No
dia 10 de novembro de 1972 Torquato Neto completaria – não sei se chegou a
completar – 28 anos. Matou-se na
madrugada, abriu os bicos do gás no apartamento onde morava na Tijuca. Numa última frase de seu texto de suicida, pedia
um cuidado especial com o filho: “Vocês
aí, não sacudam demais o Thiago. Ele
pode acordar”. O impacto de sua morte em mim, que tinha 16 anos, foi imenso. Mas o impacto de Torquato vivo tinha sido
maior. Hoje ele completaria 72 anos. Por isso é do Torquato vivo que falarei.
Meus primeiros contatos com algo que se
possa chamar de poesia do século XX, melhor, com a arte do século XX, se deram
através da coluna “Geléia Geral”, que Torquato manteve no jornal Última Hora de agosto de 1971 a março de
1972. Não, minha memória nada tem de
extraordinária, muito menos para datas: essa precisão eu devo aos dois belos
volumes organizados por Paulo Roberto Pires, sob o título de Torquatália, lançamento da Rocco em 2004.
Mas a memória que eu tenho de Torquato e de sua coluna e de tudo a que me
levaram seus textos provocantes, informativos, desconcertantes e tantas vezes
desaforados, essa memória é enorme e a ela sou muito grato. Como a
deste, que saiu em 14 de junho de 1971, e que colo aqui:
Por exemplo: a foto de Godard
com a legenda “Godard. Poeta. Nunca teve medo de quebrar a cara. Quebrou?” No moleque de 15 anos isso de “Godard poeta”
ficava martelando: quem é esse poeta?
Fui ver, fui correr atrás (era um tempo sem internet, googles,
wikipedias, se é que dá pra pensar nisso
hoje e, sim, alô saudosistas do que não sabem, era um tempo de enorme
cerceamento à informação, a qualquer informação, no país sob feroz ditadura), descobri que
Godard era um cineasta francês, um nome de referência no cinema, mas no cinema
de pirados de modo geral, diretor de filmes “incompreensíveis”, “fracassados”
etc. enfim: Godard era um poeta do
cinema. Um poeta, sim. Cuja linguagem – que ele levava e leva
–a limites impensáveis era o filme. Assim se faziam as descobertas, fim do
exemplo.
A coluna do Torquato me
dava notícias enviesadas, elípticas (eram aqueles tempos e era também uma
proposta de não ser didático, a não ser para quem estava a fim de aprender
alguma coisa com o ímpeto e o risco) de
um Chico Buarque alvo de censura burra e torpe
e de recriminações mal bem pensantes, de Caetano e de Gil no exílio, dos
movimentos subterrâneos na vida cultural, do samba e dos rocks dos guetos, da esquerda boêmia carioca que envelhecia,
mesmo genial, no Pasquim, da vida que se fazia vigorosa, resistente, frágil
entre a antropofagia e o vampirismo, o
Nosferatu que Torquato encarnara em Nosferatu no Brasil, super-8 de Ivan
Cardoso (filme, aliás, que nunca vi).
Foi
Torquato que me direcionou de forma mais provocativa em direção aos irmãos
Campos, a Pound, a Oiticica, foi ele quem primeiro chamou minha atenção para o
novíssimo Chacal, quem me dimensionou bem Paulinho da Viola, quem direcionou
meus ouvidos para Jards Macalé, os olhos curiosos para as polêmicas do cinema
underground x Cinema Novo, quem me
apontou para Waly Salomão e sua “descoberta” Luíz Melodia, um moleque do morro
de São Carlos de 20 anos, cuja “Pérola
Negra”, cantada no antológico show –Fa-tal - , de Gal Costa na virada
1971/72, me deslumbraria, como deslumbra até hoje. Falo em Waly Salomão, e a lembrança de Torquato me evoca também a
sua. Estive com Waly uma vez, em 1984,
num ciclo de discussões sobre música popular que ajudei o pessoal do Diretório
de Letras das UFF (eu já estava formado) a organizar. Mediei uma mesa dele com o também grande
poeta e letrista Abel Silva.
Adorei
o rápido contato com Waly, embora não tenha certeza de a recíproca ser
verdadeira, até porque não tive tempo nem interesse em esclarecer. Mas o jeito de Waly, gestos largos e voz
baiana tonitroante e desabusada, a fazer uma fala generosa ao auditório lotado
de estudantes (lá pelas tantas apareceram ainda Antonio Cícero, que se não me
engano era professor-substituto de Filosofia lá na UFF, e Alex Varella), e ao
mesmo tempo reclamar que não havia sequer um “pro-labore” para os convidados
(“Vocês precisam correr atrás de patrocínios!” ele bradava), me conquistou, sobretudo quando fez um “descarrego”
(chamemo-lo assim) do peso do fantasma de Torquato no martirológio em que o
queriam incluir (como gostamos de martirológios no Brasil, mas apenas para
celebrar os santos, não para fazer-lhes justiça...). Waly dizia algo do tipo “Torquato está morto,
nós aqui estamos vivos, sua poesia, sua trajetória não merecem ser domesticadas
por esse coitadismo, esse martirológio, o que ele deixou está acima de tudo
isso e não vamos ficar gostando do que ele fez pelas razões erradas!” Vejo a foto e me novamente ouço sua fala veemente. Waly
morreria em 2003, também grande como Torquato.
A
Coleção Postal, da Azougue Editorial e da Editora Cozinha Experimental, acaba
de lançar seu segundo livro (o primeiro foi dedicado a Roberto Piva, vejam a
postagem anterior a esta), o volume Torquato
Neto , com vários textos inéditos. Claro que eu recomendo e já estou me
deleitando com ela. Mas folheando aqui
os diversos textos da coluna “Geléia Geral” reunidos no volume 2 de Torquatália, me deparo com um ao qual
nunca tinha prestado atenção, não devo tê-lo lido na época. Só pra informação, Lena Rios é uma
conterrânea de Torquato, piauiense, que iniciava uma carreira musical naquela
época. Entre outras coisas, lembro que
ela gravou a música-tema (parceria de Torquato com Carlos Pinto) de Sem essa, aranha, filme de Rogério
Sganzerla, de 1970. Não sei se a cantiga em questão foi musicada.
CANTIGA
PIAUIENSE PARA LENA RIOS
Sempre andei por um caminho
Que não conhecia bem;
Sequer me lembro se vinha
Sozinha, ou se com alguém
E nem sei se aqui chegada
Faço morada, me aquieto
Pois é certo que procuro
Algo que deve andar perto:
Mas o que vejo é incerto
E o que consigo não dura.
(Eu sempre quis outra vida
Eu sempre quis ser feliz,
Por isso naquele tempo
Fiz minha mala e parti)
Sempre andei por um caminho
Que não sabia direito;
Do que perdi na viagem
Já me esqueci por completo
Não guardei nada e o que trouxe
Eram apenas utensílios
De fácil desprendimento:
Dois filhos que nunca tive
Um velho anel de família
E uma saudade no peito.
(Eu sempre quis outra vida
Eu sempre quis ser feliz:
Dos dois filhos, da saudade
E até do anel me desfiz).
Sempre andei por um caminho
Que não tem ponto final
E a paisagem que eu via
Era toda e sempre igual:
Depois da noite outro dia
Com suas mesmas desgraças,
Mas também algumas casas
Com jantar posto na mesa.
Agora:
EU SEMPRE QUIS SER CONTENTE
E PODE SER QUE EU JÁ SEJA.
Haveria e há muito a se falar ainda de
Torquato, mas isto aqui foram apenas alguns flashes de memória de alguém que
foi tão importante para mim, que de certa maneira continua sendo, e cuja obra é
provável que ainda tenha muito a render aosd interessados de todas as eras. Vocês aí descubram por conta e risco. Aqui mesmo no Firma Irreconhecível há outras
postagens. Divirtam-se. Vivam.
Torquato no traço de Luís Trimano |
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