quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DRUMMOND E AS BUGANVÍLIAS

            Não porque foi lido um trecho de um poema de Drummond na cerimônia do 11 de setembro (não vi mas me contaram, e  parece que foi “kitsch” como quase sempre acontece quando a poesia é chamada para essas coisas), mas porque naquele  mesmo dia, antes da solenidade, eu tinha postado uns trechos da prosa dele e me deu uma vontade de postar durante alguns dias vários outros desse escritor que faz parte da minha ração diária de leitura, posto agora um trechinho de crônica.
            E isso muito porque também,  entrando a primavera, aqui no brejo a buganvília altaneira dá o ar de sua graça.  Claro que não é tão altaneira como as da crônica, que ultrapassam o telhado da velha casa de pé direito muito alto, ameaçando os alicerces com suas raízes, como está na íntegra do texto.  Mas até para fazer um contraponto divertido com  Drummond, posto uma foto que mostra que ela também cobre o telhado da casa... dos cachorros.  É o começo da primavera, logo logo tudo ali será um enorme vermelho buganvílico. E também porque o parágrafo que fecha a crônica é um primor na anotação dos saudáveis hábitos da hospitalidade.

“Nossa casa é antiga, embora não secular – explicava-me aquela senhora – e o senhor não sabe como essas construções antigas têm pé direito alto, um despropósito.  Nossos dois andares enfrentam bem uns três dos edifícios vizinhos.  Isso lhe dará ideia da altura das minhas buganvílias, pois as raízes delas se misturam com os alicerces, e temos praticamente dois telhados: o comum, e esse lençol rubro de flores, quando vem pintando a primavera. 
            (...)
            Há dias foi engraçado, porque convidamos um casal para almoçar, e já na horinha me lembrei que não tínhamos flores em casa.  Fui comprá-las correndo, mas a greve da Leopoldina acabara com elas, ou era a própria greve das flores, que pediam aumento de orvalho; não havia uma triste corola à venda.  E não era dia de feira no bairro, de sorte que não se podia recorrer a flores de calçada.  Voltei de alma ferida, porque se pode trabalhar sem flor, dormir sem flor, mas comer sem flor é desagradável, tira o sal.  Estava imersa em vil desânimo, quando me pousou no nariz, trazida pelo vento, a florzinha de buganvília, cujos ramos estão explodindo de vermelho, entre pinceladas verdes.  Voei ao quarto de depósito, saí de lá brandindo a escada de três metros, e icei-a na pérgula.  E com risco de romper o esqueleto, pois escada de casa também é velha e desconjuntada, aos olhos divertidos ou indignados da vizinhança, fui ceifando com tesoura aquele mar de florinhas sanguíneas.  Enchi duas cestas enormes, e nunca minha casa ficou tão bonita como enfeitada assim à última hora, sem gastar um cruzeiro; o casal ficou encantado, mas que beleza de flor, então eu expliquei que buganvília não tem propriamente flores, tem brácteas, que são folhas iguais às outras, mas valorizadas pelo vermelho.  Deu tudo certo, e eu senti que os imensos pés de buganvília me agradeciam e pagavam dessa maneira a decisão de poupar-lhes a vida até a consumação dos séculos – ou da nossa velha casa, que eles vão destruindo poeticamente.”
“Buganvílias”.  In: Fala, amendoeira.

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