sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

ESSAS COISAS DE ARRUMAR ESTANTE... A POESIA DE ROBERTO SCHWARZ

            Corações veteranos é, que eu saiba,  o único livro de poesia de Roberto Schwarz. Editado pela coleção Frenesi, em 1974. O que me leva de imediato a pensar que antes de conhecer o Schwarz ensaísta na graduação e (mais) no mestrado, eu travei contato com a poesia bissexta de Schwarz, naqueles anos ainda de secundarista interessado em poesia, descobrindo, no contexto complicado da ditadura militar,  a poesia como a possibilidade de uma perene chave para habitar o mundo.
            Eis que dando uma arrumada aqui nas minhas estantes, me deparo com o livrinho, produção praticamente artesanal.  Há muito não o folheava, não saberia precisar quanto tempo.  Aliás, a Frenesi foi também a coleção que me apresentou à poesia de Cacaso e de Francisco Alvim.  Nunca ouvi maiores menções à poesia de Schwartz, a não ser as depreciativas de Augusto de Campos – que também, claro, não tem em boa conta o Schwarz ensaísta.  Ao fazer isso, Augusto está apenas sendo coerente com Augusto.  Não precisa ninguém acompanhar.  De minha parte, tendo enorme admiração por Augusto de Campos, nunca achei que devia.   Aí vão alguns poemas de Schwarz.

JURA
Vou me apegar muito a você
vou ser infeliz
vou lhe chatear


PASSEATA
PAU NO IMPERIALISMO
ABAIXO O CU DO PAPA


PASSEIO
Os automóveis da burguesia cortam as ruas da cidade asfaltada em seu benefício.  A impaciência do motorista é um gesto de classe, a cara esportiva e a cara composta da motorista são gestos de classe. Já a fúria do motorista de praça é fratricida.  Perto de 40.000 automóveis engolem as avenidas, levam para o centro a burguesia, de 80 a 100.000 imbecis passando na frente e sendo passados.  Com 800 ônibus iam todos para o fogo. FILHO DA PUTA de quem buzinou.  Ele e os outros.


PRIMAVERA
Lá fora a boquirrota, a fraudulenta e festiva
Paris troca de pele pela enésima vez
e mostra à freguesia atônita os seus
            múltiplos charmes catalogados.
Pela janela aberta entra o amor e se mistura
            na luz do sol espalhada pelo quarto.
            Alegre música muda.
O poeta ri porque está de pau duro.


INFORME
O ridículo casou-se ao sinistro
seu filho é macabro e ministro.

O bobo e o lucro deitaram juntos
nasceram cretinos com dentes de lobo.

Uma piranha ostracisada olhou
bem e deixou-se ficar solteira.

Os melhorzinhos ficaram loucos
mas antes sovaram-se bastante.



Roberto Schwarz.  Corações veteranos, 1974. 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

QUATRO POEMAS DE CACASO (ANTONIO CARLOS DE BRITO)

AS APARÊNCIAS REVELAM

Afirma uma Firma que o Brasil
confirma: “Vamos substituir o
Café pelo Aço”.

Vai ser duríssimo descondicionar
o paladar.

Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?


FATALIDADE

A mulher madura viceja
nos seios de treze anos de certa menina morena.
Amantes fidelíssimos se matarão em duelo
Crepúsculos desfilarão em posição de sentido
o sol será destronado e durante séculos violas plangentes
farão assembléias de emergência.

Tudo isso já vejo nuns seios arrebitados
de primeira comunhão.


BUSTO RENASCENTISTA

quem vê minha namorada vestida
nem de longe imagina o corpo que ela tem
sua barriga é a praça onde guerreiros se reconciliam
delicadamente seus seios narram façanhas inenarráveis
em versos como estes e quem
diria ser possuidora de tão belas omoplatas?

feliz de mim que freqüento amiúde e quando posso
a buceta dela


JOGOS FLORAIS
I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

II
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?)

Cacaso.  Lero-lero (1967-1985). 7Letras/Cosac & Naify, 2002.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Três poemas de e.e. cummings

·         um político é um ânus no
qual tudo se sentou exceto o humano

            a politician is an arse upon
            which everyone has sat except a man

·         eu
estou
te pedindo
querida é pra
que mais poderia um
não mas não é o que
claro mas você não parece
entender que eu não posso ser
mais claro a guerra não é o que
imaginamos mas por favor pelo amor de Oh
que diabo sim é verdade que fui
eu mas esse eu não sou eu
você não vê que agora não nem
sequer cristo mas você
precisa compreender
como porque
eu estou
morto

i’m
asking
you dear to
what else could a
no but it doesn’t
of course but you don’t seem
to realize i can’t make
it clearer war just isn’t what
we imagine but please for god’s O
what the hell yes it’s true that was
me but that me isn’t me
can’t you see now no not
any christ but you
must understand
why because
i am
dead




·         (i)g-a-t-o(m)
ó,v;e:l

SobresssA
It!fl
UtuatombaN

do?de
SligiranteM
(En)(tE)
&&&

passeia:exata
mente;como se
nad
a tivesse,suce
did

O


(im)c-a-t(mo
b,i;l:e

FallleA
ps!fl
OattumblI

sh?dr
IftwhirlF
(Ul)(lY)
&&&

away wanders:exact
ly;as if
not
hing had,ever happ
ene

D

                       Traduções de Augusto de Campos

In: e.e. cummings. Poem(a)s.  Ed. revista e ampliada.  Unicamp, 2011.



sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

DE POETAS SOBRE POESIA

Carlos Drummond de Andrade: Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação.  Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e                 compromissos.
(In: Autobiografia para uma revista )




Manuel Bandeira: Compreendi, ainda antes da lição de Mallarmé, que a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia.
                                                (In: Itinerário de Pasárgada)

João Cabral de Melo Neto:  
Eu não quero ser embalado, quero ser acordado.  De forma que eu procuro aquelas coisas que aumentem minha consciência da realidade, consciência de mim mesmo e do que eu estou fazendo. Eu procuro uma poesia que fosse como uma cafeína. Uma poesia que fosse um excitante, um estimulante, e não um calmante. De forma que é daí que vem toda a minha imagística valorizando o áspero.  Se você está dirigindo um automóvel  num calçamento de asfalto impecável (...), que não tenha buracos, você acaba adormecendo na direção. (...) Agora, se você for dirigir numa estada irregular, de paralelepípedos, a trepidação daquilo não deixa você dormir.
                                            (In: Entrevista para 34 Letras)


quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

JOAN BROSSA


RUPTURA

Ninguém te obriga a odiar
o ser que amas.
E tampouco estás obrigado a amar
o ser que odeias.
Em troca, toda vez que amas alguém
estás mais perto de odiá-lo.

                        (tradução de Ronald Polito)


RUPTURA

Ningú no t'obliga a odiar
l'esser que estimes.
I tampoco no estàs obligat a estimar
l'esser que odies.
En canvi, cada cop q estimes algú
estàs més a prop d'odiar-lo.

99 poemas Joan Brossa.  Annablume (Selo Demônio Negro), 2009.

sábado, 17 de dezembro de 2011

MURILO MENDES

foto colhida em http://revistamododeusar.blogspot.com/
FINAL E COMEÇO

Lacerado pelas palavras-bacantes
Visíveis tácteis audíveis
Orfeu
Impede mesmo assim sua diáspora
Mantendo-lhes o nervo & a ságoma

Orfeu Orftu Orfele
Orfnós Orfvós Orfeles

Murilo Mendes. Convergência. 1970.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

QUASE

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Enquanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
Ai! A dor de ser – quase, dor sem fim ... –
Eu felhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

...................................................................
...................................................................

Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


 Mário de Sá-Carneiro.  Poesia.  Agir, 1974.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

FIRMA IRRECONHECÍVEL, SEGMENTOS 9 E 10 (FINAL)






No dia 12 de abril postei o primeiro segmento dos dez em que foram divididos o poema “Firma irreconhecível”, dos quais oito já postei aqui, a cada 1 mês aproximadamente de intervalo.  Como eu expliquei no 1º. segmento, este poema dá título ao meu segundo livro, lançado em 2009.  Como ele ocupa sozinho 45 das 170 páginas do livro, resolvi lançá-lo em CD, só o poema, o qual, para comodidade de quem queira ouvir, foi dividido meio que aleatoriamente em 10 faixas. Para fechar o ano e porque também esses dois segmentos finais na verdade são apenas uma sequência única na “lógica” do texto, posto aqui os dois de uma vez.  Ao final do texto, remeto o possível interessado aos links das postagens dos segmentos anteriores.

Dá ganas de assinar tudo
onde sobra assinatura,
onde falta assinatura incide
um tempo incerto, sem
medida e  sem moldura,
agora que a porca espera
só o rabo ser torcido
pra dar cabo duma vez
do que foi mal-entendido,
do que não passou de aceno
a fugir do esquecimento
do que ficou obscuro
do gato e do jumento,
assim como do cavalo,
cavalgadura monumen-
to, complemento adjun-
to cavilar cavalgamento,
o anum, o assum, o corvo,
o corvo, o assum, o anum,
o cavalo e o jumento,
tantos todos caracóis,
todos esses bichos juntos
e mais seus específicos
vertebrais prolongamen-
tos, forma imperfeita
neste mundo de aparências,
escorpião encalacrado
em seus próprios ferimentos,
secreção de baço podre,
alma em que a sífilis deu,
phylogenética vingança
quando não se diz mais:
Meu Deus, livrai-me do mundo
das formas, do inferno me
livro eu, desta vez acabo
a obra e quem dá cabo
sou eu, se a obra não se a-
caba desta vez  me acabo
eu, e o que dá cabo da obra
se não der  sobra a sobra,
da cobra o rabo de fora
não cabe onde cabo deu,
e o cobro que a obra cobra
não cabe no cabo da obra,
não acaba o cabo a obra
que o rabo da cobra sobra,
e na sobra da obra o cabo
não cabe e nem caibo eu.
Em tudo que no céu viaja
vida toda linguagem
viaja uma invenção de
Orfeu Orftu Orfele Orfnós
Orfvós Orfeles,  pela
estrada da dissonância
viaja a doce imagem delas,
como são lindas as mulheres!,
riso franco de varandas,
quero perpetuá-las,
só todas de algumas delas,
nelas quero perdurar,
tola tenção de iluso
narciso intruso porfia,
a mulher que foi comigo,
a que não foi mas iria, a
que a vontade de viciado
satisfazer saberia, a
que sente meus dedos frios
sobre a sua espádua nua,
a que só me saberá
quando eu feder à sua porta,
a mulher vesga do gerente
com um belo par de pernas,
a que me proveja de vinho,
legume, fruta, azeite,
a de quem furtei o peito
que dava leite para a filha,
a de quem ouço o mugido,
ganga informe sem palavra
ou melodia, canto inter-
rompido pela língua
paralítica, a que ajoelha
e mente aos pés da santa
cruz, perjura, a quem da in-
fância me perdeu no mangue
de carne escura, aquele amor,
nem me fale, dlendlena e es-
guicha luz como se a noite
mudara no mais cris-
talino dia, no meio da
tempestade, je les veux
perpétuer, velozes por
entre os ramos, nuas
por entre o mato, negan-
do à mão aos olhos dando,
ninfas a me bouleverser,
dez entre nove, o nome,
quero ver dizer o nome
o nome de quatro meninas
Analice, Doralice,
Marilice, Rosalina,
o nome de oito meninas,
Ivonete, Luzinete,
Internete, Gonçalina,
Analice, Doralice,
Marilice, Rosalina,
quero ver dizer o nome
o nome de vinte meninas,
Glaucileide, Gladislene,
Aparecida, Hermolina,
Luzinéia, Januária,
Saradiva, Carolina,
Cleonice, Laodicéia,
Daniela, Sacarina,
Ivonete, Luzinete,
Internete, Gonçalina,
Analice, Doralice,
Marilice, Rosalina,
disse vinte vinte e uma
com a mais nova das meninas
Mariana três vez sete
vinte vítimas mais uma
apague os nomes seu poeta
tranque o estro, venda o engenho,
corte o sestro, cumpra a sina,
morra cedo, dê seu jeito,
troque o truque, faça o fácil
do ofício, puxe do fácil
o difícil, do difícil tire
o fácil,  do inócuo tire o
iníquo, papéis velhos para
a pira, certidões, álbuns
de moça, retratos, ilum-
inuras, carretéis mal-
baratados, santelmos
na noite escura, não se perca
na minúcia, alegria é a
vizinha mais antiga da
tristura, labirinto da sau-
dade, lábios de outra idade,
sábios dormem a cidade,
verdade é o mesmo que mentira,
o mesmo que ficção,
fiação, tesoura e lira, 
vocêelaeu desfeito,
idêntica identifica
tudo assim do mesmo jeito
onde quer que esteja agora,
em Marte ou Eldorado,
chego onde em sono ela mora
a encontrar do outro lado
do lado de lá da aurora
no magma, no Japão, na água, 
oceano de acenos
impercebidos do porto,
meu espelho face a face
onde a dor entranha a ostra
que o mergulhador desventra
sedento de outra boca
agra flor de amarugem
sem sombra,  traço, linha
ou ponto, sem nojo, nódoa ou
tonsura, quero ver, quero
que mostre o indene ao
sedimento e ao bolor
que se acumula, anti-
nosto, coruscante feixe
posto ante o sol-posto,
aos fractais da lonjura,
quero o incorrupto exposto,
o que deflagra, o que ulula,
o que não se dissemina,
não dissipa, não considera
retorno, o que propõe,
o que dispõe, o que firma
da assinatura o oposto, quero,
mostra-me teu rosto.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

ICARAÍ NEW-GARDEN E OUTROS BREJOS

Saí de Niterói faz dois anos.  Me assustou agora constatar que morei lá por 30 anos, mas é fato, depois de 23 anos em Copacabana.  Essa simples “aritmética biográfica” me leva a uma série de associações que... deixo pra lá, não é o assunto de que quero tratar aqui.
Bom, antes de vir para este brejo onde hoje estou, morava desde 96 em Santa Rosa, em quatro endereços diferentes, numa área limítrofe com Icaraí, o que sempre me levava a perguntar na hora de preencher CEP, se eu moraria num ou noutro bairro.   Aos poucos no entanto eu fui aprendendo a contragosto que morava no Jardim Icaraí.  A contragosto por quê? Porque sempre soubera – ou achava que sabia – que o tal Jardim se restringiria a uns poucos quarteirões retirados, num cantinho que vai encostar lá pros lados do Vital Brasil. Era o que me diziam moradores mais antigos, familiarizados com essas sutilezas geográficas, em geral fruto de um convívio amoroso com a história do lugar onde moram.
Mas não! Fui constatando aos poucos, surpreso, que, sem  nunca ter ido morar no Jardim Icaraí, nos meus últimos 4 ou 5 anos por lá morei justo... no Jardim Icaraí!  É porque a especulação imobiliária que assola a antiga Cidade Sorriso  acha que “Jardim Icaraí” tem uma nobreza no nome, entendem?   “Acha”, não, melhor dizendo, sabe.  A publicidade sabe captar essas ânsias de ascensão social naqueles que vêem sua situação econômica melhorar e passam a ter como objeto de desejo  atingir outro patamar no seu dia-a-dia.   “Sempre foi assim”, digamos pra simplificar.  A conferir no poema de Oswald de Andrade dos anos 20, rindo dos novos ricos paulistanos, dentro do “espírito futurista”, impregnando de amor-humor sua relação com os “modern times”, mesmo que (ou justo por conta disso) a cavaleiro de sua condição de milionário que viria a dilapidar a fortuna da família tradicional.  No poema abaixo temos a inconfundível voz paródica oswaldiana dialogando com a mentalidade jeca-chique dos novos ricos, tão bem capitalizada pela publicidade:

IDEAL BANDEIRANTE
Tome este automóvel
E vá ver o Jardim New-Garden
Depois volte à Rua da Boa Vista
Compre o seu lote
Registe a escritura
Boa firme e valiosa
E more nesse bairro romântico
Equivalente ao célebre
Bois de Boulogne
Prestações mensais
Sem juros

Oswald  sabia que pra essa mentalidade  todo jardim é new-garden, romântico buá de bulonhe.
Vai daí que assim, quase 100 anos depois, se eu nunca morei no tal Jardim, ele veio tentar morar em mim, por artes da indústria imobiliária.  Indústria mobiliária que tem notórios laços com a trupe instalada no poder em Niterói há não sei quantos anos, devastando aquilo lá já há muitos mandatos. Saí de Niterói, portanto, a um passo de morar no Jardim Icaraí.  Uma das vezes em que por lá voltei, ao circular   pela área que virou Icaraí New-Garden,  fiz mais ou menos de cabeça o inventário das casas que por ali havia e que não existem mais.  Fazendo contas de cabeça, me toquei um tanto atordoado que desapareceram, num espaço de alguns poucos  quarteirões, umas 30 casas, substituídas, claro, por edifícios de 10 pavimentos em média.  Isso só circulando nas ruas onde morei desde 96.  Prossigo as contas: se cada edifício  abriga,  calculando por baixo, 20 famílias (na estimativa modesta de 2 aps. por andar), isso quer dizer que saíram 30 famílias e entraram... 600! As ruas do New-Garden são estreitas, a rede de esgotos para atender o número de moradores multiplicado por 20 (por baixo) é a mesma... bom, o que daí decorre está espetacularmente bem exemplificado naquela explosão que aconteceu na estação de esgotos da cidade em abril, inundando de merda e causando uma destruição inimaginável à área perto do Mercado São Pedro (que, aliás, continua sendo a melhor coisa de Niterói – o mercado, não a área).
Sem exagero, sem vontade de fazer “literatura”, sem expressionismo chulé: bandas de música, fanfarras, faixas, gambiarras, bandeiras e guirlandas, fogos de artifício e pobres, muitos pobres muito pobres de perucas multicoloridas – “e quase brancos quase pretos de tão pobres” – foi o que vi de uma das últimas vezes que circulei por onde morei (um quadrilátero formado pela Lopes Trovão, a Otavio Kelly, a Av. Sete e a Rua Santa Rosa).  E vi em três esquinas diferentes, em stands de vendas abarrotados (de novo sem hipérbole) das incorporadoras, os lançamentos espalhafatosos de  uns “Palazzo de Milano”, “Quartier  Versailles” e assemelhados... ou seja, o processo de destruição urbana e todas as suas conseqüências (pet-shops, academias pra exercitar narciso, restaurantezinhos  metidos a finos, barzinhos pra ocupar as calçadas com cadeiras e bêbados chatos etc) está longe de se dar por esgotado, vai render (em mais de um sentido) ainda um bocado.  
Outro dia li um texto no  ótimo blog do poeta Oswaldo Martins  e posto aqui uns trechos, não só porque concordo integralmente com ele mas também porque ilustram perfeitamente o que eu estou querendo dizer:

“Quando alguém, visando a beleza de um produto, a ele dá um nome de um pintor, de um poeta, de um músico, falseia a relação do produto com o público e mostra a destruição que a obra do artista sofre pela exposição midiática. A emulação grosseira pressupõe a falta de leitura daqueles que os mestres da publicidade pensam ser o público alvo do produto oferecido.
(...)
Quando Baudelaire disse que o poeta iria ao mercado vender a alma, como as putas vendem o corpo, não disse ou justificou a mixórdia do mercado – senão que dele fez lugar de preferência para passear a inaptidão do sujeito, sua radical redução à aberração denunciatória dos novos tempos recém-inaugurados.
Quando Caetano entra na justiça para proibir que um investimento qualquer roube-lhe a tropicália para nela fazer morar mal-pensantes que pensam comprar a modernidade e o paraíso, merece, novamente, nossa absoluta aprovação.”  (cliquem aí http://osmarti.blogspot.com/2011/10/picasso.html)


Citei lá em cima o  antropófago. Já  Oswaldo Martins passa por Baudelaire e fecha com Caetano, perfazendo aqui no todo deste texto um percurso por três grandes artistas e grandes provocadores (artistas provocadores) da modernidade (palavra, aliás, que foi cunhada pelo francês).  Enxergar essa dimensão do urbano como horror e fascínio (Friedrich), como aquilo que a poesia não teria mais como nem porque se furtar a tomar como tema e como problema (Candido), essa primeira “sacada”, por assim dizer, quem a teve foi, parece mesmo, Baudelaire.  Oswald soube rir, cínico e conciso, dessa avalanche espreitante de filisteísmo. Assim como Luís Aranha, este com boa dose de galhofa e de jorro poético, parece que entre nós foram eles que mais se aproximaram do “futurismo” de Apollinaire, Cendrars e Palazzeschi, o entusiasmo dos novos tempos numa das mãos, a derrisão na outra.   Mário e Bandeira, para ficar só na primeira hora dos anos 20, também cantaram a cidade moderna, sendo que neles parece haver sempre um travo de indefinível melancolia pela perda de uma paisagem anterior – e neles muito interiorizada.  Foi bom para mim me retirar aqui para este brejo e poder meditar e amar mais detida e distanciadamente essa poesia.  Ainda que para me deparar com minha própria raiva surda e impotente diante desse processo.
Da última vez que estive em Niterói, estava no campus da UFF no Gragoatá quando uma colega comentou que “aqueles apartamentos ali” estavam sendo vendidos a 300, 400 mil cada um.  Olhei para ver quais apartamentos e constatei que se tratava simplesmente de novos prédios em fase já final de construção onde era o casario na Avenida Litorânea, no trecho que medeia entre São Domingos e o Forte.  Meio desconcertado perguntei à amiga se era aquilo mesmo, se eles estavam ali no lugar daquelas casas... diante da resposta afirmativa, não lembrei do “diabo leve quem pôs bonita a minha terra!” do Bandeira, não.  Nem fiquei pensando com que nomes eles teriam sido batizados para ganharem seu verniz de obras de arte. Tive mesmo foi vontade de nunca mais voltar a Niterói.