sábado, 28 de maio de 2011

RELÓGIOS, TERMÔMETROS E UM IDIOTA

         Não sei quando começaram a aparecer pelas ruas do Rio aqueles relojões digitais que informam muito mais a temperatura... do que a hora.  Sim, as informações são alternadas no visor, e sempre me intrigou por que a informação de temperatura fica exposta muito mais tempo aos olhos de quem passa do que a informação da hora.  Acho que nunca falei disso com ninguém, mas seja dentro de confortáveis automóveis ou socado em pé num ônibus nunca me ocorreu que a alguém seja mais útil a informação da temperatura do que a da hora.  Útil aqui, bem entendido, dentro da lógica capitalista.  A preocupação em não chegar tarde ao trabalho parece de fato comandar a tirania do relógio com sua pretensa utilidade na cabeça do morador de cidade grande.  Acho que foi Baudelaire, fantástico cultor de inutilidades, quem primeiro soube captar a dramaticidade expressa nesse objeto tão prosaico, esse “dieu sinistre, effrayant, impassible”:

                               “Tantôt sonnera l’heure où le divin Hasard,
                               Où l’auguste Vertu, ton épouse encore vierge,
                                Où le Repentir même (oh! la dernière auberge!),
                               Où tout te dira: Meurs, vieux lâche! Il est trop tard!”

                               (“Virá a hora em que o Acaso, onde quer que te aguarde,
                               Em que a augusta Virtude, esposa ainda intocada,
                               E até mesmo o Remorso (oh, a última pousada!)
                                Te dirão: “Vais morrer, velho medroso! É tarde!”
                                               - na tradução de Ivan Junqueira)

Fadados bovinamente a não chegar jamais a tocar a Virtude e fadados ainda a morrer advertidos pelo Remorso, saberemos todos que não extraímos nada ou quase nada do ouro que estava aí à nossa disposição.  Assim, a insistência em exibir mais a temperatura – lembro que uma vez eu cotejei o tempo da hora com o da temperatura e a discrepância era enorme – do que o tempo que escoa digitalmente na feia ampulheta – não existem ampulhetas feias, mas os relógios digitais do Rio são horrorosos – acaba sendo um favor  à disponibilidade de quem por acaso quiser sair da marcha do tempo medido capitalista para o flanar irresponsável.  Claro que isso pode ser assim não porque os nossos geniais administradores tenham lido Baudelaire, mas por incompetência mesmo.  Hélas, viva a incompetência!
                Minhas reminiscências têm maior gratidão ao termômetro do que ao relógio.  Moleque, adorava pretextar uma febre para não ter de ir à aula, e quando descobri que friccionando-se a pontinha mercurial do termômetro poderia obter um aumento de temperatura, passei descaradamente a adotar o expediente.  Dava certo algumas vezes, poucas, principalmente se meu pai estivesse em casa.  A mão dele na testa era infalível, desmentia qualquer temperatura falsificada em termômetro.  Dizer se alguém tinha febre ou não, se era muita ou pouca sempre foi um tiro certo para ele com sua mão na testa de quem quer que seja, nunca o vi errar. 
Sou, como quase todo mundo, tiranizado pelo relógio, objeto pelo qual nunca tive nenhuma simpatia.  Nem nunca tive por que ter algum nível de gratidão a ele.
            Quando casado, eu tinha diversos relógios espalhados pela casa, cada um marcando uma hora diferente, para irritação ou desespero da azarada consorte.  Não horários totalmente discrepantes, mas, digamos, se o da sala marcava 7 e meia, o da cabeceira marcava 7:33, o da parede do quarto 7:27, o da cozinha 7:35 e um outro qualquer, sei lá, 7:25.  Meu pretexto era que seria sempre um exercício matemático, saudável para o cérebro, tirar a média para chegar a uma conclusão e ao mesmo tempo a uma aproximação não íntima com o louvável  Meridiano de Greenwich, esse Cérbero da racionalidade capitalista.  Lógico que era pretexto, tratava-se na verdade de idiotice mesmo.
             E a prova é que até hoje isso é assim, sigo sempre sendo um idiota.  Aqui neste brejo, morando sozinho,  o padrão continua. Comprovo: olho agora para o relógio do computador: 00:01; do quarto: 23:53; da cozinha: 00:06.  Sobejamente provado, nem vou ver a hora no celular, até porque nem desconfio onde esteja.
              Já com os termômetros, a relação comprova a minha idiotia.  Não sei de algum poema eloquentemente dedicado ao termômetro, se alguém souber ou lembrar me diga.  Mas tenho um termômetro só, na sala, que marca infalivelmente 20 graus.  O que me é muito conveniente no verão, pois se ele marcasse os 38 ou 40 que às vezes acontecem nos janeiros  por aqui, eu certamente providenciaria de imediato uma viagem ao hemisfério Norte.  Na estação fria, é muito conveniente essa constância aos eventuais visitantes friorentos.  Nos 11 graus que andou fazendo por aqui essas últimas noites de fins de maio, alguma alma mais temerosa podia se assustar e suspeitar de alguma massa de ar polar e iniciar um discurso desmentindo o aquecimento global, etc.   Agora se essa alma na verdade é corpo, como disfarçavam os poetas românticos, uma temperatura mais fria é sempre um pretexto a mais para o aquecimento não diria global, mas mútuo.
              Se bem que outro dia, frio pacas, eu conferi o termômetro e ele marcava: 18 graus (devia estar uns 12, que  é quando o frio começa a me incomodar).  Acho que terei de ver algum lugar onde se consertem termômetros.
                              
                              

3 comentários:

  1. Rs, Você é uma figura!
    Sinto falta das suas aulas, mas, das provas não!rsrs
    Adorei essa coisa do termômetro!
    Beijo grande

    Paula Benício

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  2. Obrigado, Paula

    beijo grande pra ti também

    do
    Bozzetti

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