sábado, 2 de abril de 2011

CONSERTANDO LAMBANÇAS NO BORDEL DE DONA MARGÔ

François Villon
           

              Já fui acusado aqui e alhures, e isso por conta também do meu livro e sobrenome, de ser um rascunhista inveterado.  Digamos mesmo que com razão, mas convenhamos: dessa vez exagerei.  Foi na postagem do Villon em 18 de março, quando teci algumas considerações de caráter formal a respeito das três traduções postadas. Escrevi um monte de bobagens, toquei-me das piores a tempo, e quero agora consertar um pouco. 
            Engraçado foi como eu me toquei das bobagens escritas, assim que reli a postagem.  Penso que o que deflagrou tudo foi o verso primeiro da última estrofe da tradução de Sebastião Uchoa Leite para o poema de Villon, quando me deparei com um verso de 11 sílabas, rompendo a sequência de decassílabos.  Levantei a hipótese de erro na revisão e tal, pedi auxílio a leitores mais expertos com comentários que me ajudassem (aliás, até agora nada). Pior foi que agora examinando com mais atenção os aspectos meramente formais tanto do texto de Villon quanto às três traduções vi que na mesma tradução, a de Sebastião, que optou pelo decassílabo, surge inadvertidamente já na primeira estrofe um verso com 9 sílabas – que não vou indicar qual seja, quem quiser que se entregue ao exercício.
            Mas eu cometi outros erros naqueles meus comentários, possivelmente pela própria empolgação de montar uma postagem que me parece tão rica aos interessados por poesia.  Tento consertar um tanto delas aqui, fazendo apenas a ressalva que me ative tão somente a questões de forma poética.  Vou a elas.
            Bem, apesar de não ter maior familiaridade (aliás, nem menor) com o francês do século XV, posso dizer com segurança que Villon se utiliza do decassílabo, ora cesurado na sexta sílaba, ora lançando mão do chamado “verso provençal”, com tempos fortes na 4ª. e 7ª. sílabas. Dos tradutores, Péricles Eugênio optou pelo alexandrino, na maioria de corte clássico, com cesura na 6ª., e alguns de tipo romântico, hugoano (acentos em 4 e em 8), além de uma variante deste na terceira estrofe, “Monta em mim, para que não perca o seu favor”, acentuado na 3ª.    Décio Pignatari opta pelo decassílabo, mas sua opção aqui e ali se desgarra: como ler como decassílabos, por exemplo,  “Um pichel de vinho e me viro na moita, não/Sem dar água, queijo, fruta e pão” (1ª. estrofe, versos 6 e 7), ou ainda o 3º. verso da 3ª. estrofe,  “De onça.  Rindo, me acerta um squiafo no”. Há ainda alguns outros exemplos.  São problemáticos. Ótimo, para quem gosta desse tipo de problema. Uchoa Leite, que também optou pelo decassílabo, tem aquelas duas possíveis exceções indicadas acima.  Antes de prosseguir, quero deixar claro que, ao chamar tais fatos de “problemáticos”,  não os estou marcando negativamente.  As liberdades tomadas com relação à métrica são extensivas muitas vezes às soluções encontradas no caso das rimas, de bastante liberdade também em Décio, e se fossem aqui aprofundadas, em termos gerais de sonoridade, por exemplo (como “rimas internas” e outras),  poderíamos ver  melhor que correspondem a concepções poéticas que envolvem a poética da tradução.  Mas meu intuito aqui não é chegar a tanto. Nem quero esquadrinhar e perseguir teoricamente o problema.  Não acho que seja este o espaço apropriado.  É mais despertar o possível interesse do leitor interessado.  Nem mesmo sou um “especialista’ em poética de tradução.  Como já disse, é sobretudo pra consertar as ligeiras bobagens que escrevi anteriormente.

Péricles Eugênio da Silva Ramos

            Uma última observação sobre metro e ritmo.  Se no texto de Villon praticamente se divide a opção pelo decassílabo provençal (acentos em 4-7) e o que chamamos heróico (acento em -6), curioso que tanto Décio quanto Uchoa Leite tenham pouco lançado mão daquele primeiro tipo.  Ou muito me engano (atenção, caro leitor!) ou temos em Décio somente na 2ª. estrofe “Ju-ra-por-NOS-so-Se-NHOR- Je-sus-Cris-[to]/Que-não-da-RÁ-.Pas-so a-MÃO-num-por-re-[te]”; em Uchoa Leite, “e- vol-te- SEM-pre- se em-BAI-xo-lhe aper-[ta]”.  Essa pouca opção pelo provençal se “compensa” por assim dizer com a farta opção, tanto num quanto noutro, pelo verso com o acento sub-tônico na 4ª. sílaba, além dos chamados decassílabos sáficos (acentuados em 4 e 8).  Quero crer que ao se marcar tão efetiva e numerosamente a 4ª. sílaba, Uchoa e Décio imprimiram maior movimentação de cena ao poema – mais ainda talvez em Décio – uma vez que o decassílabo fica com uma maior divisão interna, dando-lhe maior mobilidade.  Uma possibilidade de se reforçar essa hipótese se dá quando comparamos com a tradução em alexandrinos de Péricles Eugênio, na qual a opção pelo modelo clássico numericamente superior lhe impinge uma correção um tanto estática.  Essa opção vai de par com a proposta de um tradutor e também poeta em boa medida comprometido com a Geração de 45, grupo de poetas, por assim dizer, amigos do decoro.  Nesse sentido ainda vale notar o título eufemístico que Péricles dá à sua tradução.  Em lugar da “Gorda Margô”, temos um respeitoso “Margot, a encorpada”. Não quero me estender quanto a maiores juízos de valor, mas convenhamos... não é uma boa solução.
            Quanto às rimas em final de verso... bom, vamos lá.
Como é frequente nas baladas, e como é muito comum em Villon,  poeta exuberante em termos de exploração de jogos formais, em toda a extensão do poema temos as sonoridades et – ot – i(st) – at  , ao final dos versos.  Nas primeiras três estrofes (de dez versos, ou décimas) o esquema de distribuição de rimas é A-B-A-B-B-C-C-D-C-D, bem próprio da balada de tipo erudito, correspondendo às sonoridades: /et/- /ot/-/et/-/ot/-/ot/-/uit/- /uit/-/at/-/uit/-/at/.  Péricles Eugênio segue fielmente: as sonoridades de rima que segue são ado – ão – ôr – em em toda a extensão do poema, mas com distribuição um pouco diferente em relação à distribuição no restante do poema, com idêntica distribuição nas décimas: ado/-/ão/-/ado/-/ão/-/ão/-/ôr/-/ôr/-/ém/-/ôr/-/ém/, configurando igualmente  A-B-A-B-B-C-C-D-C-D.   
A diferença entre Villon e a tradução de Péricles está nos sete versos da estrofe de encerramento: em Villon a distribuição A-A-A-B-A-A-B corresponde às sonoridades em /it/  e  /at/ , que nas estrofes anteriores corresponderiam a C e D; em Péricles, a mesma distribuição de Villon (A-A-A-B-A-A-B) se faz com as rimas em /ão/ e /ém/, correspondentes a B (aqui a diferença) e D.
Décio Pignatari

Já em Décio Pignatari, distribuição de rimas na primeira estrofe segue o esquema de Villon; deve-se incluir aqui mesmo a rima “incompleta” (na verdade apenas toante, e ainda um caso curioso de uso da consoante de apoio) “Figlii/domicílio”; mas o tradutor vai tomando suas liberdades a partir da segunda estrofe em relação não apenas à distribuição mas à sonoridade rímica do original. Isto se dá pela adoção de rimas toantes (cuja sonoridade coincide apenas na vogal tônica) em “amargo/quarto/trapos” e novamente a consoante em “encargo”; o mesmo se dá quando retorna a palavra “domicílio” que fecha as estrofes – e que no esquema tradicional da balada corresponde ao refrão – que também de forma toante rima com “Cristo/Anticristo”, estas rimas consoantes entre si.  Assim, se considerarmos por exemplo a sonoridade  “amargo/quarto” como rimas toantes, o que é perfeitamente legítimo embora um pouco fora do padrão como se encara a rima em língua portuguesa, e designar a sonoridade de “amargo” como A na distribuição e a de “quarto” como A’, temos a seguinte distribuição na segunda estrofe da tradução de Décio: A-A’-B-A’-A-C-C-D-D-C; isto é, ainda que se considere A’ como uma variante de A o esquema de distribuição das rimas nessa estrofe, diferentemente da primeira, é diferente do original de Villon. É só atentar para a 2ª. metade da estrofe, versos 6 a 10.  Em Villon (e Péricles): C-C-D-C-D. Já em Décio: C-C-D-D-C.  A se observar ainda que em Décio o verso 3 fica solto em termos de rima, uma vez que “morta” não rima com nenhum outro verso, embora suas vogais apareçam numa sugestiva posição invertida em relação às demais palavras, por exemplo: mORTA, quARTO. No exemplo, as  mesmas vogais em posição invertida se apóiam sobre RT; e sem desenvolver aqui que embora não rime em fim de verso “morta” rima internamente com “suporto”, no mesmo verso. Mas adiante falo um pouco disso, após comentar a tradução de Uchoa Leite também. Na 3ª. estrofe, as liberdades no trato da forma que Décio toma em relação a Villon tornam-se ainda mais evidentes.  Dispenso-me aqui de fazer uma descrição tão minuciosa como a que fiz em relação à estrofe anterior: o leitor saberá enxergar o que chamo de liberdades no tocante à rima.
Finalmente, em Sebastião Uchoa Leite as liberdades tomadas quanto à rima ficam entre Péricles e Décio.  Explicando: em nenhum momento nas décimas ele altera a distribuição (que já vimos ser A-B-A-B-B-C-C-D-C-D), nem usa qualquer verso solto, como Décio faz.  Mesmo as raras ocorrências de rimas toantes são muito discretas: “perto/oferta” e “ventre/dentro”.  Mas se Péricles Eugênio mantém a repetição de sonoridades, como Villon, Uchoa Leite não o faz.  Na estrofe de encerramento mesmo Leite faz como Décio,  alterando o esquema A-A-A-B-A-A-B para A-A-A-B-C-C-B.  E se ele não faz corresponder, como Péricles também não, com a mesma sonoridade usada nas décimas, o fato a seu favor – assim como em Décio – é que tais possíveis “desvios”  em relação ao modelo original fazem com que, como já ocorrera igualmente na tradução de Décio, a sonoridade interior a cada verso seja muito mais rica do que em Péricles, explorando à farta e com muita inventividade o que também em Villon é extremamente rico: as ásperas e explosivas sonoridades consonantais.  Mas isso também fica para o leitor.  Gostaria apenas de lembrar, como na postagem anterior, que Uchoa Leite foi o único que manteve o acróstico de que Villon se valeu como uma assinatura, no encerramento.  As primeiras letras da última estrofe em Villon formam a palavra ‘VILLONE”.  Uchoa Leite traduziu ‘VILLONA”.
Sebastião Uchoa Leite

Bem, chega.  Haveria muito ainda a desenvolver.  Vamos ver se leitores ajudam a enriquecer a discussão, mas sem tomar tanto de uma postagem, que afinal deve ter mantido pouca gente interessada até aqui.  Mas eu devia isso, para apagar as observações apressadas da primeira postagem, acima indicada.  Afinal, se Dona Margô vive num bordel nem por isso eu tinha o direito de chegar fazendo zona, não é mesmo? Perdão, Margô, perdão, Villon, perdão, poetas-tradutores, perdão, leitores.

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