quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

AGRESTE

                 A palavra “agreste” me puxa a palavra “inóspita”. Mais do que “rústico”, “silvestre”, que acabam carreando o significado para “bucólico”, agreste me remete à aspereza da inospitalidade. Faz parte da sinonímia de “malcriado”, vejo no Houaiss, o que responde a muito do que eu queria dizer.   Agrestes é aliás o nome de um belo livro de João Cabral, que abre com um poema dedicado a Augusto de Campos, o “leitor maugrado”. Sem dúvida, esse “maugrado” aí é a tradução cabralina do malcriado Augusto. Perfazendo assim o itinerário avesso ao bucólico.
                Aqui onde moro não é exatamente agreste. Alimento com os amigos a brincadeira de que seja bucólico.  Mas todo bucolismo é convenção.  Estou aos poucos aprendendo que pode sim ser bem agreste este brejo.  Em determinados dias parece que a natureza ao redor – o que é bem mais visível do que seria numa cidade grande – reivindica para si ser malcriada.  Dias em  que os insetos estão mais impetuosos, invisíveis e sedentos esvoaçam no calor do sol, e de noite zumbizantemente barulhentos buscam sôfregos as luzes acesas, debatem-se contra as telas de proteção, fogem como podem das lagartixas que os espreitam nas frestas e junções do telhado e das paredes, mergulham no azeite das panelas.  Noites em que teias de aranha imperceptíveis surgem num passeio despretensioso entre as árvores do quintal, às vezes justo quando os ouriços-cacheiros se desentocam e vagam lerdos e imunes aos cachorros que sabem da ameaça que eles, os ouriços, representam para suas mandíbulas.  Calorões seguidos de chuva intensa, quando nuvens abrasantes de mosquitos transfiguram-se em nuvens d’água fria, quando sapos e rãs, de hábito prosaicamente simpáticos, saltam mais do que o normal e algumas vezes são vistos ou adivinhados por mim – que me torno mais e mais capaz, embora lentamente, de ler os sinais específicos desse agreste  – em seus miados angustiosos entre dentes de uma cobra mais atenta e sorrateira.  Quando se faz necessário, sem maior medo ou alarde, manter as portas fechadas, pois as cobras, animais que desdenharam o paraíso, conforme ouvi outro dia por aqui,  insistem, nessas jornadas agrestes, em vir fazer companhia, com seu silêncio  absoluto de tapetes mágicos não voadores, apenas sinuosos. Silhuetas de tapetes mágicos, para tentar maior precisão.
                Aprendo aos poucos que esse agreste vem esparsamente, principalmente nos dias agressivos da passagem da primavera para o verão, algumas árvores em descampados arrancadas pelo vento, raízes expostas.  Ao longo do tempo que perfaz o resto do ciclo anual esses momentos parecem a rigor raros.  Ou talvez a minha capacidade de conviver mais naturalmente com tudo isso também me esteja tornando mais agreste. Aprendendo mais medularmente a viver dentro dessa outra convenção. Que no fundo é um pouco como aquilo que escreve Montale num poema:

“E andando nel sole che abbaglia
sentire com triste meraviglia
com’è tutta la vita e Il suo travaglio
in questo seguitare uma muraglia
che ha in cima cocci aguzzi di bottiglia.”

                Pode ser que na verdade o que separe o bucólico do agreste seja um muro encimado de cacos de garrafas.

4 comentários:

  1. Caro Roberto,

    parabéns pelo excelente blog.

    Grande abraço,
    Antonio Cicero

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  2. Obrigado, Cícero,

    é uma honra para mim tê-lo como leitor.

    grande abraço do
    Roberto Bozzetti

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  3. Belo texto Bozzetti, e bela foto, Roberto.

    Segue um soneto branco cuja flor me parece tão agreste quanto:

    O real é um desperdício, eis o que a física
    formula, dos confins do espaço ao âmago
    vibrátil da matéria, tênues cordas
    compostas de equações imponderáveis
    às especulações humanas tangem
    uma harmonia que ainda não podemos
    ouvir – surdos, capazes de somente
    soletrar os ruídos de uma estrela,
    somos o fogo fátuo e sem sentido
    de um acidente, ecos de um acaso
    incontornável que se reproduz:
    não encontramos deus, amor, sequer
    silêncio, a imensidão é inesgotável
    como uma flor repleta de explosões.

    Forte abraço,

    Marcelo Diniz

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  4. Obrigado, Marcelo

    que bom, os ecos no soneto.

    grande abraço
    Bozzetti

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