sexta-feira, 30 de setembro de 2011

BALADA DAS MENINAS DE BICICLETA: VINÍCIUS DE MORAES

Meninas de bicicleta
Que fagueiras pedalais
Quero ser vosso poeta!
Ó transitórias estátuas
Esfuziantes de azul
Louras com peles mulatas
Princesas da zona sul:
As vossas jovens figuras
Retesadas nos selins
Me prendem, com serem puras
Em redondilhas afins.
Que lindas são vossas quilhas
Quando as praias abordais!
E as nervosas panturrilhas
Na rotação dos pedais:
Que douradas maravilhas!
Bicicletai, meninada
Aos ventos do Arpoador
Solta a flâmula agitada
Das cabeleiras em flor
Uma correndo à gandaia
Outra com jeito de séria
Mostrando as pernas sem saia
Feitas da mesma matéria.
Permanecei! vós que sois
O que o mundo não tem mais
Juventude de maiô
Sobre máquinas da paz
Enxames de namoradas
Ao sol de Copacabana
Centauresas transpiradas
Que o leque do mar abana!
A vós o canto que inflama
Os meus trint’anos, meninas
Velozes massas em chamas
Explodindo em vitaminas.
Bem haja a vossa saúde
À humanidade inquieta
Vós cuja ardente virtude
Preservais muito amiúde
Com um selim de bicicleta
Vós que levais tantas raças
Nos corpos firmes e crus:
Meninas, soltai as alças
Bicicletai seios nus!
No vosso rastro persiste
O mesmo eterno poeta
Um poeta – essa coisa triste
Escravizada à beleza
Que em vosso rastro persiste
Levando a sua tristeza
No quadro da bicicleta.

In: Poesia completa e prosa, 1987.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

VERSINHOS DE CIRCUNSTÂNCIA PARA CIRCUNSTÂNCIAS TRÁGICAS A SEREM ESCLARECIDAS ANTES DE ESQUECIDAS

Governo do Estado festeja liberação de verba de 31 milhões para revitalizar os bondes de Santa Teresa” (dos jornais)
“O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas”
                (Drummond)


De Santa Teresa os bondes
Blem-blem-blem-blém
Vão ser revitalizados
Blem-blem-blem-blém
Vai ter fogo de artifício
Discurso palanque armado
Festa, foto e nhem nhem nhém
E uma grana generosa
Vai molhar a mão de gente
Gente que a gente sabe bem
Quem é quem
quem quem quem quem
Tudo vai entrar nos trilhos
Blem-blem-blem-blém
(serão sinos de Belém?
Isso não – se  sabe bem:
Desde os tempos de Bandeira
Que eles batem bem-bem-bem)
Hoje batem os bondinhos
Que o Estado não mantém
Que a manutenção diária
Dos bondinhos blem-blem-blém
Gasta só grana miúda
Merreca troco vintém
Não dá pra fazer festança
Que não sobra pra ninguém
Já pro povo das ladeiras
Sobra reclamar com quem?
Já chorou o motorneiro
Difamado homem de bem
Já acendeu vela pra ele
E por quem mais se foi também
E a cidade lá embaixo
No seu dia-a-dia a cem
Já se esquece do esculacho
Já se esquece até do  Julio
Julio aquele, Julio quem?
Mais um pouco tá jurando
Que foi lá no Pão de Açúcar
Que um bondinho despencou
Mas também não lembra bem
Que o bondinho do Brasil
Blem-blem-blem-blém
Só vive descarrilado
Blem-blem-blem-blém
Nas ladeiras da amnésia
Crash-plunct-bang-trem
E mesmo estes pobres versos
Tá tudo de pé-quebrado
Sem ser  culpa de ninguém
Só aqui deste pedestre
Poetinha joão-ninguém...



quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DRUMMOND E AS BUGANVÍLIAS

            Não porque foi lido um trecho de um poema de Drummond na cerimônia do 11 de setembro (não vi mas me contaram, e  parece que foi “kitsch” como quase sempre acontece quando a poesia é chamada para essas coisas), mas porque naquele  mesmo dia, antes da solenidade, eu tinha postado uns trechos da prosa dele e me deu uma vontade de postar durante alguns dias vários outros desse escritor que faz parte da minha ração diária de leitura, posto agora um trechinho de crônica.
            E isso muito porque também,  entrando a primavera, aqui no brejo a buganvília altaneira dá o ar de sua graça.  Claro que não é tão altaneira como as da crônica, que ultrapassam o telhado da velha casa de pé direito muito alto, ameaçando os alicerces com suas raízes, como está na íntegra do texto.  Mas até para fazer um contraponto divertido com  Drummond, posto uma foto que mostra que ela também cobre o telhado da casa... dos cachorros.  É o começo da primavera, logo logo tudo ali será um enorme vermelho buganvílico. E também porque o parágrafo que fecha a crônica é um primor na anotação dos saudáveis hábitos da hospitalidade.

“Nossa casa é antiga, embora não secular – explicava-me aquela senhora – e o senhor não sabe como essas construções antigas têm pé direito alto, um despropósito.  Nossos dois andares enfrentam bem uns três dos edifícios vizinhos.  Isso lhe dará ideia da altura das minhas buganvílias, pois as raízes delas se misturam com os alicerces, e temos praticamente dois telhados: o comum, e esse lençol rubro de flores, quando vem pintando a primavera. 
            (...)
            Há dias foi engraçado, porque convidamos um casal para almoçar, e já na horinha me lembrei que não tínhamos flores em casa.  Fui comprá-las correndo, mas a greve da Leopoldina acabara com elas, ou era a própria greve das flores, que pediam aumento de orvalho; não havia uma triste corola à venda.  E não era dia de feira no bairro, de sorte que não se podia recorrer a flores de calçada.  Voltei de alma ferida, porque se pode trabalhar sem flor, dormir sem flor, mas comer sem flor é desagradável, tira o sal.  Estava imersa em vil desânimo, quando me pousou no nariz, trazida pelo vento, a florzinha de buganvília, cujos ramos estão explodindo de vermelho, entre pinceladas verdes.  Voei ao quarto de depósito, saí de lá brandindo a escada de três metros, e icei-a na pérgula.  E com risco de romper o esqueleto, pois escada de casa também é velha e desconjuntada, aos olhos divertidos ou indignados da vizinhança, fui ceifando com tesoura aquele mar de florinhas sanguíneas.  Enchi duas cestas enormes, e nunca minha casa ficou tão bonita como enfeitada assim à última hora, sem gastar um cruzeiro; o casal ficou encantado, mas que beleza de flor, então eu expliquei que buganvília não tem propriamente flores, tem brácteas, que são folhas iguais às outras, mas valorizadas pelo vermelho.  Deu tudo certo, e eu senti que os imensos pés de buganvília me agradeciam e pagavam dessa maneira a decisão de poupar-lhes a vida até a consumação dos séculos – ou da nossa velha casa, que eles vão destruindo poeticamente.”
“Buganvílias”.  In: Fala, amendoeira.

domingo, 18 de setembro de 2011

INÉDITOS DE MARCELO DINIZ E FRED MARTINS

         Marcelo Diniz me enviou, como habitual e felizmente faz, um soneto recém saído de sua meticulosa oficina.  É sempre um prazer, um deslumbre.  Dessa vez não foi diferente. Um soneto dedicado a Fred Martins, outro querido amigo, parceiro de Marcelo em algumas das canções mais lindas que se possa ouvir.  Não apenas por que me dá um enorme orgulho e uma enorme alegria ser amigo de artistas desse calibre, mas sobretudo porque o soneto em questão tece uma soberba fenomenologia do que se ouve numa canção e do que vai muito além do que o ato de ouvir é capaz – quando ouvimos uma canção que vamos amar para sempre: o soneto diz com espantosa precisão poética o que se enraíza  em nós depois que o ato da audição acaba sem que a canção acabe jamais.
            Por isso e porque me acendeu uma saudade danada desses amigos que há um bom tempo não vejo, resolvi compartilhar nesta página não apenas o soneto mas também  uma canção de Fred, de seu último CD, lançado na Galícia onde ele mora.  O CD se chama Acrobata e é feito em parceria com a cantora galega Ugia Pedreira, que divide com ele também o canto aqui.

SONETO DE MARCELO DINIZ

A Fred Martins

Dar a justa palavra à melodia,
vesti-la com o talhe que a explicite,
dar ponderada letra ao que lhe dite
o sinuoso deslize que adagia;

dar clave a cada pausa que enuncia
e em cada ponto e vírgula levite,
volátil, a vogal que lhe suscite
o dissoluto aroma que extravia;

e dar-lhe amor, além de dar-lhe rima,
para que reverbere, além do ouvido,
o ardor que a todo coração anima;

dar à canção o verbo já contido,
e decliná-lo claro até que exprima
a furta-cor do som e do sentido.



ÁGUAS PASSADAS
Fred Martins – Marcelo Diniz
Cantam Fred Martins e Ugia Pedreira

Estava duro e só
que só a solidão
de pedra na calçada
estava só deixando
tudo assim passar
que nem água parada
estava nesse nó
mais cego nesse não
de mim comigo nada
além dessa ilusão
de ser ninguém
assim que nem
alma penada
desde que vi você
eu vi o amor mover
de forma inesperada
a pedra na surpresa
tão feliz na correnteza
a ser levada
se sou ainda cego
já não trago nó
a alma desatada
foi só te ver que a alma
no moinho já desfez
águas passadas

do amor já nem lembrava
quando você chegou
nada sobrou da mágoa
pedra que a água levou.


Um adendo pós-postagem:  Minha conexão estava tão ruim quando da postagem, tive que tentar tantas vezes,  que duas observações que acrescentei num segundo rascunho acabaram ficando de fora.  O leitor, por favor, considere-as:
1.    Ao final do primeiro parágrafo: (...)  o soneto diz com espantosa precisão poética o que se enraíza  em nós depois que o ato da audição acaba sem que a canção acabe jamais. E o que se enraíza é – espanto! – ‘a furta-cor do som e do sentido’ .
2.    A frase final do segundo parágrafo: “A canção ‘Águas passadas’ é o exemplo perfeito do que Marcelo diz em seu soneto.”

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

FREDERICO BARBOSA

MEMÓRIA SE

A mais íntima
memória se
desdobra cega
e surda:

A presença tátil
de suas dobras
incrustadas
nas marcas linhas
das minhas mãos.

O gosto redondo
do seu corpo
na retina língua
do meu gesto
ou rosto.

E seu perfume
rio riso colorido
escorrendo
sobre o corpo
sopro e calor.

Memória se
deseja. O resto,
se ouça ou veja.


Frederico Barbosa.  Cantar de amor entre os escombros, Landy Editora, 2002.



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

POETAS REAGEM CONTRA A BANALIZAÇÃO

          Os poetas mandaram ver!  Frederico Barbosa lançou pelo Facebook seu Manifesto Anti-M.E.R.D.A. (Mercado Editorial Reprodutor de Asneiras)https://www.facebook.com/messages/?action=read&tid=ZvsIxrLKCUUuQh51YzWlpQ#!/notes/frederico-barbosa/manifesto-anti-merda-mercado-editorial-reprodutor-de-asneiras/232999056752440 que  em seguida  Claudio Willer repercutiu e reforçou, pondo também a boca no trombone no texto “Da flipização à bienalização” http://claudiowiller.wordpress.com/2011/09/13/da-flipizacao-a-bienalizacao/.

        
         Concordo com o diagnóstico da situação descrita em ambos os textos, por isso dou curso a eles aqui.      Não se trata, claro, de ser contra a FLIP ou a Bienal do Livro ou outros eventos do gênero.  A questão é que eventos desse tipo acabam reféns da mídia, no pior sentido da expressão: numa mídia cada dia mais destituída de senso crítico, num jornalismo “cultural” indigente que apenas faz juntar os releases das editoras a tiradinhas de falsamente insolente humor juvenil, nessa falsa disputa entre mariscos impróprios para consumo,  o mar,  não do lucro mas da glorificação do lucro pelo lucro, faz a festa e leva a parte do leão.  Livros como sabonetes, entrevistas como kits de maquiagem, escritores  como “artistas da TV”, críticos vistos como se fossem  laranjas, suspeitos de estar a serviço de alguma indesejável inteligência.
         O insuspeito José Miguel Wisnik chamou a esse processo num texto recente de “Jô-soarização da cultura” (pode ser lido aqui: http://sergyovitro.blogspot.com/2011/07/antonio-e-joao-jose-miguel-wisnik.html).

          Remeto o leitor a seu texto, mas acho bom destacar nele o seguinte: “O ponto a que me refiro é a tentação de opor automaticamente performances capazes de entreter o público a performances tidas como excessivamente intelectualistas e acadêmicas. Em primeiro lugar, esse é um falso problema quando supõe que a atenção do público seja necessariamente oposta à reflexão. Não é isso que se vê de uma maneira geral. Em segundo lugar, a diferença entre entretenimento e crítica tem que ser afirmada contra a tendência, também existente, à conversão do mundo num talk-show generalizado — no limite extremo, numa espécie de compulsória jô-soarização da cultura.”


           Quando digo que Wisnik é insuspeito é justo porque em primeiro lugar se trata de um intelectual (palavra que soa estranhamente anacrônica hoje, não?) que circula com bastante desenvoltura por esses espaços (midiático e acadêmico)  que a estupidificação em curso timbra em ver como excludentes no mesmo  movimento em que timbra por fazer crer que não o sejam (desde que, “ao fim do processo”, a palma da vitória fique com o midiático).  Ou seja: Wisnik não teme o midiático.  Mas isso é só meia verdade: Wisnik não o  teme porque sua substância vem do “outro lado”, seu pensamento profundo e percuciente se alimentou e se alimenta do melhor leite da alta cultura.  Ao lado de Antonio Cicero, outro insuspeito (que aliás, não fez carreira no meio acadêmico), Wisnik tem produzido ao longo dos últimos anos muito da melhor reflexão sobre a cultura brasileira e sobre o patamar mundial dessas discussões  vistas desde o  Brasil.  O que vale também para Cícero, o excelente letrista de Lulu Santos e de Marina Lima e autor do que é para o meu gosto pessoal (“não precisa ninguém me acompanhar”)  o melhor livro de poemas da década até aqui, o excepcional A cidade e os livros, sem falar  das amplas e profundas reflexões de Finalidades sem fim.   E citei entre aspas e parêntesis ali em cima o Caetano Veloso de “Jeito de corpo” não à toa.  Matriz brasileira da melhor obra e reflexão sobre o embate alta cultura/mercado/mídia, o insuspeito sempre suspeito Caetano leva-nos muitas vezes à exasperação com sua perturbadora capacidade  de saber distinguir o joio do trigo e optar consciente e estrategicamente  muitas vezes pelo “lixo”  do joio.
                Queria só ajuntar essas observaçõezinhas mesmo descosidas em reforço ao estágio atual da discussão tal como ela se coloca nesses textos.  Queria apenas que os que aqui me leem, especialmente meus alunos e ex-alunos (ai, esse ofício de professor...) parassem para refletir um pouco sobre todo esse processo perverso que busca converter o mundo da inteligência num vasto painel de tolas celebridades, em que os livros não são mais discutidos pelo que eles trazem (se é que em algum momento no Brasil o foram), mas pelo que eles vendem, em que as referências vão sendo perdidas e vão se dissipando e se diluindo em contato com a maré tsunâmica da indiferença e da indiferenciação conceitual que nos varre.
                Está na hora, por fim, de dar mais atenção aos que antigamente Umberto Eco chamava de “apocalípticos”, opondo-os aos “integrados” (por mais que essas categorias tenham sido elas mesmas justamente problematizadas).  Um pouco de má-vontade (pra começar) contra a alarmante banalização pode ser reforçada nesse momento pela leitura estimulante – mesmo pelas discordâncias e incompreensões que venham a suscitar – dos que há muito não apenas esbravejam, mas estimulam as discordâncias (inclusive quanto à própria matéria literária e teórica),  de Alcir Pécora a Flora Süssekind, de Costa Lima a Silviano Santiago, para ficar apenas na prata da casa.   Com o recurso hoje muito franqueado a se fazer ouvir e ler, pode ser que o intelectual – no sentido que essa palavra tinha no século XIX, de intervenção na vida pública – possa redefinir o seu papel, para além da quase total invisibilidade atual que o acomete.


domingo, 11 de setembro de 2011

DRUMMOND: ALGUMAS “DRÁGEAS DE SUPOSTA SABEDORIA”




. Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo.  E sempre se pode deixar.
. Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo.  Não arrombará nada.  Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.
. Leia muito e esqueça o mais que puder.
. Acha que sua infância foi maravilhosa e merece ser lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.
. Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba.  Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.
. O porteiro do seu edifício provavelmente  ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional.  Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.  
. Faça fichas de leitura.  As papelarias apreciam esse hábito. As fichas absorverão o seu excesso de vitalidade e, não usadas, são inofensivas.
. Se sentir propensão para o gang literário, instale-se no seio de sua geração e ataque.  Não há polícia para esse gênero de atividade.  O castigo são os companheiros e depois o tédio.
. Evite disputar prêmios literários.  O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por juízes que o seu senso crítico jamais premiaria.
. Antes de reproduzir na orelha de seu livro a opinião do confrade, pense, primeiro, que ele não autorizou a divulgação; segundo, que a opinião pode ser mera cortesia; terceiro, que você não admira tanto assim o seu confrade.
. Opinião duradoura é a que se mantém válida por três meses.  Não exija maior coerência dos outros nem se sinta obrigado intelectualmente a tanto.  E proceda à revisão periódica de suas admirações.
. Deixe-se fotografar à vontade, sem chamar os fotógrafos; não recuse autógrafos,  mas não se mortifique se não os pedirem.  Homero não deixou cartas nem retratos; Baudelaire deixou uns e outros.  O essencial se passa com outros papéis.

                        “A um jovem”.  In: A bolsa & a vida.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

AH, UM SONETO... DE DAVID MOURÃO-FERREIRA

TEIA 

Se da baba o inseto faz a teia,
se com choro porém não sei prender-te,
se do céu, que era cinza, direi verde,
e da terra e das lágrimas, areia.

E da forma direi que foi ideia,
para que à noite o corpo não desperte.
Do perdido direi que não se perde
se ao menos nestes versos se encadeia.

Do cabelo, se louro, direi preto;
do amor que sofri direi soneto,
ante a luz tão corpórea que o invade...

Nas redes da ficção ficarás presa
e acordarás, mais tarde, na surpresa
de ser outra por toda a eternidade.

De Infinito pessoal, 1962.