quinta-feira, 31 de março de 2011

BETHÂNIA (E CAETANO), CAETANO E BETHÂNIA VELOSO

Entendo e em princípio sou solidário com quem se incomoda com o aporte de verbas públicas em projetos meramente pessoais, voltados para o próprio umbigo, bem como com o favorecimento injustificável de figurões públicos preocupados em lançar, por exemplo, CDs que apenas dêem continuidade a uma carreira no show-bizz a despeito de ter um público conquistado que lhes garanta em princípio a boa vendagem do produto lançado. OK,esse tipo de preocupação é legítima, poder-se-ia mesmo dizer que é um dever de cidadania, justificando-se a indignação e, se for o caso, a denúncia  e tal.
            Quem acha que Maria Bethânia e o caso de seu blog se encaixam no modelo descrito acima, bem... aí comete,  no mínimo – em caso de boa-fé – um erro de avaliação e/ou  de informação. Como as pessoas que se ocupam de tais questões não são muitas neste país de rala cidadania, não me parece muito inteligente pensar nesse caso em falta de informação. Na maioria dos casos, trata-se de ódio e ressentimento mesmo.
            Quando o assunto do “O mundo precisa de poesia” (o tal “blog da Bethânia”) pipocou na imprensa e na net, fiquei de saída a favor do projeto, sem conhecê-lo e sem conhecer os pormenores do caso. Quero dizer, fui parcial de saída mesmo. Isso porque simplesmente envolvia o nome de Bethânia e de Hermano Vianna, duas figuras públicas que na minha avaliação pessoal – conheço Bethânia, como “todo Brasil”, de shows e discos, Hermano conheço de textos e de documentários produzidos para a TV, não conheço pessoalmente nenhum dos dois – merecem crédito. E também assim que soube que a notícia partira da Folha de S.Paulo isso só serviu para aumentar minha confiança na lisura das pessoas envolvidas, já que a Folha é – como toda a imprensa, aliás, em grau menor ou maior – permanentemente depositária da minha desconfiança. Simples assim.  E simples assim dei meu pitaco no facebook, acrescentando que procuraria me informar mais sobre o imbróglio  e que se fosse o caso reveria minha avaliação.  Me informei o mais que consegui e continuei pensando a mesma coisa,  apesar de reconhecer que o bom de essa barulheira ter vindo à tona é que alguns pontos que merecem discussão na política cultural de Estado foram levantados.  Minha amiga Verônica Couto inclusive me linkou pelo facebook o que considero ser uma equilibrada e percuciente abordagem dos dessas questões, apesar de  algumas discordâncias pontuais e de alguns argumentos que no meu entendimento não ficaram muito claros. . Posto aqui o link para o blog do Doutor Caneta, recomendando sua atenta leitura: http://doutorcaneta.blogspot.com/2011/03/maria-bethania-e-os-consagrados-pelo.html.  A defesa de uma meritrocracia democrática para nomes ainda não sedimentados no cenário cultural me parece ser o maior acerto de seu texto – em tempo, o blog é assinado por “uma espécie de entidade psicológica que habita o cérebro de um cara chamado Newton Cannito”.  E eu não conheço pessoalmente nenhum dos dois.
            Quanto aos ódios, rancores, ressentimentos... bem há muito a ser dito sobre isso.  Em certa medida, o Cannito no link aí acima enquadra exemplarmente bem a questão em termos objetivos, e de uma objetividade de quem pelo visto já lidou bem de perto com essas questões, uma vez que já foi Secretário de Audiovisual do MinC, conforme achei na web.
            Mas há mesmo outras questões não menos objetivas talvez, mas mais difíceis de precisar objetivamente,  como fatores que ajudariam a entender  a reação violenta ao projeto de Hermano (é mais exato chamá-lo assim do que “blog da Bethânia”, pelo simples fato de que esta última expressão já se contaminou dos tais rancores). Comentarei brevemente algumas delas. Alinho num primeiro bloco os elementos de mais longa duração, que expressariam um ressentimento de mais largo fôlego:
1.    A conexão imediata Bethânia-Caetano, e, como um prolongamento dessa conexão, o que é extensivo às propostas do Tropicalismo, naquilo em que de muito fundo o barulho tropicalista foi mexer e convulsionar: o projeto nacional-popular das esquerdas nos anos 60. As propostas nacionalistas identificadas a essa corrente estão ainda aí, muitos de seus personagens são figuras atuantes na cena pública brasileira – em geral da mesma faixa etária de Caetano ou um pouco mais velhos – e não absorveram os golpes desfechados pelas propostas tropicalistas (o “debate interrompido em 1968”, na formulação de Wisnik)  que, diga-se de passagem, parecem ser ainda o motor que impulsiona boa parte da atuação dos “baianos”. Wisnik aliás  chamou a atenção oportunamente para o fato de que nos projetos de Emir Sader para a Casa de Rui Barbosa, com o fito  de transformá-la num fórum de discussões politizadas, o sociólogo, ao  enfocar a necessidade de reflexão sobre o Brasil nos anos 50-60,  listou “CPC, Bossa Nova, Iseb, teatro, Darcy Ribeiro”, deixando de fora justo o tropicalismo. Sintomático ainda que o mesmo Sader, perguntado sobre as declarações de Caetano,  que em sua coluna semanal no Globo, dissera ver com desconfiança a nomeação de Sader para a Casa de Rui,  declarou em entrevista que Caetano não tinha nenhuma influência, “a não ser entre seus amigos de praia”.  Sem dúvida, muito mais que um erro de avaliação, é o tipo de declaração sintomática desse ressentimento.  Curioso e tristemente compreensível é que de uma conexão Bethânia-Caetano se pode passar nesse nível a uma conexão que envolve os “baianos”, como se diz, carregando no pejorativo.  Por mais que se tenham desdobrado e se transformado em vários níveis, como parece indicar a recente discordância pública entre Caetano e Gil quanto à questão da legislação sobre direitos autorais (que no entanto não teve os desdobramentos de “ultimate fighting’ que a imprensa e muita gente esperava), o fato é que essa conexão ainda se dá automaticamente para que os representantes do nacional-popular (alguns deles, aliás, bons artistas) tenham a quem ou a quê demonizar. Curioso também que em sua trajetória individual como artista, a própria Bethânia muitas vezes se aproximou mais das propostas do nacional-popular do que daquelas de fundo tropicalista. Não custa lembrar (para os mais novos): Bethânia não participou do movimento.
2.    A conexão Bethânia-Caetano é feita, sempre em tom recriminatório, ainda por setores se não exatamente identificados ao nacional-popular (que constituem, quero crer, a maior parte da “intelectualidade – soi disant –  orgânica” petista), pode ser definida como de corte mais, digamos, adorniano, resistente “por definição”,  ao que não é apocalíptico na consideração da cultura midiática.
3.    Se quisermos alinhar os setores mais arraigadamente presos não à esquerda mas à direita – uso os termos para uma fluidez mínima do texto – aí seria preciso considerar ainda tudo o que de reacionário e de conservador se abriga,  disfarçadamente ou não, sob o rótulo, figuras francamente reacionárias ou apenas conservadoras (novos e velhos), que não se conformam – e aí o ressentimento é até mais antigo – de ver a praia de seu lazer (não apenas cultural) invadida há tanto tempo pelos doces bárbaros.
Mas penso que é preciso considerar  ainda um outro bloco de acusações, movidas por instâncias mais superficiais mas também mais barulhentas,  porque são a maioria do que rola na web. Ela se faz presente em blogs, no youtube, no facebook, batendo em geral na tecla do “por que tem dinheiro pra Bethânia mas não tem pra mim?”  É uma forma “selvagem” de exercer a cidadania em rede, na qual o ressentimento não é no entanto menor, assumindo mesmo formas assustadoramente grosseiras e mal-humoradas. Aqui me incomodam particularmente os poetas da rede, que rarissimamente freqüento, já que nunca tive por hábito freqüentá-los sequer pessoalmente.  Lembro de uma entrevista do García Marquez dos anos 70 (no extinto Versus ou mesmo no –ex), que li muito jovem,  e que me impressionou então em especial quando ele dizia que para as revistas de literatura de colaboração aberta aos leitores ou mesmo para editores que se propunham publicar novos autores não havia nada pior do que os poetas.  “Os poetas formam um verdadeiro esquadrão da morte”, lembro bem da expressão empregada, porque a recusa em publicar um poema de um autor novo repercutia em geral como “censura”, “bloqueio a novos valores”, “esclerose acadêmica” e a grita era geral e incessante.  Lembro ainda das palavras mais doces de Bandeira numa crônica, ao receber em casa adolescentes que lhes levaram versos: “Aos quinze anos todo mundo é poeta”.  Pois bem, acho que esse infantilismo ou adolescência se prolonga sobremaneira hoje – ou terá sido sempre assim? Seja como for, o fato de o projeto envolver poesia não me parece ser de pequena importância nessa grita geral.  É cômico ver poetas que de seus blogs ou mesmo das redes de relacionamento reclamam da “falta de oportunidades”, da “escassez de leitores (entenda-se: verbas)” para seus projetos pessoais e todos,  em geral geniais, se arrogando mais competência do que Bethânia em assuntos de poesia.  É de se pensar no número de vídeos amadores – é só olhar, de longe,  a grande maioria do que são os “recitais ou saraus de poesia”  abundantes por aí – que inundariam a rede a cargo desses “arrombadores de cânone”, que só brigam com o cânone porque ninguém reconhece que eles deveriam estar lá. Essa turma anda em geral assanhadíssima “brincando de Arnaldo Antunes”, como diz uma amiga espantada com o deslumbramento que os acomete.
Pois bem: no que toca a um tom mais pessoal nesta postagem aqui, devo dizer que não resta a menor dúvida de que, pelo projeto, “O mundo precisa de poesia” será – ou seria? – um projeto do mais alto nível de realização.  Não sei que critérios norteariam a escolha de poetas e poemas lidos, mas sei que o projeto é enobrecedor da atividade poética – criadora – como um todo, voltado para disponibilização em escolas da rede pública e centros comunitários.  Pelo que andei pesquisando também, os preços estão dentro do que seria uma “realidade de mercado” (na qual vivemos, coisa que aliás o tropicalismo deixou claro, o que faz parte do que não foi digerido): Maria Bethânia tem cacife sim, dentro dessa realidade (sobre as questões porventura incômodas quanto a isso, volto a remeter o leitor ao link lá de cima), para pedir o que pede.  Dentre os mais “selvagens” a impressão que se tem é que não se conhece praticamente nada do que foi a trajetória de Bethânia – e de Caetano – ao longo de seus mais de quarenta anos de estrada, o quanto do que existe hoje de fértil, produtivo, esclarecedor e problematizador, rico (em mais de um sentido) no show-bizz e na cultura que se faz no Brasil se deve a eles. Não que isso os ponha acima do bem e do mal, longe disso, mesmo porque – é convicção minha – eles fizeram muito mais bem do que mal a todos nós.  Assim, em tom mais pessoal ainda digo que nem sempre gosto de Bethânia dizendo poesia.  Ainda adolescente a vi por mais de uma vez nas primeiras filas do Teatro da Praia no show “Rosa dos Ventos” dizendo o Menino Jesus de Alberto Caeiro, poema que eu já tinha lido e que me incentivou a ler mais e mais essa obra espantosa.  Mas às vezes gosto de como ela diz os textos, às vezes não.  E isso não tem a menor importância, claro.
       E terá alguma importância eu estar aqui escrevendo tudo isso?  Engraçado é que a pergunta acaba pintando mesmo.  Ora, qualquer coisa que eu escreva aqui tem importância para mim e para o círculo pequeno dos meus leitores.  Não move o mundo.  Pelos meus seguidores e em conversas fora daqui com parte deles, sei que tenho um círculo de leitores fiéis, em geral as pessoas que gostam de conviver comigo extra-blog, incluindo aí alunos e ex-alunos, convívio este que ficou mais escasso desde que vim morar aqui neste brejo.  Mas mesmo estes leitores fiéis são minoria, entre seguidores e não-seguidores.  Aliás, entre os seguidores, em número que considero surpreendentemente alto, há uns dez, ou talvez mais, que não conheço pessoalmente – ou apenas talvez não consiga identificar.  Devem ter dado uma pesquisada no Google, toparam com algum marcador que tinha a ver com o que buscavam, leram, gostaram do que leram e devem me freqüentar (me espanta, e já escrevi sobre isso aqui, que eu tenha leitores na Croácia, na Dinamarca, em Cingapore, na Austrália...), o que me deixa muito feliz.  É para manter um tipo de conversa que se tem um blog, dentre outras razões. Então posto aqui este texto como posto poemas meus e alheios, como escrevo sobre assuntos que vão da “comida explícita” a Baudelaire e Auden, passando por Blecaute, Pelé e Jorge Mautner.  Essa liberdade “de pauta”, por assim dizer,  em boa medida, aliás, se deve no Brasil ao trânsito – que chegou mesmo à universidade, e isto aqui não é e não quer ser um blog acadêmico! – arduamente aberto pelos irmãos Veloso.  

domingo, 27 de março de 2011

ANTÔNIO BIÁ

Que esperam vocês de mim?
que minta como se não?
que ponha lérias em férias?
que dê letra à maluquices
inventadas por vocês?
um jeito pra que dessa doideira
a vila de merda e poeira
ganhe forma vitalícia?
só se morta fosse em mim
a minha chama interstícia
se a vida e sua folgança
não fossem minha sustança
contrária a toda medida
e o piriri poranduba
que me acomete em cometas
e jorros de jatos forros
tal peidos a propulsão
se aquietasse e eu deixasse
de viver a mesma febre
que a todos nos faz a delícia
e assinasse coletivo
nomes incompatíveis
sobrenomes e pronomes
sujeitos cabriocários
predicativos suplícios

como esperar que eu diga,
que eu diga, não – que eu escreva
o que mal na folha fria
perde a picada da abelha?
a patagônica ciência
para sempre derretida
e o boi de alpercatas
quem o acreditaria?
a saparia agônica
tresvariando no mundéu
o cortejo pelo céu
de pokemons e urutaus
as seriemas no rumo
do fumo das jararacas
como negar a existência?
só deixar a evidência
desse povo anfíbio e pau
desimportante e cacete
analfabeto e sinistro
sem pingo sem asterisco
movido a cana e curau?

povo de deus largado
tentando parar o tempo
em desnoção desusada
narrar sério e esperançoso
contar em canto numeroso
o desinfinito inglório
a seca da vida seca
samicas de caganeira
a noite toda bebendo
e não rabiscar, devendo
apenas o que me dá na telha?

nem que a piroca de um padre
desse à luz uma noviça
nem que chova a noite toda
até afogar o mundo
xota em fúria apocalípcia
ou em bandeira desfraldada
uma sardinha aberta
de pêlo preto arrodeada
represente a derrocada
da ordem e da polícia
de gaudério matador
cuja delícia é ver sangue
promotor de holocausto
javélico e infausticida

sou homem de beira-rio
de terceira margem infixa
cada um por si e deus contra
o fogo devore tudo
epístolas e apostilas
não me sigam não me digam
mendigos dos restolhos
retalhados da eternidade
me deixem quieto irrequieto
a água devore o fogo
na pátria do desperdício.

            Em Firma irreconhecível (Oficina Raquel, 1009) publiquei o poema acima, uma homenagem ao protagonista de Narradores de javé, filme de Eliane Caffé, de 2003.  Vai também aqui como uma homenagem ao fantástico ator José Dumont, que vive o personagem.

sexta-feira, 25 de março de 2011

MILLÔR FERNANDES: CINCO POEMAS

                                                 colhida em http://cariricaturas.blogspot.com


ANTE PROJETO

No princípio era o caos
ou é agora?
Brincadeira tem hora!
Eu dou meu testemunho:
Isso que está aí
É apenas um rascunho.



POEMINHA SEM MUITA PRESSA

Num pisar que mal se ouve
Num passar que mal se vê
Tictactictactictactictac
Um dia leva você



POEMINHA SOLIDÁRIO – 1979

Ladrão, mentiroso, tarado,
Fanático, covarde, traidor.
Mas do nosso lado.



POEMINHA DUBITATIVO

Não, eu não tenho medo do fim,
                   Mas,
E se o mundo terminar antes de mim?



NOVIDADE, SÓ A PRIMEIRA
(À Vanguarda que se crê Vanguarda)

Garanto:
o primeiro poeta que rimou
foi um espanto!
Mais, muito mais,
Meu irmão,
Do que o primeiro
Que não.

                                               In: Millôr Fernandes: poemas. L&PM, 1984

quarta-feira, 23 de março de 2011

AH, UM SONETO... DE CAMILO PESSANHA

Foi um dia de inúteis agonias.
Dia de sol, inundado de sol!...
Fulgiam nuas as espáduas frias...
Dia de sol, inundado de sol!...

Foi um dia de falsas alegrias.
Dália  a esfolhar-se – o seu mole sorriso...
Voltavam os ranchos das romarias.
Dália a esfolhar-se – o seu mole sorriso...

Dia impressível mais que os outros dias.
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!...
Difuso de teoremas, de teorias...

O dia fútil mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!...

                                               (In: Clepsidra. Editora Princípio, 1989)

sábado, 19 de março de 2011

MAIS FRANÇOIS VILLON NO BLOG DE ANTONIO CÍCERO

       Caro leitor, Antonio Cícero também postou hoje em seu blog um poema de Villon, o célebre "Balada das damas dos tempos idos", em tradução de Modesto de Abreu. Confiram no link a seguir.

sexta-feira, 18 de março de 2011

FRANÇOIS VILLON, "BALADA DA GORDA MARGÔ"



François Villon: por onde começar o assunto deste poeta sem fim? “Sem fim” até literalmente, uma vez que, que se é sabido, com alguma segurança, ter nascido em 1431 (ou 1432...), nada que envolva sua biografia a partir de 1463, quando foi banido de Paris,se cerca de maior precisão de dados. Villon “desapareceu”.
Sem querer deixar de aguçar um pouco a curiosidade do leitor não-familiarizado com seu nome, direi apenas que Villon é reivindicado pelo Romantismo como o primeiro dos “poetas malditos”, antes mesmo de a expressão ter sido popularizada por Verlaine em fins do século 19.
Dadas as condições propícias, natural que no seu caso as lendas preenchessem o vazio do pouco que se sabe com segurança de sua vida. Desde já recomendo ao leitor o estudo de Sebastião Uchoa Leite que serve de introdução à edição por ele preparada e que vem indicada ao final da terceira tradução postada abaixo da “Balada”.
Optei aqui pelo seguinte: ao final, vai o texto da “Ballade de La Grosse Margot” no francês do século 16. O primeiro texto é a tradução de Décio Pignatari, a mesma que se ouve em sua voz, no CD Tempera-mental, de 1993, junto com a composição de Livio Tragtenberg e Wilson Sukorski. A seguir dou ainda duas traduções: a de Péricles Eugênio da Silva Ramos e a de Sebastião Uchoa Leite. O leitor tem oportunidade de confrontar as três, comparar as soluções encontradas por cada poeta-tradutor, estabelecer suas preferências, relacioná-las ao texto original, enfim, exercer um saudável exercício de leitura do texto poético e uma reflexão sobre a atividade da tradução.
Antes de deixar falar o poema e suas traduções, ainda algumas observações:
1. A métrica utilizada por Villon na “Ballade” foi o decassílabo; dos tradutores, Uchoa Leite e Pignatari mantiveram essa métrica; já Péricles Eugênio optou por verter seu texto em alexandrinos.
2. O esquema de distribuição das rimas do original foi seguido pelos três tradutores, mas apenas Uchoa Leite manteve (ou conseguiu manter) o acróstico da última estrofe: as letras iniciais dos versos formam “VILLONE”, que Leite traduziu “VILLONA”.
[Retificando: Houve uma desatençao grande minha aqui. Na verdade só quem segue fielmente o esquema de rimas é Péricles Eugênio; Décio Pignatari, por oposição, é quem mais se distancia do original, inclusive pelo vasto emprego de toantes, de inversões vocálicas e outros procedimentos que transgridem a regularidade de Villon; Uchoa Leite emprega parcialmente também a rima toante, mas transgride menos (esta observação não é um julgamento de valor); vale notar que na última estrofe tanto este tradutor quanto Décio modificam a distribuição de rimas da mesma forma. Em Villon: A-A-A-B-A-A-B; neles: A-A-A-B-C-C-B. Desde já peço desculpas ao leitor pela desatenção. Por favor, leitor, acesse a retificação em http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/04/consertando-lambancas-no-bordel-de-dona.html]
3. Curioso que o primeiro verso da última estrofe na tradução de Sebastião Uchoa Leite, “Vente, chova, neve – e o meu pão foi cozido” contém 11 sílabas, quebrando o esquema decassilábico. Acho difícil que tenha sido cochilo de tradutor e poeta tão hábil, mas não consigo encaixá-lo na métrica – teria sido erro de revisão? Mas nesse caso como seria o verso “consertado”? Talvez esteja a saída diante dos meus olhos, mas não a enxergo. Quem sabe algum leitor mais atento ou mais experto consiga me apontar o que não vejo?

BALADA DA GORDA MARGÔ
Se eu amo e sirvo a dona de bom grado,
Tomar-me-ão por vil, paspalho e tudo?
Ela dá conta de qualquer recado,
Por seu amor cinjo punhal e escudo.
Quando vem gente, eu me despacho, grudo
Um pichel de vinho e me viro na moita, não
Sem dar água, queijo, fruta e pão.
Digo (se pagam bem): “Nomine Figlii,
E voltem sempre às ordens do tesão,
A este bordel, que é o nosso domicílio!”

Não tarda muito, e eis-me de humor amargo,
Se sem dinheiro ela me vem pro quarto:
Não a suporto, quero vê-la morta:
Faço a pilhagem nos seus quatro trapos
E juro me pagar por conta e encargo.
Pego-a por trás e ela: “Anticristo!”
- Jura por Nosso Senhor Jesus Cristo
Que não dará. Passo a mão num porrete
E lhe gravo na estampa um bom lembrete,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.

Mas vem a paz, e ela me vem com um bruto
Peido, mais venenoso do que um bafo
De onça. Rindo, me acerta um squiafo no
Coco, diz: “Vem, filhote”, e abre o pernão.
Então, dormimos como um pau, briacos.
Margô desperta, o ventre lhe ronrona,
E monta em mim: desatrofia o anão,
De milho em milho me debulha o saco.
De tanto putear, fico na lona,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.

Tenho o pão quente – vente, chova ou neve.
Sou putanheiro e puta não faz greve:
Quem vale mais, se não se vê a mais leve
Diferença de brilho – se a tal mãe, tal filho?!
Amor ao lixo – e o lixo vem atrás;
Desprezo à honra – e a honra é mais voraz,
Neste bordel, que é o nosso domicílio.

Tradução de Décio Pignatari
(in: Poesia pois é poesia. Duas cidades, 1977)



BALADA DE MARGOT, A ENCORPADA
Se eu amo a bela e a sirvo do maior bom grado,
Deveis tomar-me por pateta ou por vilão?
Tem ela bens, em si, do mais perfeito agrado.
Por seu amor, daga e broquel medo me dão;
Quando vem gente, corro e a um pote levo a mão,
Eu fujo para o vinho sem fazer rumor;
Queijo, água, pão e vinho ponho ao seu dispor.
“Ótimo!” eu digo-lhes se acaso me pagam bem;
“Voltai aqui, ao vos tomar do cio o ardor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.”

Revelo-me, contudo, em grande desagrado
Quando Margot se vem deitar sem um tostão;
De morte a odeio, não a posso ver ao lado.
Tomo-lhe a roupa, o cinto e a sobreveste, então,
E juro que isso valerá o meu quinhão.
Segura os lados. “É o Anticristo!” – ergue o clamor;
Jura pela paixão de nosso Salvador
Que não há de deixar. Eu pego um pau, porém,
E embaixo do nariz lhe escrevo, com rancor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.

Mais do que venenoso escaravelho inflado,
Depois que a paz é feita, ocorre-me um punzão.
Ela ri e o cocuruto meu vejo esmurrado.
Diz-me “Go, go”, na coxa dá-me um safanão.
Ébrios os dois, dormimos com disposição,
E ao despertar, se tem no ventre esto, calor,
Monta em mim, para que não perca o seu favor.
Sob ela gemo, tábua chata no vaivém.
Ela destrói-me todo com o lascivo humor,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.

Vento, granizo, gelo, está cozido o pão.
Segue-me a dissoluta, eu sendo garanhão.
Quem vale mais? Um e outra têm afinação.
Valem-se os dois: mau gato a rato mau convém.
Sujeira vem atrás, se amamos sujidão;
À honra fugimos, foge-nos a retidão,
Neste bordel que em boa vida nos mantém.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos
(in: Poemas de François Villon. Art Editora, 1986)


BALADA DA GORDA MARGOT
Se amo e sirvo a dama de bom grado,
Pensareis que sou vil e cabeçudo?
Ela faz tudo que é do meu agrado,
Por seu amor eu cinjo adaga e escudo.
Se vem cliente, a um trago mais graúdo
De vinho me recolho, a um canto perto.
De água, pão, fruta e queijo faço oferta.
“Bene stat” – eu digo a quem mais vaza –
“E volte sempre se embaixo lhe aperta,
Aqui neste bordel que é a nossa casa.”

Mas ocorre que as coisas ficam pretas
Quando sem prata vem dormir Margot.
Mal posso vê-la, de ódio às suas tretas.
Tomo cinto e jaqueta, e o que mais for.
E juro que me servem de penhor.
Ela, punhos nas ancas “Anticristo!”
Grita e jura por Nosso Senhor Jesus Cristo,
Que não dará. Com um pau lhe quebro as asas
E em seu nariz lhe gravo o meu escrito
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Depois vem paz e solta um peido bruto,
Venenoso qual sapo dendrobata.
Logo me acerta, rindo, o cocuruto:
“Vem vem, neném”, nas coxas me arrebata.
E dormimos qual saco de batatas.
Pela manhã quando lhe ronca o ventre,
Monta em mi, antes que se gaste dentro
Seu fruto. Gemo – e em cinza faz-se a brasa:
De tanto futucar, eu me desventro,
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Vente, chova, neve – e o meu pão foi cozido.
Igual às marafonas, sou servido.
Lá, mau gato a mau rato, bem medido –
Lado a lado – se sabe a maior rasa?
Onde lama é amor, amor é lama.
Nem quer-se a honra ou ela nos reclama
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Tradução de Sebastião Uchoa Leite
(in: François Villon/Poesia. Edusp, 2000)



BALLADE DE LA GROSSE MARGOT
Se j'ayme et sers la belle de bon hait.
M'en devez vous tenir ne vil ne sot ?
Elle a en soy des biens a fin souhait.
Pour son amour sains bouclier et passot ;
Quand viennent gens, je cours et happe un pot,
Au vin m'en voys, sans demener grand bruit ;
Je leur tends eaue, frommage, pain et fruit.
S'ilz payent bien, je leur dis “bene stat ;
Retournez cy, quand vous serez en ruit,
En ce bordeau ou tenons notre estat. "

Mais adoncques il y a grand deshait
Quand sans argent s'en vient couchier Margot ;
Veoir ne la puis, mon coeur a mort la hait.
Sa robe prends, demi-ceint et surcot,
Si luy jure qu'il tendra pour l’escot.
Par les côtés se prend “c’est Antecrist”;
Crie, et jure par la mort Jhesucrist
Que non fera. Lors empongne un esclat ;
Dessus son nez luy en fais ung escript,
En ce bordeau ou tenons notre estat..

Puis paix se fait et me fait ung gros pet,
Plus enflé qu'ung velimeux escarbot.
Riant, m'assiet son poing sur mon sommet,
" Go ! go ! " me dit, et me fiert le jambot.
Tous deux yvres, dormons comme ung sabot.
Et au resveil, quand le ventre luy bruit,
Monte sur moy, que ne gaste son fruit.
Soubz elle geins, plus qu'un aiz me fais plat,
De paillarder tout elle me destruit,
En ce bordeau ou tenons notre état.

Vente, gresle, gelle, j'ai mon pain cuit.
Ie suis paillart, la paillarde me suit.
Lequel vault mieulx ? Chascun bien s'entresuit.
L'ung l'autre vaut ; c'est à mau rat mau chat.
Ordure aimons, ordure nous assuit ;
Nous deffuyons honneur, il nous deffuit,
En ce bordeau ou tenons notre estat.

(Na mesma edição indicada imediatamente acima)

quarta-feira, 16 de março de 2011

SILVIANO SANTIAGO


Você se lembra, tesão meu,
naquela suave manhã de verão,
o doce sol
esquentava o orvalho
das plantas
destruindo as gotas brilhantes
pelo perfume que exalavam,
você não se esqueceu,
ou já se esqueceu?
tesouro meu,
do objeto que de repente
vimos no meio do caminho:
a carniça de um corpo
de mulher.  Você se lembra,
deitada na cama semeada
de farpas, pedrinhas e formigas,
ela, com as pernas pro alto
qual puta velha,
era cozida ao ponto
pelo doce sol de verão
e espalhava pelos ares
o úmido veneno
das entranhas. *

* homenagem a Charles Baudelaire e a Carlos Drummond de Andrade

                                                                   
                                                                       In: Cheiro forte.  Rocco, 1995

segunda-feira, 14 de março de 2011

JANICE CAIAFA: DOIS POEMAS

ORAÇÃO DE MOÇA

            tenho um cipó no pulso esquerdo
            atado por Nossa Senhora

ai franciscano cortai-me o laço.
dai-me um raminho novo.
orai pela minha alma.

   olhai para o meu corpo agora
convosco quero viver
confesso meu langor pela vossa espádua

           
                        tão lisa, tão fina, tão sacra


                       
                        des-conta do meu rosário
                        verteu-se em suas verdadeiras          
                                   rosas

            ai desatai-me esse condão
            que a Virgem Rainha
                        compôs o meu decoro, e agora Salve.



FILTRO MÁGICO

                        ao meu pequeno puck

din-dins de pires
de leite,
confusões dos potes
            da casa –
gengibre-me o bolo
            que faço.
gnomo que guardo no leito
di-minuto gênio do quarto
            matéria e gema
                   das tigelas
jujuba mágica entre as muitas
gomas de mascá-la.
eu amo meu robin da cozinha
que me ajuda a pensar os séculos
secretamente sob a minha
            anágua.

                               In: Noite de Ela no céu. Três Corações, 1982.

sábado, 12 de março de 2011

GATO E PÁSSAROS

            Puxo uma cadeira para pôr os pés em cima e me vejo fazendo o gesto de incliná-la em solavanco súbito para a frente, como a fazer descer um gato que ali se tivesse aninhado.  Muitos anos da minha vida convivi com gatos, que amo.  Há quase dez não sei o que é ter um em casa. Perguntei-me surpreso de que gato se trataria.
            No horror das imagens dos tsunamis no Japão me chamaram atenção alguns poucos takes em que pássaros voam sobre a tormenta.  Imensas áreas portuárias destruídas, aves marinhas pairando inquietas – dá para ver que estão inquietas – entre as lentes das  câmeras e a devastação.

sexta-feira, 11 de março de 2011

RICARDO PINTO DE SOUZA

ABERTURA # 2

Era uma casa de grandes portas
Onde se convidava
Lembro-me também
Das pessoas conversando
Hoje não há mais nada

Seus fantasmas às vezes
Chegam até mim em tristes ecos
Acusam-me
“Não te vi aqui, lá
Você sumiu” – e sumi
“Não falou nada, não viu nada
Você desapareceu” – e desapareci.

Nossa adolescência
Ainda é um sonho tranqüilo
Lembro-me também
Da timidez, do tesão, da tíbia
Vontade de humilhar o mundo

Hoje há muita coisa
Mas as portas são mais estreitas
E a vida é um relógio
contínuo, presente, urgente
Cheirando a máquina e a óleo
Antes era um rio e suor, líquidos
Como o desejo e a angústia
Antes não havia fim do mundo
Os portos passaram

No entanto nunca fui tão sábio
Como quando não sabia nada
e mesmo assim
            mesmo assim
                        mesmo assim
                        assim

               

                              In: Culturas. Oficina Raquel, 2006
                             
                              www.oficinaquel.com


quarta-feira, 9 de março de 2011

AMARCORD




Uma bruma
Uma bruna
Uma loura
Uma espuma
De acordar
Azul azul azul
az

Um urina
Uma urina
Uma amanha
Uma doce
Ninfa, nume
Lume, linfa

Luz de bruxa luz ondeia
Sobre o mar e em cada veia
Vênus venérea Volpina
Vela rubra quero tê-la
Mas tocá-la contamina
Verterei mais uma vez
Rios de esperma só
de vê-la

As constelações e os vícios
Na cocaína da infância
Dançam vis entrelaçados
Num pátio de escola gris
Etruscos, motociclistas
Deixam nas pedras do cais
Vestígios sobre as espumas

As ameias
As neblinas
Desde a véspera
De ter uma
Uma espera
De verruma

Uma adulta
Branca e pura
Mia moglie
Nos seus trajes
De adúltera
Azul azul azul

Uma em curvas
Se perdendo
No azul azul azul
Vai em curvas
Me perdendo
Azul azul azul
az

Aves asas adriáticas
Viram pedras do hospício
Fronteiriço ao baldio
Dom lunático delírio
Chamo ele: tio tio
Que me responde do azul

Uma loba
Uma mãe
Duas tetas
Duas ancas
Trinta e tantas
Odaliscas
Outros tantos
De fascistas
Tantas curvas
Brancas, brunas

Azuis azul azul
Na nevasca
Pavão alvo
Azul pavana
Sua Alteza
Notívaga
Sinfonia
De pardais
Primas moças
Doces primas
Mandolins
Inenarráveis

Em fúria doce a concertina
Dentro da recordação
De noite me acordarei
Em febre sopor suor
Os seios girando azul
Azul azul azul
az


O jazz-band a dança a chuva
Transatlântica deriva

sábado, 5 de março de 2011

BLECAUTE, GENERAL DE CINCO ESTRELAS




“... o General da Banda tem até uma  história interessante... porque eu estava no Carnaval de... 49... já no final de 49, na terça-feira de Carnaval (...) mas havia uma batucada me perseguindo... era o General da Banda... me perseguia na rua,  com ritmo de macumba... ‘Chegou General da Banda ê ê... xic-gig-dig-DUM... chegou de General da Banda iê á...’ e eu digo, ‘Meu Deus do Céu, de onde é que vem essa canção, de onde é que vem essa música, de onde vem essa melodia?...’”
            Antropólogos, historiadores, aqueles que se dedicam ao estudo de tempos remotos, mitos, etc.  nunca chegaram a um  consenso sobre a origem do Carnaval, possível que nunca cheguem, “perdidos como chineses na genealogia das idéias”, para retomar a imagem oswaldiana.  O fascinante nessa fala de Blecaute, que canhestramente transcrevi acima e é possível ouvir no áudio postado,  é também o fato de ser uma fala às cegas na memória do nascimento do personagem carnavalesco que ele, Blecaute, acabou incorporando desde então: o General da Banda.
            Blecaute, “carioca de Pinhal, interior de São Paulo”, como o próprio deixa claro a seguir em sua fala, é um maravilhoso cantor.  Na minha memória afetiva a voz de Blecaute – e a de Jamelão – encarnavalizou-se para sempre: é a voz-corpo de antigos carnavais, como a de Neguinho da Beija-Flor é a voz-corpo dos atuais. Esse depoimento, com a interpretação subseqüente de “General da Banda” está no CD dedicado ao artista na série A música brasileira deste século [o XX] por seus autores e intérpretes, lançamento do SESC-São Paulo, sobre a qual voltarei a falar oportunamente.
            Se fica para uma futura postagem falar aqui da coleção e de seu grande idealizador, Fernando Faro, não posso deixar de anotar logo o seguinte: observe-se o insight de Faro diretor de TV ao iniciar o programa (pois os CDs são o registro do programa Ensaio da TV Cultura) aparentemente ao acaso, as palavras ainda meio indistintas na voz de cantor, para dizer de algo que é uma percepção também indistinta em sua memória: a idéia de que, em estado de batucada, em “ritmo de macumba”, o general da banda “o perseguia” num final de carnaval é uma imagem que sintetiza o mistério da genealogia do Carnaval, em várias dimensões, a começar pela dimensão pessoal do cantor ao desfiar a narrativa difusa de suas lembranças,  e estendendo-se para muito além.  Afinal: o que é um General da Banda, se não uma imagem ela mesma carnavalizada da hierarquia militar, que tanto susto causou aos brasileiros ao longo do século XX?  Veja-se Blecaute (grifado ainda “Blackout” em inglês “macarrônico”, a meio caminho do português hoje abrasileirado ou já dicionarizado) na foto da capa desse LP de 1959, incorporando já o personagem, comandando a desordem unida da folia.


O que é o General da Banda, o que é aquele “mourão, moirão”, que relação se estabelece entre esses farrapos de letra, vestígios de sentido, trapos de um desejo de sustentação e seu avesso (o general, que no entanto é da banda; o mourão, que catucado por baixo cai)?
            Vamos cantar!
GENERAL DA BANDA (Tancredo Silva – José Alcides – Satiro de Melo)

Chegou o general da banda ê ê
Chegou o general da banda ê á

Mourão, mourão
Vara madura que não cai
Mourão, mourão, moirão
Catuca por baixo que ele vai

(deixa amanhecer!...)
           
todas essas perguntas tem o seu quê de apenas retóricas, na medida em que também não nos interessamos muito pelas possíveis respostas, nem teríamos por quê. O “general da banda” incorporou-se para sempre ao carnaval, como o zé-pereira e o abre-alas.
            Os anos que atravessamos de ditadura militar trouxeram alguns hábitos engraçados, de que ainda restam vestígios, de se querer interpretar “politicamente” (no pior sentido do termo) tudo o que fosse presumivelmente cifrado para passar pelas malhas da censura.  Lembro que eu ria muito quando mais de uma vez ouvi que “General da banda”, com a “misteriosa” alusão, seria na verdade uma sátira cifrada ao general Mourão Filho, famoso no anedotário do golpe por ter se declarado a “vaca fardada” do Exército brasileiro...
            Mas é bom saber que Blecaute é um cantor esplêndido.  Eu não sabia com segurança antes de ouvir esse CD. Porque afinal de contas o General da Banda acabou por engolir seu criador, e Blecaute passou a ser muito automaticamente associado a essa figura quase folclórica, de um folclore urbano no pleno sentido da expressão.  Sua figura, e a minha infância funciona fortemente como impulsionadora dessa lembrança difusa que acaba por se converter em imagem fixa, ainda que não nítida, de expressivos traços negros em cabelo liso (séculos antes dos modernos processos de alisamento de cabelo) o mais das vezes envergada na farda caricata, seu nome artístico, denunciando o “racismo bonachão” brasileiro (como Jamelão, Noite Ilustrada, igualmente esplêndidos cantores, ou o mais recente,  o jogador Grafite), também obscureceram durante muitos anos o que para mim se tornou claro quando adquiri há mais ou menos um ano este CD.  Com uma dicção muito peculiar (que lembra às vezes Itamar Assumpção, séculos distante de qualquer subserviência de “negro de alma branca”), com uma voz bonita, cálida e um vibrante senso de divisão, Blecaute é cantor de primeira.  Que passeia muito à vontade por um repertório de alta qualidade.  Essas revelações preciosas fazem deste CD e de toda a série um deleite monumental e documental sobre a música feita no Brasil.
            Bom carnaval!