domingo, 13 de julho de 2014

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Sá-Carneiro celebrizado na caricatura de Almada Negreiros



CARANGUEJOLA

 

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo.  Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com esses enleios e medos?
Não fui feito pra festas.  Larguem-me! Deixem-me sossegar!

Noite sempre plo meu quarto.  As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
 
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edredom bom fogo –
E não penses no resto.  É já bastante, com franqueza...

Desistamos.  A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim.  Co’a breca! Levem-me pra enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.
 
Justo.  Um quarto de hospital higiênico, todo branco, moderno e tranqüilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...
 
Quanto a ti, meu amor,  podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica.  O menino dorme.  Tudo o mais acabou.

                                                                       Paris, 1915

 
Mário de Sá-Carneiro.  Poemas completos.  Lisboa: assírio & Alvim, 2001
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário