sábado, 26 de janeiro de 2013

SOUSÂNDRADE

Jardim do Luxemburgo - Giuseppe de Nittis óleo sobre tela

MADEMOISELLE
            Rien de plus beau que Paris”
                        (proverbio)


Fujamos, vida e luz, riso da minha terra,
Sol do levante meu, lírio da negra serra,
Doce imagem de azuis brandos formosos olhos
Dos róseos mares vinda à plaga dos abrolhos
Muita esperança trazer, muita consolação!
Virgem, do undoso Sena à margem vicejante
Crescendo qual violeta, amando qual errante
Formosa borboleta às flores da estação!

Partamos para Auteil, é lá que vivo agora;
Vê como o dia é belo! ali há sempre aurora
Nas selvas, denso umbror dos bosques de Bolonha.
 Ouve estrondar Paris! Paris delira e sonha
O que realiza lá voluptuar de amor –
Lá onde dorme a noite, acorda a natureza,
Reduz a flor na calma e os hinos da devesa
Ecoam dentro d’alma ais de pungido ardor.

Aos jogos nunca foste, às águas de Versailles?
Vamos lá hoje!... ali, palácios e convalles
Do rei Luís-catorze alembram grande corte:
Maria Antonieta ali previa a sorte
Dos seus cabelos d’ouro em ondas na bérgère.
Tu contarás, voltando... inventa muita coisa,
Prazer de velhos pais, – que viste a bela esposa
Das feras! com chacais dançando La Barrère!

Oh! Vamos, meu amor! costuras abandona;
Deixa por hoje o hotel, que eu... deixo a Sorbona –
E fugitivos, do ar contentes passarinhos,
Perdidos pela sombra e a moita dos caminhos
Até a verde em flor vila Montmorency!
De lá, és minha prima andando séria e grave;
Entramos no portão: eu dou-te a minha chave
E sobes, meu condão, ao quarto alvo e joli!

Hesitas? ou, senão, sigamos outra via;
Do trem que vai partir a válvula assobia,
O povo se acumula, aqui ninguém a ver-nos:
Fujamos para o céu! que fosse pr’os infernos
Contigo... – “oui” –. Não deixes estar teu colo nu!
Há gente no vagon... sou fúria de ciúme –
Desdobra o véu no rosto... olhos com tanto lume... –
Corria o mês de agosto; entramos em Saint-Cloud.

In: ReVisão de Sousândrade (org, Augusto e Haroldo de Campos). 1982




quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

MURILO MENDES

Tela de Heitor dos Prazeres

ISIDORO DA FLAUTA
Nasci coisando, nasci com a música.  Recordo-me perfeitamente ao ouvir nosso Orfeu  número 1, Isidoro, flauteando na casa de meu pai, de Titiá e de Sinhá Leonor, tendo eu três anos de idade; Mamãe Zezé pianolando e cantando, mais tarde soube, árias de Porpora e Caldara.
Um homem de ouvido afeito cedo à visitação da música não suporta o mesmo normal desafinamento, quanto mais o cliquetis de espadas e ruído de bombas.
*
Isidoro da flauta é, por acaso, preto.  Fino; música é com ele; Isidoro flauteia a vida inteira; seu canto menor aplaca por instantes ódio, inveja, libidinagens,alguns trovões.  Que idade tem Isidoro? É intemporal, como tantos da sua resistente raça.  Não pacifista, antes pacífico.
*
Cheira a domingo, é a flauta de Isidoro da flauta que se aproxima, uma pequena festa levantada no eco, jasmins-do-cabo orvalhando, o vácuo expulso, a evaporação da mágua, um sub-céu incorporado à curva do meu ouvido; segundo Rimbaud, um vento de diamantes.
*
No princípio quero pegar o som.  Isidoro passa-me a flauta, é preta com uns enfeites prateados, reviro-a de todo jeito, Isidoro cadê o som, responde: o som está escondido na minha boca e no oco da flauta mas eu aperto ele com as mãos; Isidoro ri, sadio, parece que tem 64 dentes, branquíssimos.  Isidoro cadê o som? Isidoro sem dúvida está mordendo o som.  Corro para lá e para cá, vejo um começo de incêndio no morro do Imperador, julgo que o morro acendeu um fósforo.  Cadê o som? Isidoro querendo me sossegar diz que o som correu para apagar o fogo mas vorta já.
*
Ninguém isola Isidoro da Silva da sua flauta.  Não se diz mais: Isidoro, ou o preto Isidoro, se diz hoje e sempre Isidoro da flauta.
*
Lá das profundas da noite – rua perpendicular ao meu ouvido – vem a serenata andando, e eu com mãos acesas para pegá-la.  Flauta, cavaquinho, violão.  Não sei quem está no cavaquinho e no violão, só sei que Isidoro da flauta está na flauta. Ouço os pés da serenata chegando.  Param de fronte ao número 467 onde mora dona Lucinda, viúva de porte majestoso, com seis filhas.  A serenata será para todas, inclusive a viúva?  Para as meninas garanto.  Eu gosto da quinta, Marília, sonsa, atirada, sorriso moreno, que me aplica os olhos castanho-amarelados; a viúva costuma me dar beliscões, mas de simpatia.  A serenata, passos vazios, afastou-se, reviro-me no travesseiro, nunca verei de perto o som, nem o tocarei.  Por outro lado, segundo Gil Vicente, já vejo cousas que não vêm nem vão.  Não ouço mais o tiquetaque do relógio, penso, na certa foi dormir.  O ouvido se me abruma; faz frio, tenho os dentes descobertos.

            In: Murilo Mendes.  A idade do serrote. Sabiá, 1968

No meu exemplar do livro há um bilhete escrito por meu pai, que foi presente dele.  Transcrevo-o: “Na compra da Idade do serrote, comprei um cabo e muitas lâminas de serrote pros muitos parentes militares cerrarem fileiras. Papai. 19/XI/88 (É o da Bandeira)”  E anotado bem lá em cima: Elizart livros – R. Larga 63
Murilo Mendes por Talarico

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

AH, UM BLOG DE SONETOS... DE MARCELO DINIZ

http://marcelodinizmaisum.blogspot.com.br/#!/

            Marcelo Diniz estreia um blog com seus excelentes sonetos.  O +1 tem uma estrutura aberta, entra-se e sai-se por onde quiser –, como aliás  a revista online Mallarmargens – e vai sendo atualizado sempre que ele resolve postar por lá mais um soneto que tenha concluído.  Além disso  estão lá seus também ótimos poemas visuais.
            Na apresentação  deste meu blog, há um soneto  que Marcelo dedicou a mim, está à direita na página principal em “Quem sou eu”.   Esse soneto e mais um que ele me dedica estão no  +1.  Mas o que eu gostaria de postar aqui é mais um, é este soneto abaixo, todo em rimas idênticas, que recebeu melodia do também mais um esplêndido Fred Martins e está no CD que Fred gravou na Espanha com a cantora galega Ugia Pedreira.  Posto um vídeo em que os dois cantam acompanhados pelo acordeon de Olivio Filho.
            Para nosso deleite.  Mais um. 





Depressa, a vida passa, mal se sente
e tudo já parece diferente:
o que doeu um dia hoje é dormente,
o amanhã não se lembra do presente;

e mal tudo é passado, o mais recente
recomeça a tecer o recorrente:
a cada ruga tudo é mais ausente,
o tempo foge e sempre leva a gente;

fascina como a infância é inocente:
eterno no vigor do adolescente,
no idoso, ainda crepita o sol poente;

fascina como tudo é transparente:
depressa, a vida passa e, de repente,
desfaz-se, n'água, a face que a ressente.



quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Christian Morgenstern

OS DOIS BURROS

Um burro macambúzio e mal com a sorte
diz, certa vez, à legítima consorte:

Eu sou tão burro e você é tão burra.
Morramos logo! – ele fala; ou zurra.

Mas, como sói acontecer frequente,
Vivos ficaram, zurrando alegremente.

                                       Tradução de Sebastião Uchoa Leite



In: Canções da forca. Roswitha Kempf Editores, 1983.




quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

NO DIA DA CONSCIÊNCIA BRANCA


Está certo, Pelé não se chamaria Pelé, ou melhor, talvez até se chamasse Pelé, mas o fato é que Pelé não conheceria essa glória desmedida, esse martelar insistente do nome e da grife Pelé,  Pelé  – observe que não quero entrar no mérito de tal glória, para mim é na verdade indiferente – teria sido no máximo, quando jovem –  agora ninguém seria capaz de dizer o que ele seria –   um homem livre para entreter a gente  com suas habilidades com a bola nos pés e na cabeça, enfim, em todas as partes do corpo que se  lhe nos aprouvesse.

Assim também, digamos, o Anderson Silva seria um ótimo segurança para cuidar de nossos filhos, quem não ficaria sossegado mandando seus pimpolhos para a escola sob sua guarda, quer dizer, creio que a sociedade como um todo teria como ter criado condições para que esse gladiador espetacular tivesse podido desenvolver seu potencial em favor dela, sociedade, e não de seus instintos bestiais.  E de seu bolso.

Claro que um Gilberto Gil desses jamais teria chegado a ministro, mas até que seria agradável que seu talento se desenvolvesse a ponto de animar nossas recepções sociais –  mas sem esse Martinho da Vila sentado no nosso sofá da sala –  assim como um Milton Nascimento – ótimo num coral de igreja! –, esse Luiz Melodia e tantos outros Djavans, que aprenderiam a cantar com os curiós dos nossos terreiros  sob os alpendres,  como os Cartolas, os Candeias, os Ismaéis...

É, tem ou tinha, né, o Milton Santos, tinha o Abdias, o Solano Trindade, tem o Muniz Sodré, mas se não tivessem dado tanta a asa a Zeca Patrocínio, André Rebouças e outros,  Zeca Pagodinho não teria nem atravessado o Rebouças...

Dia bom pra comungar hoje. 

Foto New York Times


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

AH, UM SONETO... DE DANTE ALIGHIERI

Soneto I de Vita Nuova

A toda alma gentil presa de amor
em cuja direção parte este escrito,
peço resposta sobre o que vai dito
e saúdo em Amor, seu grão-senhor.
Finda a terceira hora antes do alvor
quando os astros mais brilham no infintio,
eis me aparece Amor trazendo inscrito
em si um ar que eu lembro com horror.
Alegre parecia, mas levando
meu coração na mão;no braço eu via
a minha dama em trapos ressonando
e ele a acordava, e o coração queimando
humilde e com receio ela comia.
Depois Amor partia, soluçando.

Ilustração de Dalí para A divina comédia



A ciascun'alma presa, e gentil core,
nel cui cospetto ven lo dir presente,
in ciò che mi rescrivan suo parvente
salute in lor segnor, cioè Amore.
Già eran quasi che atterzate l'ore
del tempo che onne stella n'è lucente,
quando m'apparve Amor subitamente
cui essenza membrar mi dà orrore.
 
Allegro mi sembrava Amor tenendo
meo core in mano, e ne le braccia avea
madonna involta in un drappo dormendo.

 Poi la svegliava, e d'esto core ardendo
lei paventosa umilmente pascea:
appresso gir lo ne vedea piangendo.



In: Vida nova: os poemas.  Tradução de Jorge Wanderley.  Taurus/Timbre, 1988.



terça-feira, 1 de janeiro de 2013

PRIMEIRO


: arquitetura.

um verso no qual se entre
e ao sair se esteja no mundo.
nada no entanto que pareça
um túnel;  mas adro, claro
que sem igreja: e claro.

átrio.  passagem, certo, mas
perguntei: para se entrar ou
sair?  ilusão, ele me disse,
e me disse: astrolábio
e perguntou: o que sabe

você de galápagos? e do
monte appaloosa? e de jogos
malabares?  mas eu já não
ouvia, pois eu me perguntava
o que tinha aí de arquitetura.

: travessia.

sentamo-nos, um pouco
à maneira presumida
de riobaldo. riobaldo,
ele prosseguia, ao fim
de sua travessia foi ao claro

do escuro ou chegou ao escuro
do claro? e  aonde teria
chegado não fosse a um
átrio, de onde se divisa
o deslimite, o viés do vero

caminho? não do atalho,
não uma vereda, mas a
vereda, aquela que ali
através da qual ninguém
chega,  e é só travessia.

: aventura.

entrar num verso baldio
e sair no mundo, nunca
se sabe, mas perseverar
que haverá o mar e neste
a arquitetura e nesta

a travessia e esta apenas
começa aqui, e riobaldo,
ele me disse, bem o sabia.
foi quando calou-se e eu
permaneci mudo fermato.

balbuciei: seria então
desde o começo...  – não há
começo, interrompeu-me,
– não me detive – , seria
então tudo arquitetura?

e ele: ilusão.

crença e descrença dependem
de em quem se infundem,
ele retomou com segurança,
e disse mais, tudo vem da
arquitetura, a ilusão

de se habitar no construído
como se não, como se fosse
de importar se se entra ou
se sai, aqui a ilusão é
a da travessia, mas não

uma ilusão de logro, e sim
de espessura, de carne
como não se diria a carne.
ilusão. por isso ao atravessá-la
a chamam alma: ilusão.

: aventura.

perguntei: e o astrolábio?
e galápagos? e malabares?
appaloosa?  ilusão?
aventura? travessia?
não, me disse ele: sons

os sons que se ouvem no adro
e pelos quais ao mundo
pode ser que vamos
ou só polissilábicas
despistas, despistes

do verso e do vero
da lábia e da sílaba, caro
agora figuro: ponto.
arquitetura – estás
pronto ao sumidouro.

: reverso

 não, eu disse, não quero
o sumidouro, quero a borda,
melhor, o bordado amanhecer
quero – ele de novo
me interrompeu: então,

o cemitério é o que você
quer. o adro, não de igreja
mas de cemitério, do cemitério
a última ilusão, a fenda,
a calcinação.  e eu:

então  o verso que leva
direto ao mundo leva ao
fim quando dele se sai,
de novo o fim no começo
o começo fim dos tempos,

tédio:  adeus.