sábado, 17 de março de 2018

46502




I


Tantos cadáveres empilhados
naquelas tais fotografias
doem
(sabê-los
dói)

Se você não resistir e mais uma vez voltar
atrás
não se transformará em manequim de sal
a aguardar o contato da agência internacional
nem perderá para sempre o seu amor
sorvido em trevas pelo melhor contrato publicitário
de vossas  vidas.
Se mais uma vez você não resistir
e voltar e olhar
pra trás
doerá de novo
ver as mesmas fotos com tantos cadáveres empilhados
como doeu
quando pela primeira vez você viu as fotos
de Treblinka e Auschwitz
quando o mundo pela primeira vez viu as fotos
de Treblinkla, Sobibor, Auschwitz
como dói a cada vez que voltamos a elas para as olharmos
(uma dor que chega a dar certo conforto
- e por isso  voltamos a elas?).
As fotos registraram e certamente ficarão aí para sempre
ao menos enquanto durar nosso sempre
que estamos descobrindo também perecível

- mas sem conforto o que dói
é que os cadáveres empilhados numa quase imperceptível diacronia
vão sendo apagados

nós também os vamos apagando
cada caso cada corpo cada rosto cada nome
cada circunstância de que já não sabemos
não lembramos
nem onde pusemos sua foto
(sabê-lo, sim
dói)







II


Não se empilham mais cadáveres como antigamente
embora pegue fogo a maré
embora haja fogo no alemão
os assassinos mandam recado claro
repercutido pelo corajoso pânico das vítimas potenciais
queremos que o bairro queime e que todo mundo
o mundo todo fique sabendo
como se lapidássemos um coletivo epitáfio

não existe amor no RJ
não existe amor em SP
ninguém mais morre de amor
no largo do Estácio

mas somos 46502
e muitos mais.














2 comentários:

  1. Há uma dor que me encarcera
    Nela não há notícia,
    Nem vira novela.

    Não são as quantidades
    Que me importam.
    São os desleixes!
    Esses impertinentes motivos
    Que caem no esquecimento.

    Não há nada,
    E não é pelo nada
    Que advenho...

    São batalhas nubladas
    Que escurecem nosso pensamento.

    Onde estão as multidões
    Para a heroína que salvou
    Dezessete crianças.

    Estou cansado de barganhas
    De infortúnios desavisados.
    Esse não é um poema fascista.

    É um poema indignado!

    André Ferraz

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