Marcelo Diniz me enviou, como habitual e felizmente faz, um soneto recém saído de sua meticulosa oficina. É sempre um prazer, um deslumbre. Dessa vez não foi diferente. Um soneto dedicado a Fred Martins, outro querido amigo, parceiro de Marcelo em algumas das canções mais lindas que se possa ouvir. Não apenas por que me dá um enorme orgulho e uma enorme alegria ser amigo de artistas desse calibre, mas sobretudo porque o soneto em questão tece uma soberba fenomenologia do que se ouve numa canção e do que vai muito além do que o ato de ouvir é capaz – quando ouvimos uma canção que vamos amar para sempre: o soneto diz com espantosa precisão poética o que se enraíza em nós depois que o ato da audição acaba sem que a canção acabe jamais.
Por isso e porque me acendeu uma saudade danada desses amigos que há um bom tempo não vejo, resolvi compartilhar nesta página não apenas o soneto mas também uma canção de Fred, de seu último CD, lançado na Galícia onde ele mora. O CD se chama Acrobata e é feito em parceria com a cantora galega Ugia Pedreira, que divide com ele também o canto aqui.
SONETO DE MARCELO DINIZ
A Fred Martins
Dar a justa palavra à melodia,
vesti-la com o talhe que a explicite,
dar ponderada letra ao que lhe dite
o sinuoso deslize que adagia;
dar clave a cada pausa que enuncia
e em cada ponto e vírgula levite,
volátil, a vogal que lhe suscite
o dissoluto aroma que extravia;
e dar-lhe amor, além de dar-lhe rima,
para que reverbere, além do ouvido,
o ardor que a todo coração anima;
dar à canção o verbo já contido,
e decliná-lo claro até que exprima
a furta-cor do som e do sentido.
ÁGUAS PASSADAS
Fred Martins – Marcelo Diniz
Cantam Fred Martins e Ugia Pedreira
Estava duro e só
que só a solidão
de pedra na calçada
estava só deixando
tudo assim passar
que nem água parada
estava nesse nó
mais cego nesse não
de mim comigo nada
além dessa ilusão
de ser ninguém
assim que nem
alma penada
desde que vi você
eu vi o amor mover
de forma inesperada
a pedra na surpresa
tão feliz na correnteza
a ser levada
se sou ainda cego
já não trago nó
a alma desatada
foi só te ver que a alma
no moinho já desfez
águas passadas
do amor já nem lembrava
quando você chegou
nada sobrou da mágoa
pedra que a água levou.
Um adendo pós-postagem: Minha conexão estava tão ruim quando da postagem, tive que tentar tantas vezes, que duas observações que acrescentei num segundo rascunho acabaram ficando de fora. O leitor, por favor, considere-as:
1. Ao final do primeiro parágrafo: (...) o soneto diz com espantosa precisão poética o que se enraíza em nós depois que o ato da audição acaba sem que a canção acabe jamais. E o que se enraíza é – espanto! – ‘a furta-cor do som e do sentido’ .
2. A frase final do segundo parágrafo: “A canção ‘Águas passadas’ é o exemplo perfeito do que Marcelo diz em seu soneto.”