Postei aqui ontem o poema de Nicolas Behr, “A missa”. É raro que me aconteça diante de um poema o que me acontece diante desse: é como se ao lê-lo, operando uma pausa absoluta no fluir do tempo, o poema fundasse de súbito uma ilha de memória, não exatamente uma ilha índice de solidão, porém sim de abrigo precário em meio a possíveis tormentas, logo, por precário, também sujeito a tormentas. E principalmente: índice de alguém com quem eu possa dividir a ilha.
Esse alguém não é o poeta Behr, que não conheço pessoalmente: é o seu poema e todas as vozes que o povoam. É todo o mundo que essas vozes vão criando ao longo dos versos, assim disposto, esse mundo, de forma estudadamente desleixada em termos formais, meio que num fluxo um tanto à la poesia beat, num desatavio também muito próprio aos poetas que vêm da geração 70, como é o caso dele, Behr. São as palavras da liturgia católica derrubadas de súbito aqui, ali, no rasteiro do chão pelos pensamentos do menino que não lhes capta o sentido ou o transfigura, são as vozes muitas da desatenção do menino ante o ritual, à espera de poder voltar à vida lá fora, fora da igreja, vozes de outras crianças que se entrecruzam, sussurradas no interior da nave, e que aqui o leitor lê em pé de igualdade – na verdade, superioridade – com as palavras vazias do padre. . Divido a ilha com esse poema, com essas vozes, na medida em que sei exato o que é isso. Ou seja, acho que na verdade o poema me faz compartilhar a ilha... comigo mesmo, com minhas memórias, que ele acende.
“A missa” de Behr, poema que conheço há não muito tempo, me transportou, na primeira vez que o li, diretamente não tanto para as missas, poucas, que assisti na vida e das quais quase não tenho lembrança. Levou-me sim de início a uma situação análoga, se bem que mais angustiosa, do jovem adulto perturbado pelo mundo das formas no poema de Murilo Mendes:
“Não consigo ultrapassar a linha dos vitrais
pra repousar nos teus caminhos perfeitos.
Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres, pronto.
(...)
Vestidos suarentos, cabeças virando de repente,
pernas rompendo a penumbra, sovacos mornos,
seios decotados não me deixam ver a cruz.
Me desliguem do mundo das formas!”
“A missa” me levou aqui para a igrejinha próxima a este brejo, onde, não sei por que cargas d’água, me inscreveram há muito tempo para assistir às aulas de catecismo, numa segunda tentativa de fazer a primeira comunhão, visto que a primeira tinha sido frustrada por uma reprovação na São Paulo Apóstolo em Copacabana. A segunda também se frustraria e justo pelo que está como no poema de Behr: todos os versos me são próximos, melhor, me são meus, em especial um dos últimos: “e eu não quero ser goleiro outra vez”. Ruim de bola (doente do pé e ruim da cabeça também, vá lá), só me restava ir para o gol. Agarrar no gol é destino de todo perna-de-pau nos rachas. Agarrar no gol era muito melhor do que as aulas de catecismo. Muito antes de abandonar os rachas – que carioca chama de pelada – abandonei a idéia de comunhão católica. Nem na segunda tentativa eu fiz a primeira. No dia da cerimônia perdi por W.O.
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