quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

COMO FAZER INIMIGOS DEPOIS DE MORTO

             O cemitério mais antigo próximo aqui a este brejo fica no alto de uma ladeira inimaginável.  No  centro do município, uma tosca cidadezinha da serra fluminense – como é tosco praticamente todo o interior do Estado do Rio – , é a única parte digamos assim... histórica da cidade.  A ladeira íngreme é calçada com pés de moleque e, lá no alto, levantado às expensas e mantido por uma Ordem religiosa qualquer, e construído, claro, por escravos, fica o cemitério.  Ao qual nunca fui. Como diz o outro: não tenho pressa, até porque vou passar lá um bom tempo.
            Entre as ótimas bravatas em ritmo de samba de Paulo Vanzolini há uma que é literalmente lapidar: “Deixo muito inimigo/porque sempre andei direito”.  Achar que sempre andou direito é a bravata, claro... me identifico, mas seria cabotinismo confessá-lo. Já “deixar muito inimigo”... digamos que não sejam assim muitos... mas um número suficiente para que eu não me envergonhe de ter passado (estar passando toc toc toc) em branco por este vale de lágrimas.
            Pois é, pois uma das ladeiras que dão para este vale fica aqui perto, como eu ia dizendo, e lá no alto o simpático, bucólico e arborizado cemitério (é o que me contam, se bem que não farei a menor questão de árvores).  E eu então já decidi e estou pronto a deixar registrado em cartório em firma reconhecível o meu último desejo: ser enterrado nesse cemitério ao fim de uma inacreditavelmente íngreme ladeira, ser conduzido até lá pelos amigos que me restarem (acho deselegante caixão com quatro alças, não sei se me restarão seis amigos, mas juro que vou-me comportar melhor daqui pra diante – até porque não quero dar o peso desse desprazer aos meus três filhos)... mas deixarei firmado que quero ser levado a pé.  Eu sei que há um outro acesso para lá, numa subida de maior extensão e mais suave, que é por onde os mortos são habitualmente conduzidos.  Pois eu deixarei explícito que quero ser conduzido pela ladeira e na mão.  Os amigos remanescentes não hão de querer me contrariar. E assim eu farei postumamente meus mais recentes e derradeiros inimigos.  Sem que seja necessariamente uma evidência de que eu tenha andado direito ao proceder assim.
            Um amigo ao qual, inadvertidamente, contei a idéia, me disse que o melhor seria que eu deixasse ainda por escrito uma última mensagem, a ser lida à beira da cova: “Desejo ser cremado”.  Mas não sei, acho um tanto parnasiano esse “fecho de ouro”.  E acho que esse meu amigo anda desnecessariamente pretextando uns mal-entendidos... certamente  será medo de ser uns dos possíveis seis últimos.

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