Quem fez graduação em Letras como eu nos anos 70/80, sabe bem a importância que tinha para nós o livro Vanguarda européia e Modernismo brasileiro, organizado por Gilberto Mendonça Teles, cuja primeira edição é, se não estou enganado, de 1976. No precioso livrinho editado pela Vozes, o professor da PUC-RJ compilou os principais manifestos das vanguardas históricas do começo do século XX, além daqueles que compuseram o painel do nosso Modernismo. Era para nós o primeiro contato – e para muitos, o único – com textos fundamentais para a história da arte moderna na Europa e no Brasil.
Naqueles anos, de grande expansão dos cursos de Letras no Brasil (evito a expressão “boom”, que em português sempre dá cacófato: “boom das Letras”, “boom dos cursos de Letras”, falava-se muito na época que o Brasil tava fora do “boom da literatura latino-americana", logo nós do Brasil fora desse cacófato...), estávamos às voltas também com a ditadura militar (Geisel e a seguir aquele que a gente esqueceu a pedido dele mesmo) e ainda no rescaldo das comemorações do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, que propiciaram alguns produtivos revisionismos à margem das tentativas oficiais de revisionismo ufanista. Para muitos, eu inclusive, era a oportunidade de ter contato com textos que foram – potencialmente ainda poderiam ser – tão explosivos que nos fascinavam. E o livro de Teles era ótimo, entre outras coisas por isso.
Pois tenho a impressão que o livro que Roberto Acízelo de Souza, professor titular de Literatura Brasileira da UERJ, organizou ao longo de mais de dez anos e que agora acaba de lançar pela editora Argos, de Chapecó, SC (638 p.), pode vir a ter uma importância até maior, para os atuais alunos de Letras, não apenas em nível de graduação, e aliás não apenas para os que estudam Letras mas para todos os que se interessam por literatura, do que o livro de Mendonça Teles naquela ocasião. Não digo isso querendo insinuar que este é superior àquele. Apenas atesto que a dinâmica dos estudos de Letras entre nós acabou possibilitando agora uma ambição de conhecimento de alcance mais amplo do que então. O livro de Acízelo é um volume monumental, que tem por título Uma idéia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922), e nele estão reunidos algumas dezenas de ensaios que vão de Charles Perrault a Proust, passando por Kant, Schiller, Diderot, Wordsworth, Balzac, Victor Hugo, Poe, Baudelaire, Flaubert, Unamuno, incluindo ainda os nossos Raul Pompeia, José Veríssimo, Silvio Romero, entre outros. É uma maravilhosa oportunidade de acesso a textos até então praticamente inacessíveis em sua dispersão, que a pesquisa cuidadosa de Acízelo reuniu. Oportunidade de ler, exemplos entre muitos, “Da metafísica poética, que nos dá a origem da poesia” (Vico), “O que é poesia?” (Stuart Mill), “Literatura mundial” (Marx e Engels), “O romance experimental” (Zola), “A arte da ficção” (Henry James)... E qual o assunto comum a esses ensaios? É a gênese e o desenvolvimento da idéia moderna de literatura, a partir do momento em que ela surge, desvinculada do que até então havia sido o normativismo clássico ao tratar daquelas obras que a modernidade entende como sendo “literatura”. Ou, como está nas palavras do organizador na ótima “Apresentação” do livro:
“Tomamos a palavra [moderno], nesta antologia, como atributo de certa concepção de literatura que rompe com a noção clássica das letras, bem como com suas reciclagens medievais e neoclássicas (isto é, renascentistas, barrocas e arcádicas). Nesse sentido a ideia moderna de literatura desponta já na primeira metade do século XVIII, no âmbito do iluminismo, com prelúdios datáveis de fins do século XVII, configurados na ‘Querelle des Anciens e des Modernes’, desenvolvendo-se e firmando-se no século XIX, no embalo do romantismo e seus desdobramentos – ditos realismo, naturalismo, simbolismo – , para alcançar enfim as primeiras décadas do século XX, quando então, radicalizada, parece atingir o seu termo ao suscitar as experiências das vanguardas, confluentes na noção de modernismo.”
Girando portanto em torno dos conceitos “literatura” e “moderno”, não resisto e transcrevo aqui uma passagem-chave da “Apresentação”, em sua 2ª. parte:
“Convém esclarecer, no entanto, que o qualificativo ‘moderno’, aplicado ao conceito ‘literatura’, num certo sentido implica uma redundância. É que, até em torno do século XVIII, enquanto a palavra ‘literatura’ conservou sua acepção etimológica latina, significando, pois, habilidade de ler e escrever, bem como, por extensão, cultura alcançada mediante o exercício dessa habilidade, as produções escritas não se tinham unificado sob um conceito genérico.
Usava-se assim, desde a Antiguidade, para designar os discursos escritos, os termos ‘poesia’ e ‘prosa’ e, mais tarde, a partir da Idade Média, as expressões ‘letras humanas’, ‘letras divinas’ e ‘boas letras’, bem como uma extensa nomenclatura relativa a espécies particulares de textos em verso ou prosa, como ode, idílio, égloga, epopeia, tragédia, epístola, fábula, sermão, novela etc. Não havia desse modo propriamente a literatura, mas diversos discursos heterogêneos legitimados basicamente por sua utilidade, evidente e exclusiva no caso de textos destinados a instruir ou a moralizar – por exemplo, um tratado de direito e uma biografia de santo – , putativa e associada à apreciação de uma espécie de deleite intelectual, no caso de composições como poemas e peças dramáticas.”
A seguir, a discussão igualmente bem encaminhada do conceito de “moderno” é bastante esclarecedora também para o leitor se situar em meio a uma terminologia que se não tem nada de esotérica (como muitas vezes se acusam as terminologias das disciplinas científicas, entre elas a Teoria da Literatura), justamente por ser muito “aberta”, exotérica, vira uma terra de ninguém conceitual. Mas não transcrevo aqui não. Fica o estímulo, para os que dão valor a uma bem formada biblioteca, a se adquirir esta obra de importância eloqüente que, estou convencido, veio para ficar como referência fundamental.
Houve lançamento do livro no recente Congresso Internacional da ABRALIC em Curitiba. Os exemplares enviados esgotaram-se num instante. Não consegui o meu no lançamento (o último foi vendido bem na minha frente), muito menos o autógrafo do autor, com quem fiz uma disciplina na graduação e uma no mestrado, e com quem volta e meia me encontro meio ao acaso e de quem tenho sempre uma recordação carinhosa. Depois chegaram novos exemplares, consegui comprar e, quando estava me retirando do local onde estavam os stands de venda, ainda vi Acízelo ao longe, saindo do elevador enquanto eu já estava com o pé na calçada. Como eu estava com o peso de muitos livros comprados, deixei para pegar o autógrafo em outra ocasião. Mas a leitura já está a pleno vapor. Sugiro que o leitor faça o mesmo.
Por sua sugestão comprei o ABC DA LITERATURA de Ezra Pound... ok o senhor tem crédito! assim q eu ganhar outro vale da livraria cultura vou procurar esse livro!
ResponderExcluirPaulista,
ResponderExcluiracho curioso que no meio de tantas sugestões que dei a vocês, você tenha ido direto pro livro do Pound, que era leitura fundamental nos anos 70 para quem queria desenvolver o texto poético. Li muito o Pound, assim como o outro dele que também sugeri. Que bom que fiquei com crédito
o abraço do
Bozzetti
Obrigado pelo texto e pela bela sugestão de leitura.
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