domingo, 27 de novembro de 2016

DOMINGOS PELLEGRINI (1949)

PRIMATA

Senhores, eu queria abrir a realidade
como um bicho de couro e tripas quentes
com o bisturi da lucidez doente
de Augusto dos Anjos, sem piedade

- nem precisão: ia cortando tudo,
abrindo e maquinando nos miolos
uma dor, uma dúvida, um consolo,
com a mesma avidez com que um mudo
se pudesse entrava nas conversas,
com a esperança e com o desespero
com que eu lia, tão tonto e sincero,
Carlos Marx na segunda e terça,
São Francisco na quarta, na quinta
qualquer coisa que cheirasse angústia;
na sexta, alguns poemas de Augusto,
no sábado escrevia um poema sinistro.

Tinha 14 anos, trinta espinhas
na cara, nos ombros, e um vulcão
comunicando cabeça e coração.
O oceano numa lata de sardinha.
Todos os exércitos num homem.
Leitor de todos os jornais do mundo.
Vítima de todos, curioso de tudo.
De dia, sono.  De noite, lobisomem.

Me perguntava:  quem entende, quem ensina?
Sobre os telhados meu boné de confusão.
Se chamasse Raimundo não seria solução.
Cuspia na sopa pra respingar na família.

Ancorava na esquina como um poste
à disposição do vento que passasse,
à espera de quem me pregasse cartazes,
recruta, mártir, ovo de sacerdote
ou projeto colorido de descrente,
herói, tatu peva, rato, borboleta,
centro indiscutível do planeta,
primata de todos os descontentes.

Ali estava eu considerando-me
resultado da minha própria cabeça
enquanto transitavam bicicletas
com operários, operários com marmitas,
nessas marmitas de folhas-de-flandres
arroz, feijão, mandioquinha frita
e outras raízes e rins gozando-me
com seu sarcasmo de óleo e de usina.

Nem teme quem te adora a própria morte.
A Revolução Russa não me esperara.
Numa fotografia vi que não estava
entre os Dezoito do Forte.
Na Segunda Guerra os submarinos
emergiram  e afundaram apesar
de eu ainda nem respirar o ar
tão necessário aos submarinos.

E eu queria embarcar pra combater.
Queria estar na tela dos cinemas
em forma de herói, de cinza ou bomba.
Queria escrever,
                         rasgava os poemas;
gastar a pilha toda como um bobo
gasta energia com os seus trejeitos;
quebrar um cadeado como se o peito
fosse o telefone vigiado da farmácia
e ligar para todos os cinemas
perguntando que horas que passava
o filme das dúvidas organizadas.

E transitavam grevistas pelos dias,
a inflação roia na cozinha,
prenderam um ladrão num dos vizinhos
mas eu não via.
                            Eu não sabia,
Getúlio deixara um testamento,
um tio se suicidara de desgosto
e minha tia trazia no rosto
toda a História do Casamento.

Eu não lia os jornais nas entrelinhas.

Na eleição do diretório (*) , não votei.
Me enfiei na biblioteca e lá fiquei
ciscando assustado como galinha.


In: Poesia Viva 2 (org, Moacyr Félix).  RJ: Civilização Brasileira, 1979. 


(*) Na edição utilizada está “velório” por “diretório”.   Optei por este termo porque acontece que minha lembrança deste poema é mais antiga do que a data de sua publicação no livro organizado por Moacyr Félix indica.  Certamente o li em alguma das revistas literárias da época, nas quais tanto a poesia quanto a ficção narrativa de Domingos Pellegrini eram habituais.  Tentei localizar entre meus guardados onde estaria essa publicação anterior, confesso que não achei.  Também não encontrei o poema na internet.  Vai assim então em nome não exatamente -  ou não apenas  - da minha memória , mas em nome também do sentido:  qual seria a razão, descabida sob todos os aspectos, desse “velório”, num poema que trata da formação  do poeta enquanto homem politizado?   



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