terça-feira, 12 de abril de 2011

FIRMA IRRECONHECÍVEL, 1º. SEGMENTO



Quando lancei em 2009 meu segundo livro, Firma irreconhecível, tive a idéia de lançar junto com o volume um CD no qual eu lesse o poema-título, texto extenso que ocupava só ele 45 páginas das 170 totais. Executei a idéia tanto como uma forma de tentar aproximar o leitor do poema quanto, mais ainda, porque o poema em si foi construído movido sobretudo pela oralidade, pelo ritmo da fala acelerada que me acompanhou durante os quatro meses em que foi escrito – quase escrevo aqui “transcrito”, pois ele me vinha sobretudo pela voz interior, audível a cada vez que eu me re-conectava á célula rítmica que o move. A oralidade evidente do texto teria que ser complementada pela vocalidade da gravação em CD.
Feita a gravação, ficou ainda evidente que o poema precisaria ser dividido em faixas ao longo de seus mais de 30 minutos de duração. Sobretudo pelo aspecto prático: o ouvinte que não agüentasse ouvi-lo todo de uma vez (alguém agüenta?) poderia retomar de uma das faixas interrompidas e assim ir ouvindo-o aos poucos. A divisão das faixas foi pensada tendo em vista em primeiro lugar essa comodidade. Já a decisão de onde cortar, isto é, onde separar uma faixa de outra (acabaram sendo 10), obedeceu subjetivamente a alguns critérios de feitura que não sei explicar muito objetivamente não. Ofereço aqui aos leitores o segmento inicial do poema, isto é, na divisão final, aquela que ficou sendo a primeira faixa.

FIRMA IRRECONHECÍVEL (1º. segmento)
A assinatura não passa
de um aceno. Isto quer
dizer que menos do que
nomes o que vemos e nos
move é um sinal como
se fosse um senão ou
de herança ou de im-
perícia, um rabo de fo-
ra de gato escondido. U-
ma assinatura não pas-
sa do aceno de uma ca-
valgadura após assinalar
um tento tentando um ca-
valgamento que o livre
do cruel esquecimento
da prosa linear do mundo,
todo prosa sem mere-
cimento capaz de fixá-
-lo ao dorso do cavalo
convertido a si mesmo,
juramento de garbo,
galhardia, bazófia e vento.
Assinar não passa de
fixar um rabo de gato
escondido de fora na
bunda de um jumento
e acenar esperançoso de
que o ranço da eternidade
não o acometa de bolor
e sedimento acumulado,
bosta ao vento, dique fura-
do, previsão de chuva, pro-
visão de lérias que acome-
tem desde o começo
a biosfera e o firmamento,
abrigo do assassino que o a-
sinino assina assim
deixando lá ao anônimo
o relento. Impudicícia,
desídia, imprudência
ou mero descaso no manejo
do remo, o que nos move
às vezes como um mar-
ujo bêbado mais que o tom-
bo do navio é miragem,
mulher tatuada no ba-
lanço do músculo, ba-
fejo de fortuna ou de
promessa cumprida de â-
nus ao beijo circundante,
concha de molusco expro-
priada pela cunha do im-
potente. Assinar pode
ser só desejo de selar
seu forte olor de posse,
delimitar a margem de a-
certo igual a um desdenta-
do predador impraticável
ao qual só reste a coragem
e a lembrança e se conforma
com a tocaia ou a TV e a
poltrona donde se de-
leita com orcas, chitás,
águias e leoas, comoda-
mente dragão cobiçando
corças, fauno velho
ensinando xeta às ninfas,
sonhando ser caçado por
uma van cheia de lobas.
Quem assina sorri dian-
te do cano apontado para
si, sabendo a culatra por
onde o tiro vai sair,
duelo de um, miolo de
alcatra a desmanchar na
boca, açougue de alma,
ganho de massa ence-
fálica na frente de um
pelotão sanhudo de
burocratas. Auto-
grafar o vento, foto-
grafar o evento, peido
no elevador cheio do tér-
reo ao terraço, na torre sus-
pensa, na solidão do a-
partamento freqüentado
por todas as luzes do
ninguém por perto, donde
nenhum comprometimen-
to exceto a urbs rastreada
por holofotes, a assi-
natura se impõe seja aos
míopes ou aos pimpões.
Favor assinar ao lado
do xis, favor assinar
sobre a linha, é um favor
assinar reconhecendo a
dívida como quem não tem
outra sina, a quem não cabe
o que se diz, de boca a boca,
de esquina a esquina, pondo
pingos nos is, pondo pongos
nos os, até que os ossos
se esfarelem, da cartila-
gem ao tutano, da cre-
mação à cinza, do cigarro
ao rastro preto nos pulmões,
daí ao pó e ao pós e
depois de tudo assinar
a deixar um amor ras-
treável, DNA
de primata, gosma de ca-
racóis. Deixam rastro ca-
racóis no cimento, deixou
rastro na areia Anchieta,
craques deixam rastros na
camisa, assinatura é
flanar também no tempo, é a
anti-tatuagem por prin-
cípio e por fim é sempre prova
que se apaga. Vela prego
cova, assinar é inumar, res-
valar despercebido para o
limbo, deambular tomado
de delírio como os doidos
de pedra e de sarjeta, afer-
rados aos berros, aos de-
litos. Dos detritos dos nomes
sai aos gritos a assi-
natura, sai única e sai
rosa, breve ou grave e cai,
decapitada em pétalas e
cai, cagada sobre cágados
cai sobre a métrica
e o pé quebra, cai sobre
o soneto, o haicai, a écloga,
samba, rumba, hip-
hop, hurra, hippies,
beatniks, nerds, punks,
índios, colegas, cai uma
chuva, uma praga, uma
chusma, nuvem voraz
semeando desertos ali
onde depois de escrever
não mais nasce nada. Assi-
natura não serve de des-
culpa. A rubrica pode de-
cupá-la dos excessos do
prometimento, a reco-
lher rápido o rabo de fora,
mas não foge ao olho
atento, enquanto os hip-
opótamos atraves-
sam a tela à procura
de Buñuel, que cuida de
seus ursos e cordeiros,
entretanto que nubentes en-
laçam dedos para sem-
pre, não fosse a assinatura
livrá-los da eterna jura
da saúde e da doença,
da dança macabra na ceri-
mônia como recom-
pensa, os nomes para
sempre entrecosidos
no rol de roupa suja,
na lista da despensa.

(In: Firma irreconhecível. Oficina Raquel, 2009. www.oficinaraquel.com )

5 comentários:

  1. Diante do que me cabe ao olhar e escutar os ouvidos, aplausos!
    Muito bom, mestre! quero ver as outras partes. É grande hein!! rsrs

    ResponderExcluir
  2. OK, Kassio
    obrigado, que bom que você gostou.
    O abraço do
    Roberto Bozzetti

    ResponderExcluir
  3. Não pude deixar de pensar num "que" de Macunaíma nesse personagem invisível a quem se discorre o poema. Invisível, porém em volta e dentro de todos nós. Que voz, Roberto! Quanta beleza e sarcasmo junto. Que paradoxo impagável! Ao visitar seu blog, eu já previa que minha reação não poderia ser nada menos, que esse encanto! Poemas novos feitos para esse novo mundo, tão lindo e merda, que nos causa tanta inspiração! Que felicidade lê-los. Obrigada pelo infinito presente.
    Beijos, JoYce R.

    ResponderExcluir
  4. Joyce,

    que ótimo você ter gostado tanto assim como diz do blog. fico feliz, creia.
    espero que volte sempre, comente, discuta, isso é ótimo como resposta e estímulo para mim.
    beijos do
    Roberto Bozzetti

    ResponderExcluir