segunda-feira, 10 de outubro de 2016

AH, DOIS SONETOS... DE BOCAGE (1765-1805)

I.
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa,
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

“Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou vida folgada, e milagrosa:
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”

In: Os melhores autores da poesia portuguesa erótica e satírica do séc. XVIII.  Seleção e organização de Antônio Péricles da Costa e Isabel Maria da Costa.  SP: Planeta, 1964.




II.
Já Bocage não sou!... à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa! Tivera algum merecimento
Se um raio da Razão seguisse pura!

Eu me arrependo: a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei! Oh, se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

In: Bocage: sonetos.  Introdução, seleção e notas de Vitorino Nemésio.  Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1956.


 
Estátua de Bocage em Setúbal, terra natal do poeta


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