JOCA
“o sorriso do cachorro está no rabo”
(Walter Franco)
No setor de cargas de um aeroporto se encerra
o cruel abril
Joca morreu mais de 5000 vezes
e morre de novo e de novo
como as celebridades midiáticas
a cada vez que o vemos
e o vemos aguardando o embarque
dos caixotes – ele caixote -
a abanar o rabo da alegria
o olhar expectante talvez de bons augúrios
- afinal é um golden retriever
essa absoluta segurança de bom astral -
O olhar de Joca quase que nos dá certeza
de que tudo dará certo e mais
nos assegura que assim como nós
Joca nada sabe de Gaza
de Africa de Ásia
dos oceanos e rios vermelhos
da crosta vermelha
da Terra ferida
das crianças mortas
de fome
de fel
de parto ou de balas a esmo
lá e ao nosso lado
de bala envenenada
nada sabe dos homens de lodo e ferrugem
nada
sabe dos morticínios
na penúria
de mulheres de milhares e sequer é capaz de avaliar
daqui a pouco
o ensuredecedor zunido das turbinas
em seus sentidos que sofrem
- o que sabemos –
dos punhais gélidos
do calor de soda cáustica
das estatísticas que nos condenam
do nosso ódio e de nossa indiferença
enquanto ele vai morrer de medo
- vai morrer de medo! -
e acima dele mãos viajam em seus braços
numa ilusão de inteireza
Apenas nos olha
querendo – tsk – ter os nossos olhos
que agora não suportam a dor de vê-lo mais uma vez morrer
mas ele de nada sabe.
As circunstâncias de abril
Relevem, por favor, a alusão a Eliot quando
qualifico no verso 2 abril como cruel.
Tentei mesmo não aludir por sincera modéstia, para não me tomarem por
pretensioso, se me creem. O importante
para mim, o que quis deixar registrado, é que o mês de abril, que vai se findando,
me atingiu com notícias tão cruéis do mundo, do mundo próximo e do distante,
que acabou por me levar a escrever resolutamente textos (hesito ainda chama-los
poemas) de circunstância. Entre outros efeitos, para compensar a crueldade do
mês, esse conjunto de dores me levou a reativar este blog, há seis anos
parado. E me animou ainda a reativar o
blog com a leitura de poemas em vídeos, o que pretendo manter. Claro que me
refiro aos três textos recentes aqui
postados: “Em que nasceste”, “Eu seria um deus corruptível” (Incidente em
Bangu) e “Em que morreste”, que ganharam também suas versões em vídeo.
O olhar do Golden
retriever Joca, que desgraçadamente
captei numa de suas 5000 mortes – nas
telas de TV e PC e celular – foi o mais recente acontecimento triste que levou
a tentar escrever a partir de circunstâncias.
Claro que o desafio maior que me impus ao fazê-lo foi fugir do
lacrimejante fácil. Do lacrimejante
propriamente dito fugi a cada vez que
ouvia falar no acontecimento do pobre cão a morrer num depósito de cargas em
pleno voo. O fato de vivermos todos muito próximos da morte, condição que me
captou muito decisivamente neste abril de que falo, parece ter encontrado sua
condensação para mim na morte do animal.
Vou postar “Joca” aqui, na esperança de que o texto tenha ganho sua forma definitiva.
Há ainda duas
alusões intencionais (é possível ainda que haja outras, que podem ter se
insinuado sem que eu percebesse): uma a
Cabral, outra a Drummond. Delas não
fujo, não procurei fugir, foram mesmo buscadas.
Fechemos o mês de
abril.
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