para o Marcelo Mendez
Quando resolvi escrever sobre Ademir da Guia fui aos googles da vida para precisar alguns dados, esclarecer outros. Então descobri que o craque faz 69 anos neste de 3 de abril. O texto rascunhado ganha forma definitiva e é postado para celebrar a data.
Nunca vi ao vivo um jogo do Palmeiras, nem quando acompanhava de perto, na adolescência, futebol. Dos grandes times de São Paulo acho que foi o único que nunca vi, num daqueles Rio-São Paulo/Robertão. Tenho absoluta certeza de que o Palmeiras não vi – o Corinthians eu tenho alguma dúvida – porque jamais esqueceria se tivesse visto ao vivo Ademir da Guia. Por nunca tê-lo visto ao vivo, nos meus retalhos de memória Ademir da Guia é mais cinza do que verde. Quando a cor chegou à TV no Brasil, o craque já estava na reta final de carreira. O verde vestindo Ademir só nas capas da Revista do Esporte.
O interesse pelo futebol nasceu com a TV comprada pela família em 65, acho, e além de Pelé dois nomes de jogadores dos anos 60 ficaram para sempre fixados, junto a suas imagens fugidias mas resplandecentes, em meu encanto pelo futebol que jogavam e que me impressionava: Paulo Borges, um endiabrado ponta-direita do Bangu, velocíssimo, habilíssimo, goleador mortal naquele grande time (sim, o Bangu era grande nos anos 60!) vice em 64, 65 e 67, campeão em 66. Paulo Borges que acabou sendo comprado pelo Corinthians em 68, e que em seu primeiro jogo ajudaria o Timão a quebrar um “tabu” de 13 anos (acho) sem vitórias sobre o Santos, inclusive com gol seu. Mas hoje aqui não é Paulo Borges nem Pelé.
Ademir da Guia: graças a ele fui aprender o significado da palavra “sarará”. Aquela figura mulata de pele clara, cabelo pixaim louro, era uma dissonância na paisagem humana habitual: eu via negros, mulatos de todos os tons – como se diz no Brasil – pardos em geral, brancos, louros, brunos, e não só no futebol. A dissonância também estava nas passadas largas do craque singular: Ademir parecia de fato uma figura em câmera lenta, o corpo dando constantemente a impressão de que flutuava, não sei bem, uma espécie de movimento um pouco acima do chão, de quem pisa na ponta dos pés. Certamente havia momentos em que esse ralenti, como se diz em cinema, era posto de lado e o craque tornava-se mais agudo, certamente havia, durante os 90 minutos de uma partida, os momentos que lhe exigiam isso. Mas eu não lembro absolutamente desses momentos. Seja como for, Ademir da Guia não era absolutamente praticante de um futebol lento: a rapidez estava nas soluções que encontrava, no passe preciso e certeiro no tempo certo. Acho que foi Gerson que cunhou a frase “no futebol quem corre é a bola, não o jogador”. Se não foi, tem tudo a ver. Gerson praticava um futebol “parado”, como Ademir era “lento” (as aspas explicam tudo).
Não vi ainda o filme que foi feito sobe Ademir, Um craque chamado Divino, parece que em 2006. De vez em quando vejo alguns retalhes de lances do Palmeiras em flashes antigos na TV. Às vezes aparece esse Ademir mais incisivo, obrigado pelas circunstâncias do jogo a um movimento mais súbito, mais deselegante. Minha memória não gosta muito disso. E não tem maior mistério, pois a memória do que foi efetivamente visto é parte pequena do que pensamos nos lembrar do que vimos. Ao que foi visto se juntam os outros elementos da espessura do tempo ao fabricar a memória. Na verdade, no meu caso, a memória vem sempre impregnada pela poesia, por uma espécie de vivência do literário. E aí lembro também de maneira muito forte a funda impressão causada em mim pelo poema de João Cabral de Melo Neto, “Ademir da Guia”, que li quando saiu Museu de tudo, em 1975, e que é na minha avaliação o melhor poema sobre futebol escrito no Brasil (o fato de serem poucos não lhe tira em nada o mérito). Ademir ainda se encontrava em atividade quando o livro foi publicado, e andava em baixa em certos círculos (burros) do futebol, uma vez que Zagalo o barrara na Copa de 1974 – o pretexto: “Ademir era lento!” –, quer dizer, já era seu momento crepuscular. Meu afã de acompanhar futebol também se encontrava a essa altura em declínio. Mas meu interesse pela poesia era crescente. Daí que penso que as imagens da câmera lenta de Ademir se fixaram reforçados por esse poema extraordinário, que explica a lentidão por um ângulo insuspeito, visível apenas a um grande poeta, executado apenas por um craque de exceção. Posto-o aqui:
Ademir da Guia
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmera lenta,
do homem dentro do pesadelo.
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.
Assim, posso dizer que é das borradas imagens da TV em preto&branco e do preto das palavras no branco do papel de João Cabral que se nutre sobretudo minha imagem do craque Ademir da Guia. Ao redor, o mundo dos amantes do futebol, dos que sabem vê-lo com os olhos de quem busca o prazer que o bom futebol proporciona, sempre confirmou as imagens fugidias do craque que tanto marcou minha infância e adolescência.
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"os demônios soltos e o anjo em suspensão"
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Quando resolvi que eu iria escrever este texto, procurei lembrar, para efeito de contraposição, de outros grandes jogadores de meio-campo da época. E tomei um susto ao ver que quase ia me esquecendo de Rivelino, ídolo corintiano, herói tricolor e também herói do tri no México em 70. Impressionante craque também, no entanto não deixou nenhuma imagem maior na minha memória – ou melhor, até deixou, mas de sua irascibilidade dentro do campo. Lembrei que José Miguel Wisnik fazia um interessante contraponto entre os dois craques em seu maravilhoso Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São palavras precisas e preciosas:
“Rivelino e Ademir eram algo assim como o ímpeto e o continuum, a combustão e o banho turco, os demônios soltos e o anjo em suspensão. Tudo isso sem um termo comum à vista, a não ser o fato de ocuparem, mais uma vez, a mesma posição, e de serem craques. (...) Mas Ademir da Guia é uma carta cifrada, não decodificada pelo futebol brasileiro do seu tempo, como se ele concentrasse em si, sozinho, numa espécie de “fundo de garantia”, a capacidade que o futebol brasileiro em geral ia perdendo no lapso indefinido daquele período: a capacidade coletiva de reter a bola, de imprimir o ritmo ao jogo, comprimindo-o e distendendo-o – como faz João Gilberto com o canto.”
No que toca exclusivamente a Ademir – sem falar que o paralelo com Rivelino é um espanto de perfeição – a capacidade destacada de comprimir e estender o jogo me leva a pensar em Paulo Henrique Ganso. A figura futebolística de Ademir talvez não encontre paralelo em sua solitária genialidade. Ou talvez seja apenas a minha memória que não o admita. Mas confesso que ao longo de todos esses anos às vezes me alegrava ao me deparar com algum jogador que pudesse reencarnar as maiores qualidade do craque palmeirense. Cheguei a pensar vê-las em Sócrates, mas na filigrana dos detalhes eles se diferenciavam muito. Depois no irmão deste, Raí, mas este foi um projeto de esplendor muito rápido que logo se malogrou. Pensei ver algo ainda em Giovane, do Santos, talvez mesmo o mais próximo, mas... agora penso no genial Ganso. Se me parece claro, muito claro que Ganso veio para entrar de vez na galeria dos grandes gênios do futebol no meio-campo, é sobretudo pela capacidade de estender e comprimir, diástole e sístole. Mas Ganso é um outro capítulo, que começa a ser escrito, o paralelo fica como incógnita. Ademir da Guia brilha sozinho e glorioso na memória de quem gosta de futebol.