quarta-feira, 5 de outubro de 2016

DOIS POEMAS DE OZIAS FILHO




bala perdida

 
                   que
 

                            desce

 
                                      o morro

                   
                        s   o   b   r   e   v   o   a

 
        o asfalto

 
 

                   e se aloja na cabeça
 

                            de um anjo

 
 

que
 

         se
         agachou

 
 

         para apanhar

 
         uma das penas

 


O RELÓGIO AVARIADO DE DEUS

 
pelo sorriso que não deu
(e se o fez nem sentiu que sorria)
pelo beijo desejado todos os dias
pelo amor da menina de óculos
fundo-de-garrafa do final da sala de aula
que nunca virá
(e quando vier, outros será o amado)
pelo silêncio guardado no calabouço
pela mãe dividida  com o irmão
pelo não
pelo verbo implodido na garganta
pelo pai sonhado e por isso inexistente
(como todos os pais sonhados
e por isso inexistentes)
pelo filho que enviou sinais
e os tradutores não conheciam a sua língua

pelo parapeito
         (o último pódio)

pela vista panorâmica
         (do nada)

pelo Junho
         (sem santos populares

nas alturas)

pela terça-feira
         (de céu limpo)

pela janela
         (do oitavo andar)

pelo vôo
         (sem pára-quedas)

pela consciência
         (ante o asfalto)

pelo impacto
         (antes do zero
da nossa impotência)

morreste-nos  


 

 

Ozias Filho. O relógio avariado de Deus.  Rio: Texto Território, 2016.

 




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