LÁPIDE PARA UM POETA OFICIAL
a morte enfim torceu
o pescoço à eloqüência
ANATOMIA DO MONÓLOGO
ser ou não ser?
er ou não er?
r ou não r?
ou não?
onã?
LISBOA: AVENTURAS
tomei um expresso
cheguei de foguete
subi num bonde
desci de um elétrico
pedi um cafezinho
serviram-me uma bica
quis comprar meias
só vendiam peúgas
fui dar à descarga
disparei um autoclisma
gritei “ó cara!”
responderam-me “ó pá!”
positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá
(20 de outubro, dia do poeta)
OFERENDAS COM AVISO
vamos pôr uma bengala de cego no túmulo de Homero
para que ele possa vagar em segurança pelas trevas do hades
vamos pôr um sapato de chumbo no túmulo de Dante
para que ele possa ascender mais depressa ao encontro de beatriz
vamos pôr uma corda de enforcado no túmulo de villon
para que ele possa balançar-se em boa companhia
vamos pôr um olho de vidro no túmulo de camões
para que ele possa assistir à volta d’el-rei d. sebastião
vamos pôr um pedaço de carniça no túmulo de baudelaire
para que ele possa sentir o cheiro da vida aqui fora
vamos pôr um silenciador no túmulo de maiakovski
para que o seu revólver não perturbe os planos qüinqüenais
claro que em cada túmulo junto com as oferendas
poremos também o aviso de praxe FIQUEM TODOS ONDE ESTÃO
A UM COLEGA DE OFÍCIO
você não gosta do que eu escrevo
eu até gosto do que você escreve
talvez eu não seja tão exigente quanto você
TEOLOGIA
A minhoca cavoca que cavoca
Ouvira falar da grande luz, o Sol.
Mas quando põe a cabeça de fora
A Mão a segura e a enfia no anzol.
Já postei muito José Paulo Paes (1926-1998) aqui no Firma, mas até então apenas como tradutor. Me toco de que está mais do que na hora de postar o poeta. Soberbo tradutor, soberbo poeta. Se aquele viajava em tempos e lugares os mais variados, atestando o arco de seus interesses e a extrema competência na difícil empresa da tradução (traduziu dos antigos gregos e latinos até os gregos modernos, passando ainda por diversas outras línguas e tradições, que incluíam a prosa de Sterne e Conrad, a poesia de Aretino, Blake, Éluard, Rimbaud, Whitman, Goethe, Apollinaire e muitos outros), o voo do poeta talvez engane os menos atentos, dada a sua preferência pela agilidade do humor moleque, pela concisão epigramática e pelo experimentalismo de ar frequentemente (auto)zombeteiro. Traços que dão a fisionomia própria de sua poesia, marcada frequentemente pelo diálogo com aquilo que em literatura é considerado grande ou “respeitável”, ao mesmo tempo em que torna cômicos justamente muitos desses diálogos através do contraste com o prosaico das situações: assim, como se lê acima, o lema musical-simbolista de Verlaine vira legenda para zombar post-mortem da retórica sempre tola dos “poetas oficiais”; também Hamlet e o mito bíblico de Onã aliam-se em sua estratégica – e ferina? – apropriação do experimentalismo concretista. Em aulas introdutórias de poesia costumo provocar os alunos valendo-me do poema “Grafito”, em que a “subjetividade” do “mundo interior” do eu-poético (clichê que desde o Romantismo é difícil pôr em seus devidos termos para os que se aproximam muito ingenuamente da experiência de leitor de poesia) se revela na verdade uma engenhosa obra-prima a partir de um discurso falsamente grave que glosa um grafito de porta de banheiro. Vale a pena falar rapidamente dessa experiência: pouquíssimos são aqueles que se tocam da brincadeira feita pelo poeta ao fazer a leitura; os que desconfiam sentem certo desconforto ante uma aula que, afinal, por se tratar de Teoria da Literatura, e de poesia, deve ser algo “sério”, onde tais molecagens não caberiam.
Pois entre os não poucos méritos deste poeta está, a meu ver, ter dado um banho de humor na seriedade às vezes excessiva dos “highbrows” das nossas neo-vanguardas dos anos 50/60. Se a obra dos concretistas é esplêndida, a verdade é que ela às vezes se ressente um tanto da falta de humor: certo, a poesia de Décio Pignatari é um pouco mais arejada sob esse aspecto que a dos Campos, pois nestes o humor se faz ferinamente presente mais nas intervenções polêmicas das entrevistas e das respostas a algum desafeto do que propriamente no trabalho poético. Em seu livro de 1967, Anatomias, Paes se aproxima poeticamente do grupo, mas sua aproximação vem banhada – e isso ficará para sempre em sua poesia – de “amor humor”, na melhor tradição oswaldiana. José Paulo Paes polemiza sim, mas sua polêmica tem um tanto de surdina ou negaceio. Talvez por não ter se vinculado programaticamente à Poesia Concreta, seu programa pessoal, se assim se pode dizer com perdão do humor fácil deste escriba, seria mais um “programa humorístico” com o acréscimo de uma dose de auto-ironia. Mas sem nada de tolo ou bem-comportado (é simples conjectura, mas seria essa diferença que estaria por trás de “A um colega de ofício”?).
Voltando ao tradutor, me impressiona muito a seguinte passagem de Rodrigo Naves (que foi seu amigo muito próximo) no belo texto “Um homem como outro qualquer: José Paulo Paes”, que serve de apresentação à Poesia completa, de Paes:
“Ele costumava dizer, e não era uma boutade, que traduzia porque não sabia ler em outra língua. Quem nunca experimentou esse dilema não tem uma noção forte do que seja crítica, tradução, análise ou interpretação - porque é sempre de traduções que se trata nessas atividades. Zé Paulo nunca aprendeu nenhuma língua de forma sistemática. Nenhuma. De algumas delas, como o holandês, se aproximou por meios prosaicos: aquelas coleções de discos que prometiam um acesso indolor a línguas de pouca circulação. E no entanto chegou a resultados formidáveis. Enfim, desconfio que ele queria provar que qualquer um, desde que movido por um encanto sem limite para com um objeto cultural, poderia chegar a relacionar-se com ele de forma amorosa e dignificante.”
Este poeta, até pela sua formação, que nada tem de “especialista”, técnico em química que foi, profissão que exerceu até ir trabalhar como editor na Editora Cultrix, põe em evidência o que Naves diz também acertadamente tanto sobre sua poesia quanto sobre os magníficos textos de crítica que José Paulo deixou (reunidos postumamente em Armazém literário). Neles, Naves realça o fato de Paes “priorizar determinados aspectos do trabalho de escritor: clareza, correção, preocupação com o leitor, adequação aos meios em que escrevia e um quase desprezo a qualquer ostentação de brilhantismo ou erudição. De certo modo – principalmente como crítico literário – Zé Paulo escrevia para pessoas que, como ele, se relacionavam com a cultura de maneira não profissional, e que nem por isso mantinham com a produção artística um vinculo superficial.” Essa dimensão, que tomei a liberdade de grifar no texto de Naves, é que me parece a tarefa mais urgente para os que trabalham profissionalmente na cultura, seja como criadores, seja nas universidades, nas editoras, na mídia, nas instituições de pesquisa: fazer com que a cultura seja não para especialistas, mas para a sociedade como um todo, como maneira de dar à produção simbólica da sociedade uma dimensão digna, que, cá entre nós, no Brasil, sempre parece ter sido relegada a segundo ou terceiro plano. As questões aí implicadas são inúmeras, difíceis de abordar aqui, na medida mesma em que difíceis de abordar em qualquer instância com a profundidade adequada. Mas para não sair pela tangente: é comum, quando essa questão é levantada, que os produtores de cultura acabem entrando em discussões mais autofágicas do que iluministas, por assim dizer: firmam posição na defesa de seus postos “conquistados” (?), acabam falando apenas entre si – muitas vezes apenas para o embate – e se resguardam em seu jargão cada vez mais intrincado. De imediato vem o pior efeito: o jargão perde sua razão de ser, acirra-se, e até aquilo que nem jargão era acaba sendo lançado na vala comum da “conversação estéril e masturbatória” com que geralmente as discussões que poderiam ser produtivas são identificadas pela ignorância e o desinteresse generalizado das pessoas sobre o que de fato interessa. Assim é que, para dar o melhor exemplo, muitas vezes fico pensando em como um autor tão brilhante, profundo e claro como Antonio Candido praticamente não é conhecido fora da área dos especialistas em Letras (uma vez, nos anos 80, conversando com um amigo, já morto, jornalista de razoável nomeada no campo da discussão cultural, fiquei atônito quando ele me disse que nunca tinha sequer ouvido falar em Candido). Ainda que minhas palavras aqui possam exalar um nefasto pessimismo, penso que José Paulo Paes, pelas qualidades ressaltadas acima por Naves, honra a tradição do melhor, isto é, a tradição de Candido. Que um e outro continuem praticamente ignorados fora dos estudos literários apenas indica a calamitosa situação em que parece que nos encontramos no Brasil quanto aos assuntos que em princípio deveriam interessar a todos os que participam de uma sociedade democrática que se queira minimamente esclarecida.
O que me tocou particularmente no que José Paulo Paes deixou foi sobretudo a descoberta de dois impressionantes poetas: o maravilhosamente obsceno e herético renascentista italiano Pietro Aretino (neste blog: http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/01/ah-um-soneto-estrambotico-e-luxurioso.html) e o grego moderno, do começo do século XX, Konstantinos Kaváfis (neste blog: http://robertobozzetti.blogspot.com/2010/12/dois-poemas-de-kavafis.html e http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/10/konstantinos-kavafis.html) : os dois, uma vez lidos, se incorporaram para sempre ao meu “fatal lado esquerdo”. Mas tudo em José Paulo Paes é muito bom, muito estimulante. Assim também os livros de poesia dedicados a crianças, que começou a escrever ainda nos anos 80. Dentre eles, É o bicho, o primeiro, alimentou a leitura de meus filhos em seus primeiros anos de vida.
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