Hilda Hilst (1930-2014) |
Poema IV de Balada do Festival
A Vinícius de Moraes
Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens do
que mulheres.
(Porque fui mais amante que
amiga)
Sem dúvida dirão as coisas que
não fui.
Ou então com grande
generosidade:
Não era mau poeta a pequena
Hilda.
Terei rosas no corpo, nas mãos,
nos pés.
Sei disso porque fiz um pedido
piegas
à minha mãe: “Quero ter rosas
comigo
na hora da minha morte”.
E haverá rosas.
São todos tão delicados
tão delicados...
Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que
mulheres.
E um deles dirá um poema
sinistro
a jeito de balada em tom
menor...
Tem tanto medo da terra
a moça que hoje se enterra.
Fez poema, fez soneto
muito mais meu do que dela.
Lá, lá, ri, lá, lá lá, lá.
Poema
4 de “Do amor contente e muito descontente”
Falemos de amor, senhores,
Sem rodeios.
[Assim como quem fala
Dos inúmeros roteiros
De um passeio.]
Tens amado? Claro.
Olhos e tato
Ou assim como tu és
Neste momento exato.
Frio, lúcido, compacto
Como me lês
Ou frágil e inexato
Como te vês.
Falemos do amor
Que é o que preocupa
Às gentes.
Anseio, perdição, paixão,
Tormento,tudo isso
Meus senhores
Vem de dentro.
E de dentro vem também
A náusea. E o desalento.
Amas o pássaro? O amor?
O cacto? Ou amas a mulher
De um amigo pacato?
Amas, te sentindo invasor
E sorrindo
Ou te sentindo invadido
E pedindo amor. (Sim?
Então não amas, meu senhor)
Mas falemos do amor
Que é o que preocupa
Às gentes: nasce de dentro
E nasce de repente.
Clamores e cuidados
Memórias e presença
Tudo isso tem raiz, senhor,
Na benquerença.
E é o amor ainda
A chama que consome
O peito dos heróis.
E em o amor, senhores,
Que enriquece, clarifica
E atormenta a vida.
E que se fale do amor
Tão sem rodeios
Assim como quem fala
Dos inúmeros roteiros
De um passeio.
Poema
10 de “Do amor contente e muito descontente”
Tenho pedido a todos que
descansem
De tudo o que cansa e
mortifica:
O amor, a fome, o átomo, o
câncer.
Tudo vem a tempo no seu tempo.
Tenho pedido às crianças mais
sossego
Menos riso e muita compreensão
para o brinquedo.
O navio não é trem, o gato não
é guizo.
Quero sentar-me e ler nesta
noite calada.
A primeira vez que li Franz
Kafka
Eu era uma menina. (A família
chorava.)
Quero sentar-me e ler mas o amigo me diz:
O mundo não comporta tanta
gente infeliz.
Ah, como cansa querer ser
marginal
Todos os dias.
Descansem, anjos meus. Tudo vem a tempo
No seu tempo. Também é bom ser simples.
É bom ter nada. Dormir sem
desejar
Não ser poeta. Ser mãe. Se não puder ser pai.
Tenho pedido a todos que
descansem
De tudo o que cansa e
mortifica.
Mas o homem
Não cansa.
TESTAMENTO
LÍRICO
Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha
vida,
Saiba, senhor, que sempre me
perdi
Na criança que fui, tão
confundida.
À noite ouvia vozes e
regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras doiradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das
risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das
palavras.
Nem soube dizer das aflições,
da mágoa
De não saber dizer coisas
amantes.
O que vivia em mim sempre
calava.
E não sou mais que a
infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em
que vivo
Ter rituais e gestos e
lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e
dócil
Querer deixar um testamento
lírico
E escutar (apesar) entre as
paredes
Um ruído inquietante de
sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.
Nem sempre há de falar-vos um
poeta.
E ainda que minha voz não seja
ouvida
Um dentre vós resguardará (por
certo)
A criança que foi. Tão confundida.
Poema
VI de “Dez chamamentos ao amigo”
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?
O
REIZINHO GAY
Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nação.
Mas reinava...
APENAS...
Pela linda peroba
Que se lhe adivinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimônia.
Foi um Oh!!! geral
E desmaios e ais
E doutos e senhoras
Despencaram nos braços
De seus aios.
E de muitos maridos
Sabichões e bispos
Escapou-se um grito.
Escapou-se um grito.
Daí em diante
Sempre que a multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na sacada
Com a bronha na mão.
E eram os agudos
Dissidentes mudos
Que se ajoelhavam
Diante do mistério
Desse régio falo
Que de tão gigante
Parecia etéreo.
E foi assim que o reino
Embasbacado, mudo
Aquietou-se sonhando
Com seu rei pintudo.
Mas um dia...
Acabou-se da turba a fantasia.
O reizinho gritou
Na rampa e na sacada
Ao meio-dia:
Ando cansado
De exibir meu mastruço
Pra quem nem é russo.
E quero sem demora
Um buraco negro
Pra raspar meu ganso.
Quero um cu cabeludo!
E foi assim
Que o reino inteiro
Sucumbiu de susto.
Diante de tal evento...
Desse reino perdido
Na memória dos tempos
Só restaram cinzas
Levadas pelo vento.
Moral da estória:
a palavra é necessária
diante do absurdo.
Hilda
Hilst. Da poesia. SP: Companhia das
Letras, 2017.
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