III
Ao entardecer, debruçado pela
janela,
E sabendo de soslaio que há
campos em frenteLeio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era
um camponês
Que andava preso em liberdade
pela cidade.Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como que anda no campo
É triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
XLIV
Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite
toda.Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído,
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me a sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
Fernando
Pessoa. Obra poética. RJ: Aguilar, 1963
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