E eis
que de repente, sob a batuta do baterista Victor Bertrami, o grande cantor
Renato Braz, o contrabaixista Alex Rocha e também o flautista e saxofonista
Marcelo Martins se transformam em batedores de panelas e vão dar força na
apresentação de “Madame Maldade”, samba com letra minha que tive a honra de ver
musicada pelo amigo, parceiro e supercompositor (supercancionista, diria
Tatit) Fred Martins! A performance aconteceu
em outubro de 2015 no Teatro da UFF, nos dois concertos que Fred – que mora atualmente em Lisboa e vem
desenvolvendo de lá uma carreira das mais consistentes no cenário da canção
brasileira – apresentou aqui, com vistas à gravação de um DVD com uma suma de
seu trabalho e algumas canções novas.
Pois o DVD está pronto e lançado, A música é meu país, numa co-produção do
Canal Brasil e Sete Sóis Produções Artísticas, um produto esmeradíssimo: além da habitual competência de Fred como
músico e arranjador, o time reúne uma nata de músicos, pessoal de primeiríssima
linha, tendo ainda as participações especiais do canto de Ney Matogrosso, Zélia Duncan, Livia Nestrovski
(com a guitarra de Fred Ferreira), além do já citado Renato Braz. Em gravações de estúdio feitas em Lisboa e
Santiago de Compostela há ainda as participações da portuguesa Cristina Águas e
da caboverdeana Nancy Vieira. Todos são
intérpretes que já incorporaram canções do repertório de Fred aos seus
próprios. E o repertório de Fred...
bem, a cada vez que aprontamos uma canção, eu e ele, sinto-me como que pedindo
licença para pisar num terreno muito elevado, onde, no topo, se situa Marcelo
Diniz, seu principal parceiro e grande poeta carioca, além de outros craques em
adivinhar as palavras que ocultam em suas entranhas melodias ou em destas extrair
as palavras para fora de seu “estado de dicionário”. Muito bons são também Manoel
Gomes, Fred Girauta e Alexandre Lemos, além de um eventual Francisco Bosco ou
outros mais eventuais ainda. Me sinto sempre engrandecido ao ser aceito na confraria.
A personagem fala por si só. “Madame
Maldade” nasceu, como se deduz facilmente, das manifestações antipetistas,
antidilmistas e antilulistas que assomaram histericamente às janelas e varandas
em especial dos bairros de classe média das grandes cidades do país, fazendo de
fundo sonoro a quaisquer pronunciamentos, entrevistas ou programas do governo a
partir de 2013, além de estridularem nas ridículas passeatas verdamarelas e
merdavarelas que tomaram de assalto – um assalto permitido, com a complacência
policial, afinal um assalto de “gente bem” – o cenário político entre nós desde
então. Fiz a letra pensando na melodia
de um samba buliçoso, cheio de quebradas, como acabou sendo captado e
soberbamente posto em canção por Fred. Claro,
minha melodia não é a que ficou – nem eu teria competência para isso, imagine –
mas a letra indicava em suas pausas e fonemas algo que a indiciava. Sem contar que, como é bom não apenas com
acordes, notas e compassos, Fred também o é nos truques do jogo verbal – as poucas
canções com letra própria que lançou o provam com sobras - , em alguns passos
ele superou o que eu havia entregue escrito e achou caminhos mais bem
resolvidos para a melodia que compôs: emendas melhores que o soneto.
Eis a
letra como ficou:
"Madame Maldade chegou na janela
Do apartamento
Deu aquela inspecionada
Ali no movimento
Foi até bater panela
Gritou palavrão
Madame Maldade ai que saudade
que sente
Do tempo em que tinha
O maior respeito
Das empregadinhas
De uniforme engomado
Ostentando co’orgulho
O brasão do patrão
Madame Maldade hoje pensa
consigo
Na grande injustiça
De ir se virando
Que nem no pão a lingüiça
E nunca mais Miami
Uma vez por mês
Enquanto em Inhaúma a Conceição
folgada
Pega o celular
E com uma só ligada
Manda entregar
Lasanha
Picanha
Cerveja gelada [costela no bafo]
E frango xadrez
Madame então se queixa
Não há nenhum respeito
Que já não se distingue o avesso
E o direito
E que a gente de bem descolada e distinta
Pode hoje em dia valer o mesmo
que vale
Qualquer marginal
Vai dando faniquito
Não gosta nada disso
E diz que desde quando o
elevador de serviço
Deixou de ser usado começou o
enguiço
E todo mundo sobe pelo Social
Madame Maldade chegou na janela
Do apartamento
Deu aquela inspecionada
Ali no movimento
Foi até bater panela
Gritou palavrão
Madame Maldade postou no
feicebuque
Seu descontentamento
Vestiu verdeamarelo
Beijou o regimento
De tão descolada
Tirou até selfie
Com o capitão
Madame não duvida
Do jeito que anda a vida
Só vai ter delivery pra essa
gente fedida
Pedir bolsa-família, clínico
cubano
Madame nem morta
há de se conformar que é daí
pra
pior
Madame não se entrega
Não quer dar de bandeja
E guarda a sete chaves toda a
prataria
Não pensa fazer nunca o que a
tal Baronesa
Fez com a sopeira que deu pra
avó
Do Benjor"
Duas coisinhas mais: Marcelo Diniz, com muito humor, observou que
se trata – talvez caso inédito! – de um “samba com nota de pé de página”, haja
vista a referência um tanto cifrada à “avó do Benjor” que surge ao final. As pessoas em geral perguntam que diabo é
isso, o que faz com que a coisa termine meio em anticlímax. Gosto do anticlímax e não vou contar aqui o
que está escondido ali não. Mas em
tempos de Google é só dar uma buscada básica que se chega lá.
Outra: Madame Maldade atuou ainda como colunista na página de humor Depobre News, no Facebook,capitaneada
pelo amigo e ótimo poeta carioca André Sampaio.
Durante alguns poucos meses tive competência suficiente para incorporar
o espírito de Madame e colaborar com a página, o que começou na semana da
Páscoa de 2016, quando a coluna estreou. E contei ainda com o fato de que o italiano Giovanni Boldini (1842-1931) também incorporou o espírito de Madame e a retratou, com quase um século de antecedência (cf. ilustração). E pra encerrar pinço lá na página e posto aqui uma “boutade” (oh palavrinha para homenageá-la!) de Madame há
um ano, quando ela comemorava a sessão da Câmara que votou pelo impeachment da
presidente legitimamente eleita e deu início ao golpe em curso no país: “Pela minha sopeira de Limoges... eu voto
SIM! (...) Agora é botar o país de novo nos eixos, não é mesmo, gente? Não
vamos perder o foco. A começar pela educação. Mas uma educação que não fique
querendo convencer as crianças de que a vocação delas é o gayzismo, que todos
devem se esforçar só pra ganhar bolsa-família e passar a vida sem trabalhar, de
que não devem temer a Deus, que a gentalha deve ter privilégios... essas coisas
que a cartilha lulopetista quis impingir nos nossos jovens! Muita moral e
cívica, isso sim! Quem sabe, não podemos inclusive retomar as diretrizes
eugenistas que tanta falta nos fazem? Afinal, já sabia o Conde Gobineau, à
sombra fresca das mangueiras erguidas , em suas promenades com Pedro II (que,
aliás, virou um colégio infestado de esquerdistas!) que esse excesso de
democracia de que padecemos é fruto último da miscigenação... mas quem lê
Gobineau hoje em dia? Seria ótimo, pra começar."
Em face dos últimos, penúltimos e antepenúltimos acontecimentos... bem, parece que Madame Maldade levou essa... está vitoriosa. Mas na verdade tudo indica que não vai nem desfrutar muito os frutos fedidos de sua vitória não. A ver. Pode ser que ela retorne ainda, quem sabe, para reiterar suas queixas numa outra canção.
https://youtu.be/YRbGSYNdOIs
ResponderExcluirO comentário acima é uma performance de Fred Martins cantando a madame na TV Senado. Excelente! Obrigado, caro parceiro.
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