sexta-feira, 18 de março de 2011

FRANÇOIS VILLON, "BALADA DA GORDA MARGÔ"



François Villon: por onde começar o assunto deste poeta sem fim? “Sem fim” até literalmente, uma vez que, que se é sabido, com alguma segurança, ter nascido em 1431 (ou 1432...), nada que envolva sua biografia a partir de 1463, quando foi banido de Paris,se cerca de maior precisão de dados. Villon “desapareceu”.
Sem querer deixar de aguçar um pouco a curiosidade do leitor não-familiarizado com seu nome, direi apenas que Villon é reivindicado pelo Romantismo como o primeiro dos “poetas malditos”, antes mesmo de a expressão ter sido popularizada por Verlaine em fins do século 19.
Dadas as condições propícias, natural que no seu caso as lendas preenchessem o vazio do pouco que se sabe com segurança de sua vida. Desde já recomendo ao leitor o estudo de Sebastião Uchoa Leite que serve de introdução à edição por ele preparada e que vem indicada ao final da terceira tradução postada abaixo da “Balada”.
Optei aqui pelo seguinte: ao final, vai o texto da “Ballade de La Grosse Margot” no francês do século 16. O primeiro texto é a tradução de Décio Pignatari, a mesma que se ouve em sua voz, no CD Tempera-mental, de 1993, junto com a composição de Livio Tragtenberg e Wilson Sukorski. A seguir dou ainda duas traduções: a de Péricles Eugênio da Silva Ramos e a de Sebastião Uchoa Leite. O leitor tem oportunidade de confrontar as três, comparar as soluções encontradas por cada poeta-tradutor, estabelecer suas preferências, relacioná-las ao texto original, enfim, exercer um saudável exercício de leitura do texto poético e uma reflexão sobre a atividade da tradução.
Antes de deixar falar o poema e suas traduções, ainda algumas observações:
1. A métrica utilizada por Villon na “Ballade” foi o decassílabo; dos tradutores, Uchoa Leite e Pignatari mantiveram essa métrica; já Péricles Eugênio optou por verter seu texto em alexandrinos.
2. O esquema de distribuição das rimas do original foi seguido pelos três tradutores, mas apenas Uchoa Leite manteve (ou conseguiu manter) o acróstico da última estrofe: as letras iniciais dos versos formam “VILLONE”, que Leite traduziu “VILLONA”.
[Retificando: Houve uma desatençao grande minha aqui. Na verdade só quem segue fielmente o esquema de rimas é Péricles Eugênio; Décio Pignatari, por oposição, é quem mais se distancia do original, inclusive pelo vasto emprego de toantes, de inversões vocálicas e outros procedimentos que transgridem a regularidade de Villon; Uchoa Leite emprega parcialmente também a rima toante, mas transgride menos (esta observação não é um julgamento de valor); vale notar que na última estrofe tanto este tradutor quanto Décio modificam a distribuição de rimas da mesma forma. Em Villon: A-A-A-B-A-A-B; neles: A-A-A-B-C-C-B. Desde já peço desculpas ao leitor pela desatenção. Por favor, leitor, acesse a retificação em http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/04/consertando-lambancas-no-bordel-de-dona.html]
3. Curioso que o primeiro verso da última estrofe na tradução de Sebastião Uchoa Leite, “Vente, chova, neve – e o meu pão foi cozido” contém 11 sílabas, quebrando o esquema decassilábico. Acho difícil que tenha sido cochilo de tradutor e poeta tão hábil, mas não consigo encaixá-lo na métrica – teria sido erro de revisão? Mas nesse caso como seria o verso “consertado”? Talvez esteja a saída diante dos meus olhos, mas não a enxergo. Quem sabe algum leitor mais atento ou mais experto consiga me apontar o que não vejo?

BALADA DA GORDA MARGÔ
Se eu amo e sirvo a dona de bom grado,
Tomar-me-ão por vil, paspalho e tudo?
Ela dá conta de qualquer recado,
Por seu amor cinjo punhal e escudo.
Quando vem gente, eu me despacho, grudo
Um pichel de vinho e me viro na moita, não
Sem dar água, queijo, fruta e pão.
Digo (se pagam bem): “Nomine Figlii,
E voltem sempre às ordens do tesão,
A este bordel, que é o nosso domicílio!”

Não tarda muito, e eis-me de humor amargo,
Se sem dinheiro ela me vem pro quarto:
Não a suporto, quero vê-la morta:
Faço a pilhagem nos seus quatro trapos
E juro me pagar por conta e encargo.
Pego-a por trás e ela: “Anticristo!”
- Jura por Nosso Senhor Jesus Cristo
Que não dará. Passo a mão num porrete
E lhe gravo na estampa um bom lembrete,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.

Mas vem a paz, e ela me vem com um bruto
Peido, mais venenoso do que um bafo
De onça. Rindo, me acerta um squiafo no
Coco, diz: “Vem, filhote”, e abre o pernão.
Então, dormimos como um pau, briacos.
Margô desperta, o ventre lhe ronrona,
E monta em mim: desatrofia o anão,
De milho em milho me debulha o saco.
De tanto putear, fico na lona,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.

Tenho o pão quente – vente, chova ou neve.
Sou putanheiro e puta não faz greve:
Quem vale mais, se não se vê a mais leve
Diferença de brilho – se a tal mãe, tal filho?!
Amor ao lixo – e o lixo vem atrás;
Desprezo à honra – e a honra é mais voraz,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.

Tradução de Décio Pignatari
(in: Poesia pois é poesia. Duas cidades, 1977)



BALADA DE MARGOT, A ENCORPADA
Se eu amo a bela e a sirvo do maior bom grado,
Deveis tomar-me por pateta ou por vilão?
Tem ela bens, em si, do mais perfeito agrado.
Por seu amor, daga e broquel medo me dão;
Quando vem gente, corro e a um pote levo a mão,
Eu fujo para o vinho sem fazer rumor;
Queijo, água, pão e vinho ponho ao seu dispor.
“Ótimo!” eu digo-lhes se acaso me pagam bem;
“Voltai aqui, ao vos tomar do cio o ardor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.”

Revelo-me, contudo, em grande desagrado
Quando Margot se vem deitar sem um tostão;
De morte a odeio, não a posso ver ao lado.
Tomo-lhe a roupa, o cinto e a sobreveste, então,
E juro que isso valerá o meu quinhão.
Segura os lados. “É o Anticristo!” – ergue o clamor;
Jura pela paixão de nosso Salvador
Que não há de deixar. Eu pego um pau, porém,
E embaixo do nariz lhe escrevo, com rancor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.

Mais do que venenoso escaravelho inflado,
Depois que a paz é feita, ocorre-me um punzão.
Ela ri e o cocuruto meu vejo esmurrado.
Diz-me “Go, go”, na coxa dá-me um safanão.
Ébrios os dois, dormimos com disposição,
E ao despertar, se tem no ventre esto, calor,
Monta em mim, para que não perca o seu favor.
Sob ela gemo, tábua chata no vaivém.
Ela destrói-me todo com o lascivo humor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.

Vento, granizo, gelo, está cozido o pão.
Segue-me a dissoluta, eu sendo garanhão.
Quem vale mais? Um e outra têm afinação.
Valem-se os dois: mau gato a rato mau convém.
Sujeira vem atrás, se amamos sujidão;
À honra fugimos, foge-nos a retidão,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos
(in: Poemas de François Villon. Art Editora, 1986)


BALADA DA GORDA MARGOT
Se amo e sirvo a dama de bom grado,
Pensareis que sou vil e cabeçudo?
Ela faz tudo que é do meu agrado,
Por seu amor eu cinjo adaga e escudo.
Se vem cliente, a um trago mais graúdo
De vinho me recolho, a um canto perto.
De água, pão, fruta e queijo faço oferta.
“Bene stat” – eu digo a quem mais vaza –
“E volte sempre se embaixo lhe aperta,
Aqui neste bordel que é a nossa casa.”

Mas ocorre que as coisas ficam pretas
Quando sem prata vem dormir Margot.
Mal posso vê-la, de ódio às suas tretas.
Tomo cinto e jaqueta, e o que mais for.
E juro que me servem de penhor.
Ela, punhos nas ancas “Anticristo!”
Grita e jura por Nosso Senhor Jesus Cristo,
Que não dará. Com um pau lhe quebro as asas
E em seu nariz lhe gravo o meu escrito
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Depois vem paz e solta um peido bruto,
Venenoso qual sapo dendrobata.
Logo me acerta, rindo, o cocuruto:
“Vem vem, neném”, nas coxas me arrebata.
E dormimos qual saco de batatas.
Pela manhã quando lhe ronca o ventre,
Monta em mi, antes que se gaste dentro
Seu fruto. Gemo – e em cinza faz-se a brasa:
De tanto futucar, eu me desventro,
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Vente, chova, neve – e o meu pão foi cozido.
Igual às marafonas, sou servido.
Lá, mau gato a mau rato, bem medido –
Lado a lado – se sabe a maior rasa?
Onde lama é amor, amor é lama.
Nem quer-se a honra ou ela nos reclama
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Tradução de Sebastião Uchoa Leite
(in: François Villon/Poesia. Edusp, 2000)



BALLADE DE LA GROSSE MARGOT
Se j'ayme et sers la belle de bon hait.
M'en devez vous tenir ne vil ne sot ?
Elle a en soy des biens a fin souhait.
Pour son amour sains bouclier et passot ;
Quand viennent gens, je cours et happe un pot,
Au vin m'en voys, sans demener grand bruit ;
Je leur tends eaue, frommage, pain et fruit.
S'ilz payent bien, je leur dis “bene stat ;
Retournez cy, quand vous serez en ruit,
En ce bordeau ou tenons notre estat. "

Mais adoncques il y a grand deshait
Quand sans argent s'en vient couchier Margot ;
Veoir ne la puis, mon coeur a mort la hait.
Sa robe prends, demi-ceint et surcot,
Si luy jure qu'il tendra pour l’escot.
Par les côtés se prend “c’est Antecrist”;
Crie, et jure par la mort Jhesucrist
Que non fera. Lors empongne un esclat ;
Dessus son nez luy en fais ung escript,
En ce bordeau ou tenons notre estat..

Puis paix se fait et me fait ung gros pet,
Plus enflé qu'ung velimeux escarbot.
Riant, m'assiet son poing sur mon sommet,
" Go ! go ! " me dit, et me fiert le jambot.
Tous deux yvres, dormons comme ung sabot.
Et au resveil, quand le ventre luy bruit,
Monte sur moy, que ne gaste son fruit.
Soubz elle geins, plus qu'un aiz me fais plat,
De paillarder tout elle me destruit,
En ce bordeau ou tenons notre état.

Vente, gresle, gelle, j'ai mon pain cuit.
Ie suis paillart, la paillarde me suit.
Lequel vault mieulx ? Chascun bien s'entresuit.
L'ung l'autre vaut ; c'est à mau rat mau chat.
Ordure aimons, ordure nous assuit ;
Nous deffuyons honneur, il nous deffuit,
En ce bordeau ou tenons notre estat.

(Na mesma edição indicada imediatamente acima)

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