domingo, 28 de abril de 2024



JOCA E AS CIRCUNSTÂNCIAS DE ABRIL




 

JOCA
                   “o sorriso do cachorro está no rabo”
                        (Walter Franco)
 
No setor de cargas de um aeroporto se encerra
o cruel abril
 
Joca morreu mais de 5000 vezes
e morre de novo e de novo
como as celebridades midiáticas
a cada vez que o vemos
e o vemos aguardando o embarque
dos caixotes – ele caixote -
a abanar o rabo da alegria  
o olhar expectante talvez de bons augúrios
- afinal é um golden retriever
essa absoluta segurança de bom astral -
 
O olhar de Joca quase que nos dá certeza
de que tudo dará certo e mais
nos assegura que assim como nós
 
Joca nada sabe de Gaza
de Africa de Ásia
dos oceanos e rios vermelhos
da crosta vermelha
da Terra ferida
das crianças mortas
de fome
de fel
de parto ou de balas a esmo
lá e ao nosso lado  
de bala envenenada
nada sabe dos homens de lodo e ferrugem
nada
sabe dos morticínios
na penúria
de mulheres de milhares e sequer é capaz de avaliar
daqui a pouco
o ensuredecedor zunido das turbinas
em seus sentidos que sofrem
- o que sabemos –
dos punhais gélidos
do calor de soda cáustica
das estatísticas que nos condenam
do nosso ódio e de nossa indiferença
enquanto ele vai morrer de medo
 - vai morrer de medo! -
e acima dele mãos viajam em seus braços
numa ilusão de inteireza
 
Apenas nos olha
querendo – tsk –  ter os nossos olhos
que agora não suportam a dor de vê-lo mais uma vez morrer
 

mas ele de nada sabe.                                     

 

As circunstâncias de abril

                Relevem, por favor, a alusão a Eliot quando qualifico no verso 2 abril como cruel.  Tentei mesmo não aludir por sincera modéstia, para não me tomarem por pretensioso, se me creem.  O importante para mim, o que quis deixar registrado, é que o mês de abril, que vai se findando, me atingiu com notícias tão cruéis do mundo, do mundo próximo e do distante, que acabou por me levar a escrever resolutamente textos (hesito ainda chama-los poemas) de circunstância. Entre outros efeitos, para compensar a crueldade do mês, esse conjunto de dores me levou a reativar este blog, há seis anos parado.  E me animou ainda a reativar o blog com a leitura de poemas em vídeos, o que pretendo manter. Claro que me refiro aos três textos recentes  aqui postados: “Em que nasceste”, “Eu seria um deus corruptível” (Incidente em Bangu) e “Em que morreste”, que ganharam também suas versões em vídeo.

                O olhar do Golden retriever Joca,  que desgraçadamente captei numa de suas 5000 mortes –  nas telas de TV e PC e celular – foi o mais recente acontecimento triste que levou a tentar escrever a partir de circunstâncias.  Claro que o desafio maior que me impus ao fazê-lo foi fugir do lacrimejante fácil.  Do lacrimejante propriamente dito  fugi a cada vez que ouvia falar no acontecimento do pobre cão a morrer num depósito de cargas em pleno voo. O fato de vivermos todos muito próximos da morte, condição que me captou muito decisivamente neste abril de que falo, parece ter encontrado sua condensação para mim na morte do animal.   Vou postar “Joca” aqui, na esperança de que o texto  tenha ganho sua forma definitiva.

                Há ainda duas alusões intencionais (é possível ainda que haja outras, que podem ter se insinuado sem que eu percebesse):  uma a Cabral, outra a Drummond.   Delas não fujo, não procurei fugir, foram mesmo buscadas.

                Fechemos o mês de abril.


quarta-feira, 24 de abril de 2024









 

EM QUE NASCESTE

         Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!

           País nenhum como este

           Vê que vida que há no chão, que multidão de insetos!

                                      (apud Olavo Bilac)

 

o meu país devora braços e orelhas de poetas
mas primeiro os dilacera e depois ainda
os incinera junto com os livros que escreveram
os cachorros que não os leram não os lerão
nem há como como comer é o que importa
 
não há janela não há porta capaz de detê-los

 

o meu país anda de porsche descarrega
AR 15 kalashnikov funda estilingue 9 mm
AI-5 artigo 142 besta besta-fera bota fora
o ódio sobre a cruz sobre o padre sobre o pastor
quer ver o babalorixá com a boca cheia
 
de formiga formicida feminicida é o meu país
 
enquanto rouba galinhas no quintal vizinho
levando numa mala que lança ao rio
o corpo da mulher e do seu filho e o do vizinho
e o da mulher do vizinho e do filho do vizinho
numa mesa com rícino e vinho uma emulsão
 
de porra e bílis e fezes muco e as veias e varizes
 
promessa de vida eterna promessa de futuro
felicidade ereta ereção infinita tanto eu olho
a linha do horizonte onde ainda vejo num navio
o  meu país quem sabe quem me viu quem nos viu
no passado dum futuro que nunca se construiu
 
lamentação num muro o meu país sem vulcão
 
sem terremoto o meu país de pauis de jurisconsultos
generais sacrossantos fundassentados em vasos
onde trocam boquetes e coitos de escopeta
fissurados nas fressuras  o meu país de finos manjares
derramados como sal sobre a mesa  da santa ceia
 

a pátria do desperdício o meu país de cano duplo.

                                                       

domingo, 21 de abril de 2024





                Depois de seis anos fora de atividade, retomei este meu blog na semana passada com um poema em elaboração, conforme frisei.  Trabalhei mais nele e apresento aqui aos leitores uma segunda versão, que talvez venha a ser a definitiva.   Serão bem vindos os comentários, pareceres, impressões que tomem a comparação entre os textos.  Ou não.  Que queiram comentar apenas este novo poema a que cheguei.

                Ei-lo:

 

EM QUE MORRESTE

Eu poderia me chamar João Cabral de Melo
Neto e estudar ciências abstrusas, números irracionais, letras
apagadas e ter amor ao que faço ou finjo
fazer, criar corvos ou urubus,  entrar e sair de tretas
ir ao mercado comprar maçãs, apostar no bicho
jogar o peixe pescado aos gatos
e nem de longe pensar em nada parecido com assassinatos
ao redor de mim
e eu não teria por que ser morto
 
Eu gostaria mesmo é que meu nome de fato
fosse Marcus Vinícius da Cruz de Mello
Moraes e ainda que eu fosse ruim de bola
a ponto de  ser barrado até no gol, mas bom da bola,
dedicaria  meu tempo a organizar os comerciários
contra comerciantes argentários
ainda que me ameaçassem em vão com assassinato
meu provável fim
eu não teria por que ser morto
 
Eu quereria me chamar Joaquim Maria Machado
de Assis  e ser herdeiro de um vasto latifúndio de infortúnios
e de tanto me esforçar tornar-me exemplo
exímio construtor de pontes e túneis e expulsar
de tantos outros templos os vendilhões de sempre
a atender para todo o sempre orações mediante depósitos
para encomendar assassinatos
sem fim
e eu não teria por que ser morto
 
E se eu me chamasse Edson Arantes do Nascimento
e demonstrasse desde a mais tenra idade
um talento invulgar para a geometria euclidiana
e as especulações de fundo pitagórico
ou fosse eu um mero Afonso Henriques de
Lima Barreto e traçasse a geometria do espanto e do descalabro
de todo o meu país de inutilidades e pegasse
o trem às 5 da tarde, sonhando topografias trocando
ideias infindas em conversas intermináveis
com Caetano Emanoel Vianna Telles Veloso
e Heitor Villa-Lobos, e súbito entrassem no trem
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho e Olavo Brás Martins dos
Guimarães Bilac, amigos de turma e boemia
e aguardássemos ansiosos a hora de nos encontrarmos
com Cecília e Clarice e Hilda e Adélia
Vera, Maria da Graça, Conceição, Tamires
vindas todas das dimensões nada etéreas
mas muito concretas portadoras de imensas sabedorias
e dedicássemos nossos tempos e nossos futuros
a passar verões à beira-mar e invernos entre serros
e não
não teríamos por que sermos mortos
 
Mas me chamaram Bernardo e entre uma aula e outra
uma gôndola e outra um cheetos e um hambúrguer
entre ser o Pedro ou o Rafael a Stéphanie ou a Gioconda
o Vitor ou o Valber o Kássio ou a Helga a Sandra ou
o Leo ou o Roberto
eu fui eu e não
o outro

e fui morto. 


quinta-feira, 18 de abril de 2024

EU SERIA UM DEUS CORRUPTÍVEL (Incidente em Bangu)

 






Zdzislaw Beksinski #38  por Rachid Fikri



preciso de algum
                   - na verdade de um pouco mais do que algum
pra reformar a casa e
                  
uma nova televisão
 
preciso sair do puxadinho no labirinto de labirintos
de puxadinhos dentro do terreno de 12 x 8 + 23 parentes e
encostados labirínticos
 
por isso vim resolutamente caminhar por essas ruas causticantes
que evaporam a chuva antes mesmo que ela bata nas pedras
da calçada
a empurrar-me e a  esta cadeira com o  corpo e estes trapos que cuidadosamente
lavei antes de sair de casa, embora faltem sapatos e a sola do pé
do corpo na cadeira vá ficando encardida cada vez mais à medida que
caminhamos
 
(lavei os trapos cuidadosamente afinal a agência do banco
fica dentro do shopping e os seguranças costumam expulsar
quem anda sujo por aqueles corredores ante aquelas vitrinas cintilantes
embora ao reparar nos pés imundos do homem na cadeira
se mostrem todos compreensivos – afinal, é um morto)
 
“acorda, tio Paulo”
“assina, tio Paulo”
“você precisa assinar, tio Paulo”
 
“meu Deus...”
 
ao ouvir que me chamava, prestei atenção
olhei para o lado
e liberei: 
o que são 17 mil para um banco?
tio Paulo mesmo acordou embora continuasse imóvel
em seu assento e assim  foi de olho rútilo
                            - embora cochilasse aqui e ali
e  riso satisfeito

até a hora de ser enterrado.

domingo, 14 de abril de 2024

EM QUE MORRESTE

     



    Acordei com vontade de reativar este blog, que desativei há quase seis anos, depois de nove anos de intensa atividade.  O espírito a presidir sua existência continua o mesmo, sintetizado em sua breve e protocolar descrição: "poesia, literatura, música, futebol, comes e bebes, humor, bom humor, mau humor..."  o que vier de diferente,  acréscimo ou de supressão,  será sinal do tempo passado a cunhar  suas mudanças neste escriba.

    Como primeira postagem da retomada, posto um esboço - que em italiano se diz "bozzetto", plural: "bozzetti"  - de poema, motivado por dias de luto, consternação, medo, impotência... enfim, nossos dias.  A foto que a acompanha circulou na mídia esta semana.  

    Aproveito para linkar aqui uma descoberta de agora há pouco, de um veículo que me parece precioso para acompanhar os constantes e inquietantes acontecimentos nas periferias que "coalescem em torno de nossas cidades sitiadas", como diz a canção "Ronda carioca", dos chapas Fernando Pellon e Paulinho Lêmos (procurem conhecer)*.   Mas o link de que falo é para a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Social https://dmjracial.com/ .

    E o poema em construção é este    


EM QUE MORRESTE

Eu poderia me chamar João e estudar
ciências abstrusas, números irracionais, letras
apagadas e ter amor ao que faço ou finjo
fazer, criar corvos,  entrar e sair de tretas
ir ao mercado comprar maçãs, apostar no bicho
jogar o peixe pescado aos gatos
e nem de longe pensar em nada parecido com assassinatos
ao redor de mim
 
e eu não teria por que ser morto
 
Eu gostaria mesmo é que meu nome de fato
fosse Marcus Vinícius e se eu fosse ruim de bola
e ser barrado até no gol, mas bom da bola
e dedicar meu tempo a organizar os comerciários
contra comerciantes gananciosos  e argentários
ainda que me ameaçassem em vão com o assassinato
meu provável fim
 
 eu não teria por que ser morto
 
Eu quereria me chamar Joaquim Maria e ser herdeiro
de um vasto latifúndio de infortúnios
e de tanto me esforçar tornar-me exemplo
exímio construtor de pontes e túneis
e expulsar de tantos outros templos os vendilhões
de sempre a atender para todo o sempre orações e assassinatos
sem fim
 
e eu não teria por que ser morto


(* para ouvir "Ronda carioca", indicada acima, na voz de Fátima Guedes, acessem o site de Fernando Pellon em https://fernandopellon.com.br/