Saí de Niterói faz dois anos. Me assustou agora constatar que morei lá por 30 anos, mas é fato, depois de 23 anos em Copacabana. Essa simples “aritmética biográfica” me leva a uma série de associações que... deixo pra lá, não é o assunto de que quero tratar aqui.
Bom, antes de vir para este brejo onde hoje estou, morava desde 96 em Santa Rosa, em quatro endereços diferentes, numa área limítrofe com Icaraí, o que sempre me levava a perguntar na hora de preencher CEP, se eu moraria num ou noutro bairro. Aos poucos no entanto eu fui aprendendo a contragosto que morava no Jardim Icaraí. A contragosto por quê? Porque sempre soubera – ou achava que sabia – que o tal Jardim se restringiria a uns poucos quarteirões retirados, num cantinho que vai encostar lá pros lados do Vital Brasil. Era o que me diziam moradores mais antigos, familiarizados com essas sutilezas geográficas, em geral fruto de um convívio amoroso com a história do lugar onde moram.
Mas não! Fui constatando aos poucos, surpreso, que, sem nunca ter ido morar no Jardim Icaraí, nos meus últimos 4 ou 5 anos por lá morei justo... no Jardim Icaraí! É porque a especulação imobiliária que assola a antiga Cidade Sorriso acha que “Jardim Icaraí” tem uma nobreza no nome, entendem? “Acha”, não, melhor dizendo, sabe. A publicidade sabe captar essas ânsias de ascensão social naqueles que vêem sua situação econômica melhorar e passam a ter como objeto de desejo atingir outro patamar no seu dia-a-dia. “Sempre foi assim”, digamos pra simplificar. A conferir no poema de Oswald de Andrade dos anos 20, rindo dos novos ricos paulistanos, dentro do “espírito futurista”, impregnando de amor-humor sua relação com os “modern times”, mesmo que (ou justo por conta disso) a cavaleiro de sua condição de milionário que viria a dilapidar a fortuna da família tradicional. No poema abaixo temos a inconfundível voz paródica oswaldiana dialogando com a mentalidade jeca-chique dos novos ricos, tão bem capitalizada pela publicidade:
IDEAL BANDEIRANTE
Tome este automóvel
E vá ver o Jardim New-Garden
Depois volte à Rua da Boa Vista
Compre o seu lote
Registe a escritura
Boa firme e valiosa
E more nesse bairro romântico
Equivalente ao célebre
Bois de Boulogne
Prestações mensais
Sem juros
Oswald sabia que pra essa mentalidade todo jardim é new-garden, romântico buá de bulonhe.
Vai daí que assim, quase 100 anos depois, se eu nunca morei no tal Jardim, ele veio tentar morar em mim, por artes da indústria imobiliária. Indústria mobiliária que tem notórios laços com a trupe instalada no poder em Niterói há não sei quantos anos, devastando aquilo lá já há muitos mandatos. Saí de Niterói, portanto, a um passo de morar no Jardim Icaraí. Uma das vezes em que por lá voltei, ao circular pela área que virou Icaraí New-Garden, fiz mais ou menos de cabeça o inventário das casas que por ali havia e que não existem mais. Fazendo contas de cabeça, me toquei um tanto atordoado que desapareceram, num espaço de alguns poucos quarteirões, umas 30 casas, substituídas, claro, por edifícios de 10 pavimentos em média. Isso só circulando nas ruas onde morei desde 96. Prossigo as contas: se cada edifício abriga, calculando por baixo, 20 famílias (na estimativa modesta de 2 aps. por andar), isso quer dizer que saíram 30 famílias e entraram... 600! As ruas do New-Garden são estreitas, a rede de esgotos para atender o número de moradores multiplicado por 20 (por baixo) é a mesma... bom, o que daí decorre está espetacularmente bem exemplificado naquela explosão que aconteceu na estação de esgotos da cidade em abril, inundando de merda e causando uma destruição inimaginável à área perto do Mercado São Pedro (que, aliás, continua sendo a melhor coisa de Niterói – o mercado, não a área).
Sem exagero, sem vontade de fazer “literatura”, sem expressionismo chulé: bandas de música, fanfarras, faixas, gambiarras, bandeiras e guirlandas, fogos de artifício e pobres, muitos pobres muito pobres de perucas multicoloridas – “e quase brancos quase pretos de tão pobres” – foi o que vi de uma das últimas vezes que circulei por onde morei (um quadrilátero formado pela Lopes Trovão, a Otavio Kelly, a Av. Sete e a Rua Santa Rosa). E vi em três esquinas diferentes, em stands de vendas abarrotados (de novo sem hipérbole) das incorporadoras, os lançamentos espalhafatosos de uns “Palazzo de Milano”, “Quartier Versailles” e assemelhados... ou seja, o processo de destruição urbana e todas as suas conseqüências (pet-shops, academias pra exercitar narciso, restaurantezinhos metidos a finos, barzinhos pra ocupar as calçadas com cadeiras e bêbados chatos etc) está longe de se dar por esgotado, vai render (em mais de um sentido) ainda um bocado.
Outro dia li um texto no ótimo blog do poeta Oswaldo Martins e posto aqui uns trechos, não só porque concordo integralmente com ele mas também porque ilustram perfeitamente o que eu estou querendo dizer:
“Quando alguém, visando a beleza de um produto, a ele dá um nome de um pintor, de um poeta, de um músico, falseia a relação do produto com o público e mostra a destruição que a obra do artista sofre pela exposição midiática. A emulação grosseira pressupõe a falta de leitura daqueles que os mestres da publicidade pensam ser o público alvo do produto oferecido.
(...)
Quando Baudelaire disse que o poeta iria ao mercado vender a alma, como as putas vendem o corpo, não disse ou justificou a mixórdia do mercado – senão que dele fez lugar de preferência para passear a inaptidão do sujeito, sua radical redução à aberração denunciatória dos novos tempos recém-inaugurados.
Quando Caetano entra na justiça para proibir que um investimento qualquer roube-lhe a tropicália para nela fazer morar mal-pensantes que pensam comprar a modernidade e o paraíso, merece, novamente, nossa absoluta aprovação.” (cliquem aí http://osmarti.blogspot.com/2011/10/picasso.html)Citei lá em cima o antropófago. Já Oswaldo Martins passa por Baudelaire e fecha com Caetano, perfazendo aqui no todo deste texto um percurso por três grandes artistas e grandes provocadores (artistas provocadores) da modernidade (palavra, aliás, que foi cunhada pelo francês). Enxergar essa dimensão do urbano como horror e fascínio (Friedrich), como aquilo que a poesia não teria mais como nem porque se furtar a tomar como tema e como problema (Candido), essa primeira “sacada”, por assim dizer, quem a teve foi, parece mesmo, Baudelaire. Oswald soube rir, cínico e conciso, dessa avalanche espreitante de filisteísmo. Assim como Luís Aranha, este com boa dose de galhofa e de jorro poético, parece que entre nós foram eles que mais se aproximaram do “futurismo” de Apollinaire, Cendrars e Palazzeschi, o entusiasmo dos novos tempos numa das mãos, a derrisão na outra. Mário e Bandeira, para ficar só na primeira hora dos anos 20, também cantaram a cidade moderna, sendo que neles parece haver sempre um travo de indefinível melancolia pela perda de uma paisagem anterior – e neles muito interiorizada. Foi bom para mim me retirar aqui para este brejo e poder meditar e amar mais detida e distanciadamente essa poesia. Ainda que para me deparar com minha própria raiva surda e impotente diante desse processo.
Da última vez que estive em Niterói, estava no campus da UFF no Gragoatá quando uma colega comentou que “aqueles apartamentos ali” estavam sendo vendidos a 300, 400 mil cada um. Olhei para ver quais apartamentos e constatei que se tratava simplesmente de novos prédios em fase já final de construção onde era o casario na Avenida Litorânea, no trecho que medeia entre São Domingos e o Forte. Meio desconcertado perguntei à amiga se era aquilo mesmo, se eles estavam ali no lugar daquelas casas... diante da resposta afirmativa, não lembrei do “diabo leve quem pôs bonita a minha terra!” do Bandeira, não. Nem fiquei pensando com que nomes eles teriam sido batizados para ganharem seu verniz de obras de arte. Tive mesmo foi vontade de nunca mais voltar a Niterói.