sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

PAULINHO LÊMOS: BATO TAMBOR





BATO TAMBOR
Paulinho Lêmos e Agenor de Oliveira

Bato tambor pra anunciar
Que o samba começou
E não tem hora de acabar
Mando um sinal do coração
Será fundamental
Um tamborim na marcação
Vibra no ar dá diretriz
Não há nada mais belo
Do que um samba de raiz
Vem pra cantar e o povo diz
Se a vida é uma só
Ao samba eu peço bis

Fala de amor
Da tristeza do mar
Lua cheia estampada na retina
É um pescador
Das mentiras do olhar
Chororô de criança pequenina

Roda e vai improvisar
E zanza pandeiro e ganzá
E ginga daqui pra acolá
Sobra samba na veia
Acho melhor não esperar
É o samba em primeiro lugar
Um beijo gostoso e até já
Logo o dia clareia



Para que dizer que existe música Brasileira?
Existe o som de Paulinho, de Pixinguinha, de Sinhô, de Bororó,
de Nelson Cavaquinho, de Candeia e outros, como existe
o som das abelhas e o zumbido da alma de cada um.
(Capinan, texto para contracapa do 4º. LP de Paulinho da Viola, 1971)

O que há de extraordinário em versos como: “Não há nada mais belo/do que um samba de raiz”?  Aparentemente nada, não é mesmo?  Inclusive há, na minha maneira de ver, o equívoco da expressão “samba de raiz”, que eu particularmente detesto.  É uma expressão que se consagrou quando setores mais arraigadamente nacionalistas (em boa medida ou em bom número francamente xenófobos) do pensamento brasileiro se propuseram a pensar, a teorizar sobre samba (nada contra, tudo a favor), a querer ideologizá-lo enquanto símbolo representativo da nacionalidade ante a “ameaça da penetração cultural estrangeira ou imperialista” (o que carreou e carreia diversos equívocos), finalmente a querer “ensinar ao povo como fazer arte popular” (o que é hilariante e abominável).  O fato de ainda hoje se falar em “samba de raiz”, tendo a expressão se tornado mesmo uma etiqueta de mercado, indica que essa forma de enquadrar a questão permanece ativa. Mas eu posso – em alguns casos, devo – abstraindo tudo isso, trazer à memória a plena força dos sambas, enquanto “somente” sambas, “somente” canções, que se teima em abrigar sob o rótulo.  Aí me vêm ao ouvido afetivo Candeia, Nelson Cavaquinho, Cartola, Geraldo Pereira, Manacea, Xangô da Mangueira, Zé Kéti, Mauro Duarte, Dona Ivone Lara... e tantos outros. Não há nada mais puro do que o que eles compõem? Rejeito o adjetivo. Nada mais brasileiro? Não estou nem aí. Nada mais belo? Aí, eu concordo integralmente.  Levado pelo ouvido afetivo, ao ouvir o que é tão singela e diretamente dito em “Bato tambor”, todo o corpo se reconhece gozoso em versos tão verdadeiros: não há nada mais belo do que os sambas que vêm do “zumbido da alma” de Candeia, de Nelson, de Cartola...
            Procurei descrever acima uma das portas de entrada – a mais afetiva, isto é, a mais permeada de armadilhas – que me levou a uma entrega total a esse samba de Paulinho Lêmos e Agenor de Oliveira, que posto aqui para meus leitores ouvintes. O segredo desse samba a meu ver magnífico está na força de evocação que cada verso, cada nota, acorde, compasso, cada timbre, cada nuance da voz que canta carrega consigo nessa gravação. É uma canção e uma gravação plena do raro e interminável mistério que tem o samba, os grandes sambas dos grandes criadores de samba.  Neste CD gravado no Brasil em 2006 e lançado na Espanha, onde Paulinho mora e de onde recentemente (há muito tempo tínhamos perdido contato) me enviou pelo Correio o que segundo ele é um dos últimos exemplares que ainda tinha em seu poder, Paulinho se debruça sobre o samba e realimenta em nós o seu sortilégio.  Sortilégio: mistério, gozo e quebranto.  Há nisso muito de invocação também, que vai de braço com a evocação.  Num nível simples entende-se: há quase 30 anos morando fora do Brasil, Paulinho faz nas 12 faixas do CD um estupendo trabalho de ziguezaguear entre  sons que evocam aquilo que, luso ou afrobrasileiros, aprendemos desde sempre sob a rubrica da palavra “saudade”: nessa evocação, a invocação: por exemplo, ao refazer  “Timoneiro”,  de seu ilustre xará Paulinho da Viola (com Hermínio Bello), em ritmo angolano, que no arranjo mescla-se ao samba; ao homenagear em outra faixa, esta de sua autoria, Cesária Évora, na feliz síntese “filha de Clementina irmã de Amália”.  Entre uma e outra, e girando em torno delas, cada passo de cada um dos sambas aqui  evoca o samba como paradigma infinito, formando um dos mais estimulantes repertórios de sambas que tenho ouvido num único CD: e estou convencido que muito de sua força vem da nenhuma preocupação de Paulinho em fazer “samba de raiz”.  No mesmo passo, ele invoca os avatares (espirituais ou de carne e osso, pouco importa) do samba – afinal, o que significa “bater tambor”, não é mesmo? – para chegar a um produto límpido e digno como uma oferenda.  Na expressão feliz de Wisnik, pérolas aos poucos.  Poucos ouvintes talvez; mas também, aos poucos, pérolas que adquiriram uma extraordinária concreção, ao longo de quase 30 anos de estrada (vale notar de passagem que Paulinho se cercou de um grupo  de músicos de primeiro time: Arthur Maia, Marcos Suzano, Carlos Malta e outros do mesmo calibre).
            Essa nenhuma preocupação em obter um resultado a priori – de se fazer um disco de “samba de raiz”, repita-se – me parece um dos grandes achados do CD. É com a enorme familiaridade adquirida por ele  no interior de tal universo que somos levados a percorrer  os sons que nos evocam (e certamente a ele também, que os invocou) Tom Jobim, João Gilberto, Paulinho da Viola, João Bosco (que desmarcou por um imprevisto a participação especial que iria fazer numa faixa), João Nogueira, Gilberto Gil, Caymmi, Baden... não creiam que eu exagero, eu não exagero. E tem mais lá.  Na segunda estrofe  de “Bato tambor” (chamar de estrofes e dividir a letra em três delas é uma arbitrariedade conduzida por um “vício” literário) parece que somos conduzidos ao fraseado melódico característico de samba de terreiro, que se esparramava ainda pelos sambas-enredo até pelo menos uns 30 anos atrás. Isso conduz a um belíssimo fecho na 3ª. parte em que tudo “zanza” magnificamente no embalo de palmas magistralmente colocadas na solução final dada ao arranjo.
            A letra, que é de Agenor de Oliveira, é perfeita, ao operar de forma magistral os lugares-comuns da poética do samba, num sentido em que “lugar-comum” e “clichê” não são sinônimos.  Francisco Achcar, num livro excelente que trata da herança de alguns temas horacianos na poesia de língua portuguesa (Lírica e lugar-comum. EdUSP, 1994) ajuda-nos a entender a diferença entre uma coisa e outra, formulando como lugar-comum  a operação de buscar (ou achar) no interior de determinada tradição “os pontos de semelhança que ligam umas obras às outras”.  O clichê seria trabalhar de forma meramente convencional, inepta, subserviente tais pontos de semelhança, banalizando-os dentro da tradição e esclerosando-a. “Bato tambor”, inserindo-se como uma celebração do “samba de raiz”, numa obra (o CD em questão) que em absoluto não faz questão de navegar subservientemente e apenas nessas águas, se inicia com o samba abrindo clareira no espaço e no tempo (“começou e não tem hora de acabar”), invoca os instrumentos (além do tambor, tamborim, pandeiro e ganzá), pede passagem(“vem pra cantar e o povo diz”), tece a aliança com a ilusão, o desejo, instaura pela dança o império do corpo e só termina, com um breve “até já”, ou seja, promessa de curta interrupção, “quando o dia clareia” – o que é diferente de “ter hora” –, e  realiza o que Paulinho da Viola sintetizou em seu magnífico “Eu canto samba”:  “há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo/ que o samba acabou/só se foi quando o dia clareou”.  Entenda-se: há um passeio aqui pela recorrência de motivos que permeiam o samba desde sempre.
Preciosa enquanto fatura, a canção (letra-melodia) aumenta sua fluidez na medida em que parte de uma entrada marcadamente percussiva de início, onde se destacam as sonoridades de travamento, oclusivas, acentuadas fortemente pelos tamborins no arranjo (“Bato tambor pra anunciar/que o samba começou/e não tem hora de acabar”), e acaba por desaguar nos versos que figuram o corpo entregue ao embalo de tocar-dançar o samba:  Roda e vai improvisar/E zanza pandeiro e ganzá/E ginga daqui pra acolá/Sobra samba na veia”.  A forma como Paulinho canta evidencia isso: sempre contido, a voz quase “encostada”, semi-sussurrante, de início ela destaca as sílabas, bem marcadas em sua diferenciação. No correr da canção, sem perder em nada a nitidez, como se não houvesse mais obstáculos a vencer, o conjunto melodia-letra-canto é tomado pelo irresistível apelo da integração do corpo ao canto mobilizador da dança, em sonoridades mais soltas, palatalizadas, sibilantes e chiantes – a letra “desliza” naqueles quatro versos destacados ali em cima, o leitor faça-se de cantor e experimente.  São as sonoridades suavizadas que  de fato conduzem a entoação da melodia e se sobrepõem às sonoridades mais duras ou fechadas que se resignam agora a um papel secundário.  Essas consoantes suavizantes vão de par com o predomínio das vogais abertas ou ainda suavizadas pela nasalização,  que atingem seu ponto máximo em “sobra samba na veia” e prossegue até o fim da canção, compondo um todo harmonioso em direção a uma espécie de princípio do prazer infinito ao menos enquanto dure.    Leia-se, cante-se:

Roda e vai improvisar
E zanza pandeiro e ganzá
E ginga daqui pra acolá
Sobra samba na veia
Acho melhor não esperar
É o samba em primeiro lugar
Um beijo gostoso e até já
Logo o dia clareia

Com uma segurança impressionante, que os anos de estrada, aprendizado e convívio lhe deram, Paulinho Lêmos – o circunflexo do sobrenome vale como uma tatuagem -  firma-se como cancionista de primeira linha, em  sambas que são de sua firma reconhecida e reconhecível.
                       
           




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