domingo, 18 de dezembro de 2016

SOLANO TRINDADE (1908-1974)




CANTO DOS PALMARES

Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!
 
Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos...
 
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada contra todas as tiranias!
 
Fecham minha boca
mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos, até pelo rio.
 
Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar e manejar arcos
Muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas a amar
seus ventres crescem e nascem novos seres.
 
O opressor convoca novas forças
vem de novo ao meu acampamento...
Nova luta.
As palmeiras ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos, matam minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto para salvar a civilização e a fé...
 
Nosso sono é tranqüilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravagismo é o seu sonho
os inconscientes entram para seu exército...
 
Nossas plantações estão floridas,
Nossas crianças brincam à luz da lua,
nossos homens batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam essa música...
 
O opressor se dirige aos nossos campos,
seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr...
 
Ainda sou poeta
meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores não são mais pacíficos,
até as palmeiras têm amor à liberdade...
 
Os civilizados têm armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas cantam comigo,
enquanto os homens vigiam a terra.
 
O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta com outros inconscientes,
com armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é simples,
como a própria vida.
Nascem flores nas covas de meus mortos
e as mulheres se enfeitam com elas
e fazem perfume com sua essência...
 
Meus canaviais ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças lambuzam os seus rostos
e seus vestidos feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais que nós plantamos.
 
Não queremos o ouro porque temos a vida!
E o tempo passa, sem número e calendário...
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para prender-me novamente...
 
- É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas
a grandeza da civilização
a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
 
- É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas matas
a grandeza da fé  a Liberdade...
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....
 
Saravá! Saravá!
repete-se o canto do livramento,
já ninguém segura os meus braços...
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm comigo,
eu trabalho, eu planto, eu construo
meus irmãos vêm ter comigo...
 
Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos sublimizam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos, podemos amar!
Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...
 
E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos as tochas acesas,
é a civilização sanguinária que se aproxima.
Mas não mataram meu poema.
Mais forte que todas as forças é a Liberdade...
 
O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...



TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
pra dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio do ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu






GRAVATA COLORIDA

Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada…

Solano Trindade. Poemas antológicos de Solano Trindade.  SP: Nova Alexandria, 2008.


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