A amiga Leda Beck, que mora em São Paulo, em passagem
pelo Rio me disse que deu um pulo na Da Vinci, que estava vendendo livro de
baciada e que lá, entre outras coisas, adquiriu uma antologia de poemas
populares curdos, traduzidos para o francês.
Leda, que é tradutora (tem se dedicado atualmente a traduções de Maquiavel) , empolgou-se e traduziu três cantos
de amor do francês para o português. Então pedi-lhe, e ela concedeu: publico-os aqui, com muita
alegria
Talarico ilustrou, inspirado no detalhe de uma
iluminura curda do século XIV que é a
capa do livro.
Oh Cavaleiro, Cavaleiro [1]
Oh Cavaleiro, Cavaleiro...
A montanha é tão alta, já não te vejo.Minhas mãos queriam colher buquês de rosas, de manjericão, de narcisos,
Mas não têm força para romper os caules.
Desgraça minha, desgraça de meu pai!
Depois de conhecer os olhos de Smailê Ayô,
Já não aceitarei mais a homenagem de coração algum aqui na planície.
Oh Cavaleiro, Cavaleiro...
Levantei de madrugada e ainda não fiz nada.Minhas mãos ainda não tocaram a água fria ou quente.
Vi passar os ciganos, que me leram a sorte,
E me deram a triste nova.
Disseram-me: “Eles pegaram, menina, o nobre caro ao teu coração,
Colocaram algemas nos punhos de Smailê Ayô,
E o levaram ao posto de Diyarbekir”.
Oh Cavaleiro, Cavaleiro...
Cavaleiro, já não estou aqui nem alhures,
Sou uma nesga de nuvem negra sobre o mar,
Sou a chuva fina batida pelo vento,
Sou a amante de Smailê Ayô, pai de Abdelqader, cavaleiro da égua baia.
Oh Cavaleiro, Cavaleiro...
Ouvi cantar o galo da meia-noite.
Smailê Ayô, o nobre caro ao meu coração, desceu ao grande pátio,
Arreou a alazã cinzenta,
Montou e partiu para países longínquos.
Fui ao terraço do castelo e o chamei por três vezes.
Oh Cavaleiro, Cavaleiro...
Que nossa maldita aldeia queime, a estrada a margeia!
Passou um batalhão de jovens guerreiros do Curdistão.
Eu lhes disse: “Boa viagem, rapazes, aonde vão?”
“Vamos à cidade de Mouch,
guerrear.”
[1] Lamento composto entre 1925 e 1930 por uma jovem cujo
amante fora preso.
Canto da abandonada
— Amiga, amiga, oh branca!
Que fazes sobre esse monte, tu que, ruiva e bem penteada,Abandonas tua cabeleira ao vento?
Lancei minha boca ao chego de tua garganta,
Meus lábios deslizaram e caíram na fonte
De dois seios onde o leite ainda não passou.
Amiga, amiga, oh branca!
Nossos cavaleiros montaram a cavalo, de manhã
Sua vanguarda chegou aos montes Evdeleziz,
Sua retaguarda ficou ao pé do Qewqêb.
Que eu seja um buquê entre buquês
E caia entre as mãos de meu bem-amado!
Que ele me respire, e me coloque entre seus bigodes negros,
Oh meu amado! Deixa minha mão. Os demônios e os maldizentesE os caluniadores são muitos em nossa aldeia!
Sujarão minha reputação e a tua.
Amiga, amiga, oh branca!
O calor do verão tombou sobre nós.
O ardor do dia queimou, queimou.Vi o rebanho das jovens gazelas
Que se agruparam na planície;
E eu, eu permaneço virgem na casa de meu pai!
O mundo da ruína voltou-se para minha cabeça.
Depois da meia-noite,
Em minha cabeça, a madeira do berço
Tornou-se um fardo pesado, um desejo obcecante.
Vi o rebanho de jovens gazelas de um ano,
Mamando em suas mães.
Mas eu permaneço virgem na casa de meu pai.
Depois da meia-noite,
Sonhando com o rebanho de gazelas,
Eu me lamento e deixo minha cabeça vacilar.
Oh cruel
Oh
cruel, cruel, cruel,
Sou
pássaro entre pássaros negros,Pouso nas ameias da infeliz Diarbekir,
Asas e plumas lassas,
Minha alta figura curvada,
Como terei forças para andar amanhã?
Oh cruel, cruel, cruel,
Esta manhã não pude avançar
Nem pude fugir.
Não haverá uma alma caridosa
Para levar, de noite, uma palavra minha
Ao cavaleiro dos cabelos cacheados?
Talvez ele aceite me raptar,
Oh! Sim, que ele me rapte!
São numerosos os que me desejam,
Os homens que vieram pedir minha mão estão sentados na casa de meu pai,
Vede como são numerosos.
Oh cruel, cruel, cruel,
Sou pássaro entre pássaros vermelhos,
Pouso nas ameias de Diarbekir queimada,
Asas e plumas transidas,
E os ossos de minhas asas mortificados.
Amanhã já não terei forças para voar, nem para andar.
Não haverá uma alma caridosa para levar uma palavra minha
Ao cavaleiro dos cabelos cacheados?
Se ele quiser me raptar,
Que me leve!
Se não quiser,
Muitos são os que me desejam,
Há numerosos pretendentes na casa de meu pai, a pedir minha mão.
Eles são vinte e seis!
In: CHALIAND, Gérard. Anthologie de la poésie populaire kurde.
Paris : Éditions de l’Aube, 1997. Outras versões da mesma antologia, pelo mesmo
autor, podem ser encontradas em edições de 1961 (Maspéro), de 1975 (Ed.
Aujourd’hui) e 1980 (Stock).
A antologia de poemas
populares curdos publicada por Gérard Chaliand em 1997 reúne traduções para o francês de cantos de amor (três deles publicados
aqui), cantos épicos, outros cantos e a grande epopeia curda Mamé Alan,
que data provavelmente do século XIV. São todos versos sem rima, cujo
comprimento varia de acordo com o fôlego do cantador – o dengbêj, griô
do Curdistão. A maioria deles foi criada por mulheres em duas variantes do que
chamamos de língua curda: o kurmanji (falado pelos curdos da Turquia, da Síria
e pela maioria dos curdos do Irã) e o sorani (curdos do Iraque e do Irã
meridional). A língua é escrita pelo menos desde o século XVII, quando o poeta
Ahmed Khani transcreveu o Mamé Alan, considerado um clássico da
literatura curda.
Perdeu-se, porém, uma
parte dos textos originais dos poemas publicados por Chaliant, muitos deles
recolhidos pelos próprios curdos, ao sabor dos exílios, em revistas de vida
breve, a partir de meados do século XIX, quando a transmissão dessa cultura
pelos dengbêj foi se tornando cada vez mais fragmentada. Há também uma
abundante literatura poética traduzida do curdo, sobretudo para o alemão e o
armênio, por gerações de orientalistas.
Estima-se que há, hoje,
cerca de 25 milhões de curdos, metade dos quais está na Turquia, onde esse povo
sofreu as piores atrocidades a partir do fim da Primeira Guerra Mundial. Foi
então que as potências ocidentais redesenharam o mapa da região, inventando
cinco estados nacionais: Síria, Cisjordânia, Líbano, Palestina e Iraque. Com os
nacionalismos, recrudesceu a perseguição à minoria étnica curda, principalmente
na Turquia, cujo Império Otomano (1299-1923) estava em franca decadência. Lá, a
língua e a cultura curdas foram proibidas (deputados curdos chegaram a ser
condenados a 15 anos de prisão por falar curdo).
A partir dos anos 1930,
um orientalista francês, Roger Lescot (1914-1975), que em 1945 fundou o
Instituto de Estudos Curdos na Escola Nacional de Línguas Orientais Vivas, destaca-se por enfrentar a empreitada de traduzir – pela
primeira vez poeticamente, não literalmente – o Mamé Alan. Nesta pequena
seleção da antologia de Chaliand, Lescot traduziu o poema Oh Cavaleiro,
Cavaleiro do curdo para o francês. Pierre Rondot (1904-2000), que foi
diretor do Centro de Estudos sobre a África e a Ásia Modernas (CHEAM), em
Paris, traduziu o Canto da abandonada e o autor da antologia traduziu Oh
cruel, com a ajuda de Kamuran Ali Bédir Khan (1875-1978), membro de uma
tradicional família curda.
Curiosamente,
os três – Lescot, Rondot e Chaliand – tiveram uma formação humanista, sobretudo
em Letras, mas os dois primeiros fizeram carreiras militares e Chaliand, o
único que ainda vive, fez carreira acadêmica, mas é um especialista em guerra
de guerrilhas. Já esta tradutora do francês para o português não fala curdo e, de militar,
só tem as asas.
Combatente curda de Kobani |