PRIMATA
Senhores, eu queria abrir a
realidade
como um bicho de couro e tripas
quentes
com o bisturi da lucidez doente
de Augusto dos Anjos, sem
piedade
- nem precisão: ia cortando
tudo,
abrindo e maquinando nos miolos
uma dor, uma dúvida, um
consolo,
com a mesma avidez com que um
mudo
se pudesse entrava nas
conversas,
com a esperança e com o
desespero
com que eu lia, tão tonto e
sincero,
Carlos Marx na segunda e terça,
São Francisco na quarta, na quinta
qualquer coisa que cheirasse
angústia;
na sexta, alguns poemas de
Augusto,
no sábado escrevia um poema
sinistro.
Tinha 14 anos, trinta espinhas
na cara, nos ombros, e um
vulcão
comunicando cabeça e coração.
O oceano numa lata de sardinha.
Todos os exércitos num homem.
Leitor de todos os jornais do
mundo.
Vítima de todos, curioso de
tudo.
De dia, sono. De noite, lobisomem.
Me perguntava: quem entende, quem ensina?
Sobre os telhados meu boné de
confusão.
Se chamasse Raimundo não seria
solução.
Cuspia na sopa pra respingar na
família.
Ancorava na esquina como um
poste
à disposição do vento que
passasse,
à espera de quem me pregasse
cartazes,
recruta, mártir, ovo de
sacerdote
ou projeto colorido de
descrente,
herói, tatu peva, rato, borboleta,
centro indiscutível do planeta,
primata de todos os
descontentes.
Ali estava eu considerando-me
resultado da minha própria
cabeça
enquanto transitavam bicicletas
com operários, operários com
marmitas,
nessas marmitas de folhas-de-flandres
arroz, feijão, mandioquinha
frita
e outras raízes e rins
gozando-me
com seu sarcasmo de óleo e de
usina.
Nem teme quem te adora a
própria morte.
A Revolução Russa não me
esperara.
Numa fotografia vi que não
estava
entre os Dezoito do Forte.
Na Segunda Guerra os submarinos
emergiram e afundaram apesar
de eu ainda nem respirar o ar
tão necessário aos submarinos.
E eu queria embarcar pra combater.
Queria estar na tela dos
cinemas
em forma de herói, de cinza ou
bomba.
Queria escrever,
rasgava
os poemas;
gastar a pilha toda como um
bobo
gasta energia com os seus
trejeitos;
quebrar um cadeado como se o
peito
fosse o telefone vigiado da
farmácia
e ligar para todos os cinemas
perguntando que horas que
passava
o filme das dúvidas
organizadas.
E transitavam grevistas pelos
dias,
a inflação roia na cozinha,
prenderam um ladrão num dos
vizinhos
mas eu não via.
Eu
não sabia,
Getúlio deixara um testamento,
um tio se suicidara de desgosto
e minha tia trazia no rosto
toda a História do Casamento.
Eu não lia os jornais nas
entrelinhas.
Na eleição do diretório (*) ,
não votei.
Me enfiei na biblioteca e lá
fiquei
ciscando assustado como
galinha.
In: Poesia Viva 2 (org, Moacyr Félix). RJ: Civilização Brasileira, 1979.
(*) Na edição
utilizada está “velório” por “diretório”.
Optei por este termo porque acontece
que minha lembrança deste poema é mais antiga do que a data de sua publicação
no livro organizado por Moacyr Félix indica.
Certamente o li em alguma das revistas literárias da época, nas quais
tanto a poesia quanto a ficção narrativa de Domingos Pellegrini eram
habituais. Tentei localizar entre meus
guardados onde estaria essa publicação anterior, confesso que não achei. Também não encontrei o poema na
internet. Vai assim então em nome não
exatamente - ou não apenas - da minha memória , mas em nome também do
sentido: qual seria a razão, descabida
sob todos os aspectos, desse “velório”, num poema que trata da formação do poeta enquanto homem politizado?
Nenhum comentário:
Postar um comentário