quarta-feira, 2 de março de 2011

BAUDELAIRE: ESPANQUEMOS OS POBRES!

de Honoré Daumier
             
            Durante quinze dias eu me enclausurara no meu quarto e cercara-me dos livros em moda naquele tempo (há dezesseis ou dezessete anos); refiro-me aos livros que tratam da arte de tornar os povos felizes, discretos e ricos em vinte  quatro horas.  Tinha, pois, digerido – engolido, quero dizer – todas as elucubrações de todos esses empreendedores da felicidade pública – daqueles que aconselham todos os pobres a fazerem-se escravos, e daqueles que os persuadem de que todos eles são reis destronados.  Não é, pois, de surpreender me achasse num estado de espírito vizinho da vertigem e da estupidez.
            Parecera-me somente que eu sentia, confinado no fundo de meu intelecto, o germe obscuro de uma idéia superior a todas as fórmulas de curanderia de que eu havia recentemente percorrido o dicionário.  Isso, porém, era apenas a idéia de uma idéia, alguma coisa infinitamente vaga.
            E saí com muita sede.  O gosto apaixonado das más leituras engendra uma necessidade proporcional de ar livre e de refrigerantes.
            Ia entrando numa taberna, quando um mendigo me estendeu o chapéu, com um desses olhares inesquecíveis que derrocariam os tronos, se o espírito movesse a matéria e se o olho de um magnetizador fizesse amadurecer as uvas.
            Ao mesmo tempo, ouvi uma voz cochichar-me ao ouvido, uma voz que reconheci perfeitamente;  era a de um Anjo bom, ou de um bom Demônio, que me acompanha por toda a parte.  Pois se Sócrates tinha o seu bom Demônio, por que não haveria eu de ter o meu Anjo bom, e por que não haveria de ter a honra, como Sócrates, de obter o meu diploma de loucura, assinado pelo sutil Lélut e pelo atilado Baillager?
            Entre o Demônio de Sócrates e o meu há esta diferença: o de Sócrates não lhe manifestava senão para defender, advertir, impedir, e o meu se digna de aconselhar, sugerir, persuadir.  O pobre Sócrates não tinha mais que um Demônio proibidor; o meu é um grande afirmador, o meu é um Demônio de ação, ou Demônio de combate. 
            Ora, a sua voz me cochichava isto:
            – Só é igual a outro aquele que disso dá prova, e só é digno da liberdade aquele que sabe conquistá-la.
            Imediatamente me atirei sobre o meu mendigo.  Com um só murro lhe tapei um dos olhos, que se tornou, num segundo, do tamanho de uma bola.  Quebrei uma das unhas rebentando-lhe dois dentes, e, como não me sentisse bastante forte – pois sou frágil de natureza e não me exercitei bem no boxe – para moer de pancadas aquele velho, agarrei-o com uma das mãos pelo colete e com a outra empolguei-o pela garganta, e pus-me a sacudir-lhe vigorosamente a cabeça de encontro a uma parede.  Devo confessar que de antemão inspecionara, num lance de olhos, as adjacências, e verificara que naquele subúrbio deserto eu me encontrava, por um espaço de tempo bem longo, fora do alcance de qualquer agente de polícia.
            Depois, com um pontapé nas costas, bastante vigoroso para fraturar-lhe a omoplata, prostrei por terra o alquebrado sexagenário, e, apoderando-me de um grosso galho de árvore que se arrastava pelo chão, fustiguei-o com a energia obstinada dos cozinheiros que querem amolecer um bifesteque.
            Súbito – ó milagre! a alegria do filósofo que comprova a excelência da sua teoria! – vi aquela velha carcaça voltar-se, endireitar-se com um vigor que eu jamais teria presumido em máquina tão singularmente desconjuntada, e com um olhar de ódio que se me afigurou de bom augúrio, o malandrim decrépito investiu contra mim, contundiu-me os dois olhos, quebrou-me quatro dentes, e com o mesmo galho de árvore me bateu de rijo.  Com a minha enérgica medicação eu lhe restituíra o orgulho e a vida.
            Então, fiz-lhe compreender, por meio de muitos sinais, que dava por encerrada a contenda, e erguendo-me com a satisfação de um sofista do Pórtico, disse-lhe:
            O senhor é igual a mim!  Dê-me a honra de partilhar da minha bolsa; e, se realmente é filantropo, lembre-se que é necessário aplicar a todos os seus  confrades, quando lhe pedirem esmola, a teoria que eu tive a dor de experimentar nas suas costas.
            Ele jurou-me que havia compreendido a minha teoria, e que ouviria os meus conselhos.


                         (In: Pequenos poemas em prosa. Trad. de Aurélio B. de Holanda Ferreira)



Um comentário:

  1. Eis um excelente remédio que substituiria à altura o Bolsa Família do PT. Grande Baudelaire!

    Paulo Gondim

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