quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

MURILO MENDES

Tela de Heitor dos Prazeres

ISIDORO DA FLAUTA
Nasci coisando, nasci com a música.  Recordo-me perfeitamente ao ouvir nosso Orfeu  número 1, Isidoro, flauteando na casa de meu pai, de Titiá e de Sinhá Leonor, tendo eu três anos de idade; Mamãe Zezé pianolando e cantando, mais tarde soube, árias de Porpora e Caldara.
Um homem de ouvido afeito cedo à visitação da música não suporta o mesmo normal desafinamento, quanto mais o cliquetis de espadas e ruído de bombas.
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Isidoro da flauta é, por acaso, preto.  Fino; música é com ele; Isidoro flauteia a vida inteira; seu canto menor aplaca por instantes ódio, inveja, libidinagens,alguns trovões.  Que idade tem Isidoro? É intemporal, como tantos da sua resistente raça.  Não pacifista, antes pacífico.
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Cheira a domingo, é a flauta de Isidoro da flauta que se aproxima, uma pequena festa levantada no eco, jasmins-do-cabo orvalhando, o vácuo expulso, a evaporação da mágua, um sub-céu incorporado à curva do meu ouvido; segundo Rimbaud, um vento de diamantes.
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No princípio quero pegar o som.  Isidoro passa-me a flauta, é preta com uns enfeites prateados, reviro-a de todo jeito, Isidoro cadê o som, responde: o som está escondido na minha boca e no oco da flauta mas eu aperto ele com as mãos; Isidoro ri, sadio, parece que tem 64 dentes, branquíssimos.  Isidoro cadê o som? Isidoro sem dúvida está mordendo o som.  Corro para lá e para cá, vejo um começo de incêndio no morro do Imperador, julgo que o morro acendeu um fósforo.  Cadê o som? Isidoro querendo me sossegar diz que o som correu para apagar o fogo mas vorta já.
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Ninguém isola Isidoro da Silva da sua flauta.  Não se diz mais: Isidoro, ou o preto Isidoro, se diz hoje e sempre Isidoro da flauta.
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Lá das profundas da noite – rua perpendicular ao meu ouvido – vem a serenata andando, e eu com mãos acesas para pegá-la.  Flauta, cavaquinho, violão.  Não sei quem está no cavaquinho e no violão, só sei que Isidoro da flauta está na flauta. Ouço os pés da serenata chegando.  Param de fronte ao número 467 onde mora dona Lucinda, viúva de porte majestoso, com seis filhas.  A serenata será para todas, inclusive a viúva?  Para as meninas garanto.  Eu gosto da quinta, Marília, sonsa, atirada, sorriso moreno, que me aplica os olhos castanho-amarelados; a viúva costuma me dar beliscões, mas de simpatia.  A serenata, passos vazios, afastou-se, reviro-me no travesseiro, nunca verei de perto o som, nem o tocarei.  Por outro lado, segundo Gil Vicente, já vejo cousas que não vêm nem vão.  Não ouço mais o tiquetaque do relógio, penso, na certa foi dormir.  O ouvido se me abruma; faz frio, tenho os dentes descobertos.

            In: Murilo Mendes.  A idade do serrote. Sabiá, 1968

No meu exemplar do livro há um bilhete escrito por meu pai, que foi presente dele.  Transcrevo-o: “Na compra da Idade do serrote, comprei um cabo e muitas lâminas de serrote pros muitos parentes militares cerrarem fileiras. Papai. 19/XI/88 (É o da Bandeira)”  E anotado bem lá em cima: Elizart livros – R. Larga 63
Murilo Mendes por Talarico

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