sábado, 5 de março de 2011

BLECAUTE, GENERAL DE CINCO ESTRELAS




“... o General da Banda tem até uma  história interessante... porque eu estava no Carnaval de... 49... já no final de 49, na terça-feira de Carnaval (...) mas havia uma batucada me perseguindo... era o General da Banda... me perseguia na rua,  com ritmo de macumba... ‘Chegou General da Banda ê ê... xic-gig-dig-DUM... chegou de General da Banda iê á...’ e eu digo, ‘Meu Deus do Céu, de onde é que vem essa canção, de onde é que vem essa música, de onde vem essa melodia?...’”
            Antropólogos, historiadores, aqueles que se dedicam ao estudo de tempos remotos, mitos, etc.  nunca chegaram a um  consenso sobre a origem do Carnaval, possível que nunca cheguem, “perdidos como chineses na genealogia das idéias”, para retomar a imagem oswaldiana.  O fascinante nessa fala de Blecaute, que canhestramente transcrevi acima e é possível ouvir no áudio postado,  é também o fato de ser uma fala às cegas na memória do nascimento do personagem carnavalesco que ele, Blecaute, acabou incorporando desde então: o General da Banda.
            Blecaute, “carioca de Pinhal, interior de São Paulo”, como o próprio deixa claro a seguir em sua fala, é um maravilhoso cantor.  Na minha memória afetiva a voz de Blecaute – e a de Jamelão – encarnavalizou-se para sempre: é a voz-corpo de antigos carnavais, como a de Neguinho da Beija-Flor é a voz-corpo dos atuais. Esse depoimento, com a interpretação subseqüente de “General da Banda” está no CD dedicado ao artista na série A música brasileira deste século [o XX] por seus autores e intérpretes, lançamento do SESC-São Paulo, sobre a qual voltarei a falar oportunamente.
            Se fica para uma futura postagem falar aqui da coleção e de seu grande idealizador, Fernando Faro, não posso deixar de anotar logo o seguinte: observe-se o insight de Faro diretor de TV ao iniciar o programa (pois os CDs são o registro do programa Ensaio da TV Cultura) aparentemente ao acaso, as palavras ainda meio indistintas na voz de cantor, para dizer de algo que é uma percepção também indistinta em sua memória: a idéia de que, em estado de batucada, em “ritmo de macumba”, o general da banda “o perseguia” num final de carnaval é uma imagem que sintetiza o mistério da genealogia do Carnaval, em várias dimensões, a começar pela dimensão pessoal do cantor ao desfiar a narrativa difusa de suas lembranças,  e estendendo-se para muito além.  Afinal: o que é um General da Banda, se não uma imagem ela mesma carnavalizada da hierarquia militar, que tanto susto causou aos brasileiros ao longo do século XX?  Veja-se Blecaute (grifado ainda “Blackout” em inglês “macarrônico”, a meio caminho do português hoje abrasileirado ou já dicionarizado) na foto da capa desse LP de 1959, incorporando já o personagem, comandando a desordem unida da folia.


O que é o General da Banda, o que é aquele “mourão, moirão”, que relação se estabelece entre esses farrapos de letra, vestígios de sentido, trapos de um desejo de sustentação e seu avesso (o general, que no entanto é da banda; o mourão, que catucado por baixo cai)?
            Vamos cantar!
GENERAL DA BANDA (Tancredo Silva – José Alcides – Satiro de Melo)

Chegou o general da banda ê ê
Chegou o general da banda ê á

Mourão, mourão
Vara madura que não cai
Mourão, mourão, moirão
Catuca por baixo que ele vai

(deixa amanhecer!...)
           
todas essas perguntas tem o seu quê de apenas retóricas, na medida em que também não nos interessamos muito pelas possíveis respostas, nem teríamos por quê. O “general da banda” incorporou-se para sempre ao carnaval, como o zé-pereira e o abre-alas.
            Os anos que atravessamos de ditadura militar trouxeram alguns hábitos engraçados, de que ainda restam vestígios, de se querer interpretar “politicamente” (no pior sentido do termo) tudo o que fosse presumivelmente cifrado para passar pelas malhas da censura.  Lembro que eu ria muito quando mais de uma vez ouvi que “General da banda”, com a “misteriosa” alusão, seria na verdade uma sátira cifrada ao general Mourão Filho, famoso no anedotário do golpe por ter se declarado a “vaca fardada” do Exército brasileiro...
            Mas é bom saber que Blecaute é um cantor esplêndido.  Eu não sabia com segurança antes de ouvir esse CD. Porque afinal de contas o General da Banda acabou por engolir seu criador, e Blecaute passou a ser muito automaticamente associado a essa figura quase folclórica, de um folclore urbano no pleno sentido da expressão.  Sua figura, e a minha infância funciona fortemente como impulsionadora dessa lembrança difusa que acaba por se converter em imagem fixa, ainda que não nítida, de expressivos traços negros em cabelo liso (séculos antes dos modernos processos de alisamento de cabelo) o mais das vezes envergada na farda caricata, seu nome artístico, denunciando o “racismo bonachão” brasileiro (como Jamelão, Noite Ilustrada, igualmente esplêndidos cantores, ou o mais recente,  o jogador Grafite), também obscureceram durante muitos anos o que para mim se tornou claro quando adquiri há mais ou menos um ano este CD.  Com uma dicção muito peculiar (que lembra às vezes Itamar Assumpção, séculos distante de qualquer subserviência de “negro de alma branca”), com uma voz bonita, cálida e um vibrante senso de divisão, Blecaute é cantor de primeira.  Que passeia muito à vontade por um repertório de alta qualidade.  Essas revelações preciosas fazem deste CD e de toda a série um deleite monumental e documental sobre a música feita no Brasil.
            Bom carnaval!
           

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