteira de prata da lua cheia,
um jeito de ir e vir pelo cristal
líquido num convite ao natural,
um jeito de rondar a fêmea púbere
sem piscar todavia os olhos túmidos,
um jeito de ser frio entre o calor
como a sentir saudade em pleno amor,
um jeito de ver quando se resume
o ser livre em ser mais preso ao cardume
um jeito de entender ante tudo isso
o engano do que foge ao compromisso,
um jeito de velar o ensinamento
até provar-se chegado o momento
de cantando invocar a luz da aurora
entre os  corais do dia que se enflora,
num jeito de cantar que o peixe sabe
– canto de guerra ou cantiga de amor –
mas não é bom que o saiba o pescador.



Geir Campos. Canto de peixe & outros cantos.  RJ: Civilização Brasileira, 1977.



 


METANÁUTICA

Posso te dar a carta de marinha
mas o traço que nela insinuasse
um entre tantos rumos
não

Posso te dar as tábuas de marés
mas a leve emoção de cavalgar
onda e onda após onda
não.

Posso te dar os índices das águas
conforme as densidades, mas a branda
flutuação do casco
não.

Posso te dar a rosa e o timão
mas o desequilíbrio concertante
ao balanço de bordo
não.

Posso te dar exemplos de ancoragens
mas o galeio do barco seguro
retesando as amarras
não.

Posso te dar o longe no binóculo
mas acolá das lentes e paisagem
convidando à viagem
não.

Posso te dar notícia do mar calmo
mas o rumor das franjas no espelhado
junto à roda de proa
não.

Posso te dar o gorro marinheiro
mas a pressão do linho nos cabelos
enquanto sopra o vento
não.

Posso te dar a direção da chuva
mas o gosto da baga salitrada
escorrendo no rosto
não.

Posso te dar posturas de sextante
mas o fulgor da estrela observada
entre horizonte e prisma
não.

Posso te dar os nomes de alguns peixes
mas o espanto de vê-los acender
fosforescentes rastros
não.

Posso te dar frios conhecimentos
mas o que se acalanta no convívio
amoroso do mar
não.

Geir Campos. Metanáutica. RJ: José Olympio, 1970.
 

 

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